Fronteiras de colonização - X - A nova querência

Continua o relato de Maria Rohde
Primeiro descemos pela margem do rio no lado de Santa Catarina, por onde se espalhavam os assentamentos  da Colonização da Empresa Xapecó, Pepery Ltda. Aqui e acolá observavam-se clareiras ocupadas com plantações novas. Passamos seguidas vezes por casas de colonos, maiores e menores, com aparência bastante primitiva. Pelo fato de se encontrarem perto do rio davam uma impressão idílica e destacavam-se da exuberante floresta verde, deixando uma impressão jovial. De vez em quanto ouvíamos o latido de um cachorro, alertado pelo barulho do motor. Nada, porém, de seres humanos, embora nesta parte da colonização de Porto Feliz, muitos colonos já tivessem ocupado a sua terra. Ao nosso lado estendia-se por toda a largura do rio e na frente sua gigantesca superfície avançava até onde a vista alcançava.

Estávamos acomodados no fundo da canoa e deixamos que o poderoso espetáculo nos impressionasse. As crianças, que nunca tinham visto algo maior do que o Taquari, estavam fora de si diante da grandeza do caudal. Mil coisas ocupavam suas atenções. Ora eram os peixes que davam ousados saltos perto da canoa, ora era a vegetação romanticamente selvagem nos barrancos, ora árvores desconhecidas e, somado a tudo isso, a paisagem que se ampliava a cada curva do rio. A impressão avassaladora do conjunto, fez com que nessa primeira viagem pelo Uruguai não guardasse a lembrança de nenhum detalhe. Só enxergava o grande todo dessa gigantesca paisagem da mata virgem. Até onde alcançava a vista sucediam-se as ondas que se elevavam e baixavam, formadas pela floresta sempre verde e por ela fluía, tranquila e alegre, a lâmina prateada do grande rio.

Como era grande e sem fronteiras a magnífica criação de Deus! Aqui não se percebiam limites. Por toda a parte a floresta barrava o horizonte. Espontaneamente flagrei-me diante dos contrários. Como filha da metrópole que conhecia de vista os arranha-céus de New York e  as metrópoles densamente habitadas da América, quase não conseguia entender  que na mesma terra, lá as pessoas  são obrigadas a privar-se do chão debaixo dos pés e viver amontoadas em edifícios de muitos andares. Aqui disponível uma espaço sem fim, a gigantesca e livre natureza, intacta guarda todos os seus tesouros e aguarda apenas que a mão do homem se sirva deles.

O peito parecia-me pequeno para respirar tanta amplidão e tanta liberdade. De qualquer forma o que se estendia diante de mim, não era sonho. Era real e verdadeiro. O principal e o fundamental resumia-se: havia chão e solos em abundância e em tamanha exuberância que não deixava nenhuma dúvida. Quem aqui conquista o seu chão e sabe vencer as dificuldades oferecidas pelo começo, garante o futuro para si, seus filhos e filhos dos filhos. Foram essas as reflexões que me ocuparam a mente durante essa primeira e impactante viagem sobre Uruguai.

Depois de algumas horas de uma  tranquila viagem rio abaixo, escutamos ruídos misturados com o ronco do motor. Em seguida entraremos nas “corredeiras” avisou o capitão e direcionou o barco para a  outra margem, no lado do Rio Grande do Sul. Lá, segundo explicou, o canal era mais largo e menos perigoso, com o atual nível da água. As corredeiras são formações rochosas debaixo da água que, em período de nível baixo, se transformam em correntes velozes que esguicham, espumam e produzem um ruído todo característico. São perigosas para navegadores inexperiente. Mas o nosso capitão conhecia as manhas, sabia onde se encontravam o pontos mais perigosos, assim como os canais através dos quais nos pilotou sãos e salvos. Em pé na canoa, seu ajudante, o caboclo segurava uma vara grossa e comprida e com ela esquiva a canoa, ao passar pelas rochas, quando a aproximação era demasiada. Não me sentia lá muito à vontade quando, em algum momento, o  fundo do barco dava um encontrão na rocha. Mas o Mathias, o caboclo, tinha prática em evitar os encontros mais sérios. Passamos por duas dessas corredeiras. As de Catres foram as últimas, como nos tranquilizou  o capitão. Até o nosso ponto de desembarque não havia mais nenhuma.

Em Catres avistamos o primeiro telhado maior perto da margem do rio. Mathias informou-nos que lá fora instalada uma serraria e mais adiante onde se avistava uma clareira, morava seu patrão, o agrimensor Mayntzhusen. Acrescentou que era um lugar muito bonito e lá cresciam magníficas bananeiras e laranjeiras. E para completar explicou-nos o capitão que naquele ponto o pequeno rio Macuco desembocava no Uruguai, marcando a fronteira entre os empreendimentos de colonização  de Porto Feliz dos evangélicos e Porto Novo dos católicos. O caboclo pretendia desembarcar no Macuco, mas a pedido do capitão continuou de boa vontade conosco.

Observei pela primeira vez uma caboclo, pois, essa estirpe de gente, era pouco conhecida na região do Alto Taquari, onde antes morávamos. De qualquer forma o Mathias parecia ser um sujeito muito serviçal e de boa índole. Para mim o mais simpático nele vinha a ser seu nome. Na minha cidade natal de Trier, em cada dez rapazes, um chama-se Mathias. No bairro de Skt. Mathias encontrava-se a minha casa paterna.  Fui batizada no túmulo do apóstolo. E agora    um caboclo, um mateiro de nome Mathias, pilota o nosso barco ao encontro da nova querência. Como chegou a esse nome? Não fazia diferença o Mathias agradava-me. Mais tarde empregou-se com meu cunhado, foi um homem estimado e nunca deixou de mostrar-se um trabalhador bem disposto e confiável.

Navegávamos, pois, em terras de Porto Novo, nossa nova querência. Depois de passar pelo Macuco e vencer a curva, Mathias embicou o barco para o meio do rio e contou-me que conhecia muito bem meu marido; que sabia como se passavam as coisas e contou-me ainda muito mais, que infelizmente não consegui entender direito por causa do meu português precário na época.

Passava bem do meio dia quando nos aproximamos da desembocadura do rio Pardo. De propósito o capitão fizera uma grande curva, a fim de nos proporcionar uma ampla visão sobre a clareira aberta.

“Olha lá adiante” e apontou com a mão. “É a linda casinha, construída pelo próprio Rohde”.

Imediatamente meus olhos captaram a visão e, no meu íntimo acrescentei: “construída para mim”. Será que ele suspeitava de que eu me encontrava tão próxima que, os olhos brilhando de felicidade, saboreava a visão do que seria a minha nova querência. Alvorocei-me a tal ponto que chorei de alegria. Aqui estávamos. Todas as peripécias tinham sido superadas e encontramos um sossego celestial e uma profunda paz. Não demoraria e eu abraçaria agradecida e assegurar-lhe, que neste momento entendia realmente as razões de seu encantamento por esta terra. Contemplando-a de longe, nunca imaginara que a minha primeira casinha na floresta virgem fosse tão simpática.

Já não conseguia dominar-me, pus-me em pé na canoa e com a mão na boca, mandei um sonoro “juhuuu” por cima do rio. Todos tínhamos o olhar preso para a bela casinha, que se erguia na encosta, cerca de 150 metros afastada do barranco. As crianças fizeram coro com os gritos e o júbilo. Percebemos perfeitamente que algumas pessoas se movimentavam na varanda, e nos imaginamos que viriam ao nosso encontro, já que a canoa tomara a direção da margem. Esperamos em vão por um bom tempo. O barranco alto impedia a vista. Não apareceu ninguém e eu não tinha noção de onde descarregar a minha bagagem. A terra dos Tim ficava  20 minutos  a jusante. Tinham que seguir viagem. Eu estavam agitada e angustiada, quando ninguém apareceu para dar as boas vindas. Não me restou outra saída do que desembarcar e verificar o que estava acontecendo. Com muito esforço alcancei a clareira e verifiquei a situação. Avançar para a frente, nem pensar, pois, o mato recém derrubado jazia no chão, numa confusão total, parecendo-me impenetrável. Subi num grosso tronco de árvore derrubada e angustiada gritei o meu “Huhuuu” e o nome do meu marido. Sacudi o guarda-chuva no ar, para assinalar o lugar onde me encontrava entre os galhos e os troncos caídos.

Cerca de 60 metros separavam-me da casa permitindo-me observar tudo. De repente tudo começou a movimentar-se lá em cima. Escutei então o longamente esperado: Minha Nossa Senhora, minha mulher!” Aos saltos veio ao meu encontro pulando por cima de troncos de árvore caídos numa trilha, que eu não tinha percebido. Os minutos de tormento da espera de que além se manifestasse, pareceram uma eternidade e tiraram-me o ânimo. Cai chorando em seus braços  e não pensei mais em nada a não ser; “Finalment no destino, e em segurança”.

Carregou-me nos braços passando por cima dos troncos de árvore, trilha acima, em direção à casinha. Um bom número de curiosos estava reunido para saudar-me.

Soube então o motivo porque ninguém apareceu para nos dar as boas vindas. Ao  escutarem o barulho do motor desconfiaram que se tratasse de um novo assalto por parte dos revolucionários. A desconfiança aumentou ao escutarem a nossa confusão de gritos. Concluíram que não podia tratar-se de um frete regular, já que a gasolina descera até a parte inferior da colônia e ainda não retornara. Conclusão. Esconder e por em segurança o que era possível e, em meio a esse afã, meu marido reconheceu-me pela voz.

Obviamente a surpresa foi enorme, pois, nesses dias perturbados, ninguém se imaginou a nossa vinda. Para mim foi o dia mais feliz. Jamais o esquecerei. Para minha maior alegria notei duas jovens senhoras no meio do grupo. Sorrindo aproximaram-se de mim e apertaram-me a mão. Tratava das duas valentes “meninas Beuren”, que em companhia de seus jovens maridos, há pouco tinham realizado a viagem de núpcias para a florestas virgem para tomarem posse de suas glebas. A gasolina descarregara  gêneros alimentícios e elas se encontravam aí para abastecer-se do mais necessário. Somos de momento quase dez mulheres (Frauleut) na zona, comentaram elas, conceito que significava muito mais do que as simples palavras espremiam. Estávamos felizes por sabermos umas das outras, embora as distâncias que nos separavam não fossem pequenas.

Depois que os dois casais se despediram com seus alforjes recheados, ainda deu tempo para uma vistoria nas redondezas, antes que escurecesse. Hoje eu era hóspede aqui e deveria apenas olhar. Meu marido conduziu-me como uma criança pela mão para conhecer a simpática casinha.

“Minha intenção foi deixar tudo pronto até os últimos detalhes até a tua chegada, como fora planejado. Como te antecipaste tens que contentar-te com o que tem”. De qualquer forma ambos estávamos contentes porque as coisas tomaram esse rumo. A localização da casinha com a vista sobre o rio e a floresta virgem, era maravilhosa. Não sabia como me maravilhar de como tudo estava tão bem instalado e a arquitetura artística da casa. Tábuas de cedro aplainadas à mão forravam o quarto grande. As guarnições das portas e janelas já estavam colocadas. A porta e as janelas já cortadas, aguardavam sobre a banca de marceneiro feita à mão. Para já estariam prontas.

“Até lá vamos pendurar os velhos sacos nas aberturas durante a noite. Foi a única coisa que os bandidos não levaram”, observou sorrindo meu marido.

Ponchos, roupa de cama e demais roupas o bando levou. Levou-me depois para fora. Ao lado da casa, algumas tábuas apoiadas num gigantesco cepo de árvore formavam um telhado. A cozinha na livre natureza de Deus! O imprescindível panelão preto do feijão de três pés   pendia num arame. O arroz costumava ser cozinhado junto com o feijão. Meu marido aproveitou para encostar os cepos de lenha em brasa para requentar a janta enquanto, de mãos dadas, demos uma volta.

Atrás da casa, subindo a estrada principal subi a encosta. Corre paralela ao longo do rio por todos os 18 quilômetros das terras já medidas até a séde de Porto Novo. Acima da estrada erguia-se a floresta intocada e abaixo dela o mato derrubado e queimado por toda a largura da colônia. Ao redor da nossa casinha a limpeza já feita permitia a livre circulação.

Primeiro caminhamos por toda a largura da nossa colônia. Parecia-me tudo tão enorme a ponto de não parar de repetir a pergunta, se era verdade que tudo isso era nosso.

“Sim querida, tudo é nosso e sobra lugar para nossos filhos e netos”.

Para mim, filha de cidade grande, parecia uma propriedade senhorial do tamanho que somente os cavaleiros tinham acesso na Europa. Um secreto orgulho apoderou-se de mim ao contemplarmos do alto de uma elevação a propriedade. Naquele momento eu não estava em condições quanto trabalho e quanto suor seriam ainda necessários para tornar aquela terra arável.

No dia seguinte eu conheceria o restante. Foi preciso pensar na janta e  no recolhimento para a noite antes que escurecesse, pois, não havia  iluminação. Os bandidos tinham levado  tudo. Fui então informado o que significava o “tudo”.

Mas isso tinha tempo até o dia seguinte. Meu marido não quis estragar a alegria do primeiro reencontro com coisas desagradáveis. O crepúsculo que tomava conta de tudo, guardaria por enquanto o silêncio sobre esses acontecimentos.

Quando voltamos “Eckhard”, o homem de confiança do meu marido, um homem querido e quieto, jovem e extremamente prático e que fizera sua primeira experiência de uma viagem na floresta virgem do Paraguai, acabara de aprontar a janta. Lá fora, no descampado, ao lado do tronco que o Emílio apelidou com a maior seriedade do mundo como “a nossa cozinha”, encontrava-se o primeiro e único móvel: a maciça mesa aprontada por ele, bem perto do que chamou de fogo de cozinha.

Percebia-se o odor de comida e não me faltava o apetite. Sugeri que afastássemos a mesa um pouco dos cepos em brasa, para escapar da fumaça. Neste momento aprendi a primeira lição. O Emílio explicou-me que o mais prático era assim. Em primeiro lugar a mesa tinha a sua iluminação para encontrar mais facilmente a boca e em segundo lugar, a fumaça era o melhor meio para manter as mutucas longe e assim comer com tranquilidade. Dois ou três cepos munidos com tábuas serviam como assentos. O cenário era de um romantismo assustador. Lembrava-me vivamente as nossas escursões nas férias de verão na América, nas quais costumávamos preparar, à maneira rústica dos escoteiros, as nossas refeições. Acontece que  numa situação permanente a coisa era diferente. De qualquer maneira admirei-me que as coisas me parecessem tão naturais e não sentia medo de animais selvagens, como antes na minha imaginação. E como era saboroso o feijão preto servido em pratos de folha, repetidas vezes abastecidos pelo Emílio. E para comemorar o dia ele, na condição de dono de casa, distribuiu para cada um  rolete de linguiça, salva do assalto dos revolucionários.

“Amanhã é dia de fazer pão”, foi a ordem. Onde e como era-me desconhecido. Felizmente a gasolina trouxera suprimentos. Também na minha bagagem encontrava-se o mais indispensável, pois, de roupas e utensílios nada sobrara.

Um leito simpático e macio para passar a noite foi armado sobre um monte de maravalha. Era verão e as noites quentes. Não sentia medo mesmo que  faltassem as portas e janelas, já que me garantiram que não havia tigres e cobras nas redondezas. E para o caso dos casos trouxera um revólver, de momento a única arma de fogo disponível, pois o bando Leonel Rocha carregara tudo que havia em armas, facões e demais utensílios que estavam pregados ou parafusados.

Nada percebi dos tigres selvagens que, apesar de tudo povoavam como fantasmas o meu inconsciente. Em compensação outros habitantes pouco desejados da mata virgem, fizeram-se sentir tanto mais. Falo das minúsculas mosquinhas e mutucas que passam por toda e qualquer fresta ou abertura. A fumaça é o único remédio para afugentá-las. Para ter paz o fiel Eckard acendeu fogueiras em ambos os lados da casa. A fumaça foi o mal menor na situação.


Por um bom tempo ficamos sentados sob o céu limpo e estrelado sobre o qual destacava-se o brilho da “estrela do natal”.  A luminosidade da lua, que não demorou em aparecer,  era tal que se enxergava muito bem sem iluminação. Nunca antes eu percebera tão claramente a beleza de uma noite estrelada e com luar. Quem sabe nunca a iluminação celeste nos caiu tanto em vista como, quando ainda faltava tudo que achávamos óbvio.

Fronteiras de colonização - IX

Continuação do relato de Maria Rohde
Finalmente começou a clarear o dia. Espiei para fora e observei por toda a parte figuras se mexendo e espreguiçando. Com o sinistro da noite foram-se também os fantasmas assustadores da noite. Quando clareou o dia os soldados vinham voltando do arroio. Lavados e penteados inspiravam maior confiança. Pelo que o pequeno retalho de céu visível na clareira indicava, o dia prometia ser bonito. Sem o percebermos, havíamos avançado um bom trecho para dentro da floresta virgem. Na época, as estradas que cruzavam a floresta eram novas e muito estreita. Exigiam toda a atenção para não tirar a atenção do que vinha oela frente e desviar raízes de árvores e buracos e assim contrabalançar os solavancos. Tomado ao pé da letra, “de tanta árvore não percebemos  a floresta”. De mais a mais, nosso ânimo não estava lá muito interessado em observações da natureza.

A continuação da viagem deixou-nos numa longa expetativa. Mas com aparecimento do sol os ânimos se reavivaram. Depois de cavalgar a noite toda, acabara de chegar um agrimensor vindo de Porto Feliz. Dele soubemos pelo menos algumas informações. Não estava a par de detalhes de Porto Novo, mas conhecia meu marido e era de opinião que, assim  como os outros moradores, deve ter passado por maus bocados. Falou em saques. Mas todos escaparam com vida. Segundo ele, depois do assalto a Porto Novo, os revolucionários fugiram para Barracão. De momento o perigo tinha passado e se quiséssemos seguir viagem, não convinha esperar, ou esperar em Barril a chegada dos caminhões que voltavam com  militares. Ainda conforme o informante, se a viagem transcorresse normalmente, alcançaríamos “a tempo” o local da travessia. Chegados lá era preciso esperar os caminhões que vinha do lado oposto, para que  passassem por nós, utilizando um pequeno desvio no mato.  Em hipótese nenhuma continuar a viagem, senão “estão todos ralados”.

Tudo isso eu entendi de verdade quando apertados no caminhão ele forçava lentamente a passagem pela estrada na floresta. Enrolamos a lona para enxergar e ouvir melhor. Já que a luz do sol não penetrava pelas copas das árvores, reinava permanentemente  penumbra. A estrada era assustadoramente estreita. De ambos os lados, galhos de árvore e arbustos castigavam os rostos. O traçado das estradas pela floresta, segue geralmente pelo alto das elevações, para evitar as muitas subidas e descidas. Com isso ladeiam muitas vezes declives e barrancos assustadores, enquanto do outro lado sobe a encosta. Nessas passagens escutava-se o eco vindo de quatro a cinco direções, parecendo meia dúzia de caminhões de carga vindo da direção oposta, para encontrar-nos antes da chegada ao ponto da travessia, causando apreensão e expectativa. Uma ultrapassagem num local desses era algo impensável.

A firma Klufke que na época cuidava do transporte para Porto Feliz, mantinha uma programação das viaturas que iam e vinham. Mas nós éramos novatos e estávamos apenas informados sobre aquilo que o agrimensor nos falara. Como eco do motor de um veículo faz perceber com mais nitidez a aproximação de um outro caminhão, paramos para discutir o que fazer. Mas quando o ruído cessou nos demos conta de que fora eco do nosso motor. Aliviados continuamos a viagem e chegamos no local do desvio, propositadamente construído junto a um idílico arroio. Nas circunstâncias da época fazia o papel de uma verdadeira estação de espera, onde os caminhões que vinham e iam, tinham condições de cruzarem uns pelos outros.

Mais tarde quando o tráfego de veículos se intensificou, foi preciso abrir mais clareiras na floresta para oferecer mais locais de ultrapassagem, mas as viagens continuaram tendo suas dificuldades. Quando o encontro não se dava próximo a um desses locais não restava outra saída a não ser o veículo  com o trecho mais favorável atrás de si, dar um ré. Em muitos casos a distância entre dois locais de ultrapassagem era considerável. Por sorte a consciência de camaradagem na floresta era bem grande e a ajuda mútua algo evidente. Em ocasiões em que um colega de estrada enfrentava dificuldades, podia contar com certeza com a colaboração dos demais.

Aguardávamos a chegada dos caminhões que vinha do lado contrário. Não demoraram. Relaxamos junto ao arroio. Aproveitamos a ocasião para nos lavar e fazer a higiene e recuperar o que não fora possível no acampamento dos militares. Não passamos fome porque provisões havia suficientes, já que o apetite se fora com  as incertezas por que passamos.

Os três caminhões que pararam em intervalos e depois seguiram viagem, estavam lotados com militares. O motorista alemão de um deles assegurou-nos que poderíamos viajar sem problema até o rio Uruguai; que a ordem fora restabelecida; que o grosso dos militares estava voltando; que ficara apenas um destacamento encarregado da vigilância. Ele assegurou que de agora em diante a defesa ficava por conta dos moradores; que eles tinham criado um sistema de autodefesa e estavam em alerta. O mesmo acontecia em Porto Novo e que naquela manhã uma gasolina descera até Porto Novo, para levar gêneros alimentícios para os moradores na floresta. Essas breves informações serviram de grande alívio e consegui superar um tanto o peso que sentia na alma.

Enquanto os pensamentos estão ocupados demais com um futuro preocupante, a gente se esquece do que se passa em volta e as coisas mais evidentes recuam para um segundo plano. Com os ânimos refeitos seguimos por floresta e mais floresta. Aos poucos a estrada começou a descer, bastante íngreme em alguns lugares.  Cada passo alguma cutia ou lebre cruzava pela nossa frente. Observamos  bem de perto dois veados e um tatú parou debaixo das rodas – coitado do animalzinho. Mas de tigres e outras feras, por enquanto, nada. Encontramos os animais quase sempre perto de córregos ou arroios, a procura do líquido  benfazejo  no calor de dezembro.

Não percebemos nada do sol ardente de dezembro. Bem no final da tarde começamos uma descida mais íngreme e passamos pela clareira por onde penetraram os primeiros raios do sol. Mais alguns quilômetros para alcançar o rio. Depois de mais algumas curvas, fomos saudados pela forte claridade que não tínhamos visto o dia todo. Mais alguns metros e o caminhão parou. Diante de nós espraiava-se o Uruguai.

Graças a Deus! Finalmente chegamos! Ao descermos do caminhão ouviram-se de todas as gargantas profundos suspiros de alívio. O motorista gritou para o barqueiro na outra margem “vem-nos atravessar!” Estupefatos contemplamos o espetáculo na nossa frente.  Os últimos raios do sol perto do horizonte rebrilhavam na superfície esverdeada do rio. Não demorou o vermelho e o ouro mergulharam a paisagem toda num púrpura real. Tudo passou para uma mescla de verde e ouro. Nosso olhar não se cansava. Diante de nós o majestoso caudal, refletindo em suas águas tranquilas ambas as margens. Lá na encosta da outra margem a sede da colônia de Porto Feliz. Identificamos nitidamente as simpáticas moradias com seus estilos de construção, que faziam uma boa impressão em nós. A clareira na floresta era bem ampla e a nossa estupefação não tinha limites.

Neste meio tempo encostou a barca. Contra toda a nossa expectativa, a travessia aconteceu sem qualquer incidente. No meio do caudal, de onde a vista alcançava mais longe, fomos dominados pela sensação de uma paisagem de tamanho impressionante. Tínhamos a impressão de nos encontrarmos frente a uma natureza de dimensões telúricas, oferecendo terra e espaço suficiente no qual as futuras gerações encontrariam condições para crescer e multiplicar-se ilimitadamente.

Envoltos no magnífico vermelho púrpura do entardecer, que prenunciava um esplendoroso dia seguinte, estacionamos em frente ao hotel. Quartos convidativos e camas limpas foram-nos oferecidos e uma robusto café da tarde acenava, apesar dos pedidos de desculpas, que estava tudo vazio nas vizinhanças e todas as mercadorias vendidas, desde que as tropas ocuparam o lugar. Não se esqueça também que  o assalto dos revolucionários deixara pouca coisas para trás. De  qualquer forma fomos bem servidos. Certamente muita coisa fora escondida em locais secretos. O hoteleiro informou-nos que a única gasolina ( barco a motor) disponível descera o rio para Porto Novo junto mantimentos. O transporte anterior fora interceptado e pilhado pelos revolucionários. Deixou claro também que nos preparássemos para alguns dias de repouso, visto que a gasolina dificilmente retornaria antes de dois ou três dias. A informação em absoluto não nos agradou, pois, exaustos da viagem,  pretendíamos chegar ao destino o mais rápido possível.

Pus-me a caminho até a casa de comércio de Klufke para saber o que poderia ser feito. No caminho tive ocasião de tomar contato mais de perto com a simpática povoação. Os  dias eram compridos e, no crepúsculo,  viam-se por toda a parte  as pessoas sentadas na frente das casas. Cruzei por muitos pedestres que, pelo que pareciam fazer entender, foram buscar notícias e correio, quando perceberam a  chegada do nosso caminhão. As simpáticas casinhas com seus jardins com flores na frente, as cercas cuidadas, os caminhos limpos, tudo isso não correspondia propriamente à imaginação que eu tinha da floresta virgem. Para onde eu me dirigia escutava o melhor alemão erudito, coisa rara em outra parte na colônia. As pessoas com quem conversei, evidentemente não eram colonos.

Soube que uma parte dos moradores da cidade eram alemães, vindos da Europa depois da Guerra Mundial. Fixaram-se na colônia, mas nem sempre foram bem sucedidos. Uma parte deles voltou mais tarde para a Alemanha ou mudaram-se para as  cidades. Faltava-lhes perseverança para acostumar-se com a vida de sitiantes ou a sua formação recomendava outra atividade para ganhar a vida.

Na casa de comércio de Waldemar Klufke as pessoas admiravam-se muito pelo fato de que nós nos tínhamos arriscado  a viajar em tempos tão perturbados. Fiquei sabendo também de detalhes sobre o assalto a Porto Feliz. O  sr. Klufke percebeu logo que a nossa vontade era de descer, o mais rápido possível o rio, até Porto Novo. Ele fez o melhor que pôde e empenhou-se para conseguir ocasião para viajar na manhã seguinte, já que havia também carga para mandar.

Cumpriu a palavra. Ainda durante a noite um velho motor foi posto a funcionar e instalado numa canoa usada para transporte de emergência no Uruguai. Avisou que esivéssemos de manhã cedo a postos no porto, já que a viagem com a água baixa era lenta e consumiria a maior parte do dia. Cansados em extremo dormimos naquela noite como  marmotas. A natureza reclamava seus direitos depois de uma viagem cheia de peripécias.


De manhã cedo fomos tirados da cama. O café estava na mesa, os leitões dos Timm e meus gatinhos servidos. Portanto, avante. O caminhão levou a mudança até o rio, onde a canoa preparada estava à espera. A tripulação consistia de um antigo marinheiro marítimo sabia lidar com o motor reumático. Um caboclo serviu de ajudante e timoneiro. Sem demora tudo estava à bordo. O nosso “capitão” sabia muito bem como garantir o equilíbrio. Estávamos prontos para a partida e ansiosos, acomodados em caixas, sacos e pelegos. Cuidamos para sentirmo-nos tão à vontade quanto isto era possível para a longa viagem pela água,. Um dia de céu amigo de dezembro parecia sorrir sobre as nossas cabeças, no momento em que a nossa canoa  começou a descer em direção a Porto Novo, nossa futura querência.

Fronteiras de colonização VIII

As impressões de uma mulher pioneira na colonização de Porto Novo
A autora dos relatos que seguem foi a senhora Maria Rohde, nascida Wiersch, esposa de Carlos Rohde, primeiro Diretor da colônia de Porto Novo. Ela nascera em Trier na Alemanha, migrara com a família para Cincinati nos USA, onde obteve a cidadania americana. Depois da Primeira Guerra Mundial migrou com os  pais e irmãs para o sul do Brasil, fixando-se em Estrela, na localidade de Corvo, hoje Colinas. Casou-se com Carlos Rohde que fez parte do primeiro grupo de colonizadores, como consta da relação da postagem anterior. Em dezembro de 1926, Maria foi residir com o marido numa colônia de terra em Porto Novo e acompanhou durante mais de 20 anos a evolução daquela nova fronteira de colonização. Vale apena acompanhar o registro das suas experiências como mulher, coisa rara, num empreendimento daquele porte. Nas postagens que seguem reproduzimos o relato que no original integra, como capítulo II, a obra: “Wie eine Frau eine Urwaldsiedlung wachsen sah”. – “Como uma mulher viveu o desenvolvimento de uma povoação na floresta virgem”.

Tradução do original
Movidos pelas informações de março de 1926, reuniu-se um grupo de viajantes de Estrela que planejou a partida do primeiro grupo de compradores de terra. Em Santa Maria associaram-se a ele  outros interessados.

Naquela ocasião eu tinha dificuldade em imaginar o que significava na verdade o “ir para a mata virgem”. Inevitavelmente fantasias as mais impossíveis começam a  povoar a imaginação: as lutas com tigres, tamanduás, macacos, índios, etc. Depois vem os terríveis gigantes da floresta, com um metro de diâmetro, a vegetação baixa intransponível e as muitas cobras, além de uma infinidade de outros viventes selvagens.

E lá meu marido projetara armar a  tenda para o nosso futuro?!
Já viajara para lá a fim de examinar a mata virgem. Voltou tomado por inteiro pelo entusiasmo e agora partiu como guia, com os primeiros compradores de terra e providenciar o local da nossa morada definitiva. Eu ficaria com meu filho pequeno na casa dos meus pais, até que um talião de mato fosse derrubado e construída a primeira casinha. Ainda não estava em condições de familiarizar-me de todo com a perspectiva de partir para os ermos e deixar tudo para trás o que tem o nome de cultura. Mas a empolgação do meu marido somado a um pouco de curiosidade pelo desconhecido, acompanhar a evolução de um povoamento étnica e confessionalmente identificado, desde o seu embrião, serviram de estímulo e combustível ao mesmo tempo. Representaram também um apelo para também naquelas circunstâncias cumprir o papel, igual aos nossos antepassados, embora em condições muito mais difíceis. E por isso, a decisão estava tomada: “Eu te acompanho, para o que der e vier”.

Foi então que assisti à partida dos primeiros colonizadores. Observei atentamente os personagens. Eram homens sólidos e sérios, os alforjes cheios e estufados contendo o mais essencial e não faltavam os ponchos. Perguntei, se também levavam armas suficientes?Um deles deu uma risada e disse: “Carregamos conosco o revólver”, e apontando para o sólido facão forjado na ferraria, acrescentou: “este basta, com ele resolvemos tudo”.
A expressão do rosto demonstrava, que levavam a coisa a sério. Assim partiram afoitos, os primeiros pioneiros em busca de terra. Alguns já eram pais de família com certa idade, em busca de terras para os filhos, outros para si próprios.

O que no fundo, no fundo mais me preocupava foram notícias vindas da mata virgem. Eu sabia da não existência de uma agência do correio e as cartas e informações ficavam por conta de pessoas privadas que as entregavam na estação do trem mais próxima em Belisário, a 200 quilômetros de distância. Foi preciso reforçar a confiança em Deus e lembrar a verdade: “Sem o seu consentimento não cai sequer um cabelo da cabeça”. Disso também o idoso senhor Simon Schaefer, que fazia parte do primeiro grupo, estava convencido. Admirava-me muito que um senhor de idade tão avançada ainda se dispunha a partir para a mata  virgem. Ele dizia: “É por causa dos filhos. Há lugar para todos e uma vez reunidos, os outros seguirão. Ao trabalho estamos acostumados, e assim, um pode ajudar ao outro.

Este velho veterano da mata virgem tornou-se mais tarde o nosso vizinho. Em pouco tempo, junto com os filhos fez arável uma grande área de floresta. Cultivou a sua terra com aplicação e fé em Deus. E a bênção não se fez ausente.

A esse primeiro grupo em busca de terras seguiram, um por um, muitos outros. Não poucos ficavam logo no mato para abrir clareiras e instalar o primeiro abrigo. Outros, depois de fechado o negócio, voltavam para buscar ajuda. Falavam da beleza e da qualidade da terra e das vantagens que a Sociedade União Popular oferecia. O testemunho do que pessoalmente tinham visto serviu de reforço para a propaganda. . Além disso publicavam-se regularmente informações no Skt.Paulusblatt, órgão da Sociedade União popular. Não demorou e Porto Novo fazia parte da conversa diária das pessoas.

Quando então seguiu uma propaganda sistemática, em parte pelo secretário itinerante da Sociedade, em parte por impressos distribuídos entre a população, houve uma forte intensificação da venda de terras. Pessoas em busca de terra de todos os cantos do Rio Grande do Sul, dirigiam-se até lá, fazendo com que o empreendimento festejasse um bom começo. Aconteceu que na Central em Porto Alegre cabeças lúcidas se empenharam sem descanso, para aplainar  o caminho e resolver os problemas que, pela própria natureza das coisas, não eram poucos.

De qualquer forma o começo prometia. As perturbações da revolução de 1926 motivaram preocupações aqui e acolá, mas apostava-se que a região de florestas despovoada, seria poupada. As informações que chegavam na minha casa eram tranquilizadoras, ao ponto de substituir minha percepção da floresta virgem por representações bem mais positivas. O tempo custava passar até que a nossa “casinha” na mata virgem estivesse em condições para viajar com toda a “mudança” para lá. Informada por cartas e relatos de pessoas, pude compor um quadro bastante real da evolução das coisas enquanto empenhava-me preparando a mudança. Estava previsto que tudo estivesse ordenado até o fim ano e meu marido me viria buscar. 

Acontece que já em outubro recomeçaram as intranquilidades na fronteira e os jornais noticiavam sérios assaltos em muitos lugares. Com isso a movimentada venda de terras entrou em compasso de espera, pois, em tempos de tanta perturbação ninguém arriscava-se a andar pelas estradas. Com isso a circulação de notícias foi seriamente afetada. Quando, em novembro aconteceram revoltas militares de maior porte, o serviço de comunicação caiu a zero. Passaram-se semanas sem que chegassem até nós notícias da floresta virgem. Somou-se a tudo isso um período de chuvas fora do comum, com inundações e  histórias de arrepiar o cabelo começaram a circular. As perspectivas de um encontro em breve, pareciam cada vez mais longínquas.

Certo dia espalhou-se o boato de que um comprador de terra que retornara de Porto Novo, teria contado que os revolucionários sob o comando de Leonel Rocha, teriam assaltado Porto Novo e assassinado todos os moradores. Mesmo que não engolisse assim  no mais o boato, o fato causava-me muita apreensão, já que por semanas estava sem notícias. Telegrafei à Central de  Porto Alegre que também estava sem informações. O sr. Secretário Geral não voltara ainda da viagem para a colônia.

Não obtendo informações, decidi, custasse o que custasse, viajar até lá. Todas as objeções da parte dos pais e amigos não adiantaram. Já não tinha condições de suportar a incerteza. Nosso filhinho de um ano ficaria bem protegido junto aos avós e a data da viagem fixada para 10 de dezembro. Um caminhoneiro de Corvo aceitou levar-me, já que ele também tinha suas apreensões com parentes lá estabelecidos. Além disso, há tempo, uma outra família aguardava ocasião para mudar-se.  A oportunidade não podia ter sido mais favorável. Associei-me ao grupo, mas levei comigo apenas o mais indispensável até que entrassem dias mais seguros. Os nossos pertences podiam tranquilamente ficar com meus pais. Despedi-me de ânimo pesado do filho, dos pais e dos irmãos. A incerteza e a preocupação para com a sorte do meu esposo, forçavam-me para a floresta virgem.

Foi numa manhã quente e mormacenta de dezembro. Bem cedo, estava tudo pronto para a partida e antes do nascer do sol estávamos acomodados no caminhão. Os filhos da família Timm, meus companheiros de viagem, estavam fora de si de alegria com a perspectiva da primeira grande viagem. Encaravam as coisas e acontecimentos com alto astral e grande expetativa. A despedida não lhes parecia difícil. As crianças não percebem que, antes de tudo, é preciso cortar os laços afetivos com a antiga querência e as pessoas amadas. A última saudação e o último aperto de mão: “Deus os proteja!”  O momento ecoava com insistência na alma e no coração. Por um bom tempo olhava para trás e enxergava minha mãe com o menino nos braços abanando, até que a distância os fez desaparecer e a realidade começou a reclamar seus direitos.

Além da família de nove membros, embarcaram mais alguns outros passageiros que com os solavancos do carro denunciavam sua presença. Um casal de redondos e belos leitões de raça, que estavam acomodados num caixote preso no estribo, garantiriam,  também na mata virgem a proliferação da criação de suínos do Rio Grande do Sul. A família acomodara de tudo no fundo do caminhão, que na época felizmente não tinham as dimensões dos de hoje, senão, em pouco tempo teríamos atolado, pois, as estradas eram bem ruins. Apesar de tudo a viagem pela região colonial antiga correu a contento, isto é até Neu Württemberg, onde chegamos no segundo dia ao anoitecer. Tudo correu com relativa tranquilidade, excetuando uma noite passada dentro do caminhão por causa de uma violenta tempestade. O temporal nos surpreendeu numa região com perigosos declives e estradas precárias e a viatura derrapava.

Dos revolucionário dos quais nos haviam alertado, até este momento não tínhamos visto ou ouvido nada. Contudo nos desaconselharam insistentemente em Neu Württemberg a continuar a viagem. Corria a informação de que as coisas andavam feias em Porto Novo e Porto Feliz e que a brigada militar fora deslocada para a lá, a fim de conter os revolucionários. Além disso corríamos o risco de, na viagem, o nosso caminhão ser requisitado para o transporte de tropas, fato que ocorrera em vários casos nas semanas anteriores com carros em viagem. Aguardamos por um dia e depois não nos deixamos segurar mais. Não conseguíamos imaginar que uma família com numerosas crianças, fosse pura e simplesmente fosse largada na estrada com seus pertences. Portanto, seguimos viagem.

E, de fato, a parir de Neu Württemberg não cruzamos por uma único carro. Em toda a parte encontramos postos de vigia e observamos militares reunidos em grupos maiores  e menores. Com a chuva baixara a temperatura, por isso descemos as lonas nas laterais do carro, tornando difícil identificar o tipo de carga que levávamos. Pouco antes de chegar em Tesoura, avistamos uma grupo de soldados esperando na margem da estrada. Um dos uniformizados fez-nos parar na estrada. Senti-me pouco à vontade. Acreditava que o impossível se abatera sobre nós. Desesperada procurei os vocábulos no meu português precário da época, para uma explicação plausível e assim sermos liberados para continuar a viagem. Neste meio tempo ficou claro de que o educado homem de farda, apenas estava interessado por informações sobre um caminhão que eles estavam esperando. Com  a negativa do motorista permitiu que continuássemos a viagem – Graças a Deus. Apesar disso não me foi possível afastar a sensação desagradável de que o alerta bem intencionado do pessoal de Neu Württemberg se tornasse realidade.

Tudo apontava para esse desfecho. O tempo e as estradas estavam molhadas e escorregadias e os caminhões requisitados para o transporte das tropas não apareciam. Por todos os lados havia tropas acampadas esperando por transporte. E não deu outra. Na localidade seguinte fomos interceptados. Na meia escuridão do interior do caminhão peguei o pequeno Timm no colo, envolvi-o num cobertor e o tomei nos braços como se estivesse gravemente doente. Ainda tive tempo para cochichar no ouvido do motorista para que ele fizesse ver às autoridades que tínhamos conosco alguém gravemente doente. As coisas se passaram conforme minhas suspeitas. Um sargento pôs-se a negociar um transporte para o seu pessoal, com a promessa: “só para um pequeno trecho”. O motorista entendeu o jogo e insistiu que levava um doente para o médico. E quando o sargento percebeu minha cara de sexta-feira santa e gaguejando algo como “febre e tifo”, baixou a lona e mandou seguir.

Tínhamos encontrado o remédio para salvar-nos e a confiança do seu efeito também em futuras eventualidades. Sem maiores contratempos chegamos ao campo. Lá vivenciamos, principalmente as crianças, uma gostosa aventura. No hotel em Soledade meus gatinhos, aliás mansos, que eu levava numa caixa fechada com tela para moscas e deveriam servir de partida para povoar a floresta virgem, correram bufando pela mesa, quando levantei um pouco a tampa para dar-lhes comida. O episódio terminou numa verdadeira caçada digna de uma aventura. Depois foi a vez dos leitões do Timm. O caminhão ao passar por um barranco saliente encostou com o estribo sobre o qual se encontrava as caixa com os leitões. Esta rompeu-se e grunhindo os bichinhos mandaram-se campo afora. Desapareceram no capim alto e puderam ser localizados pelo grunhido. Para alegria das crianças foi preciso organizar um autêntico cerco e depois de duas horas estavam de volta na sua prisão. A viagem continuou através do interminável campo. Atravessamos Palmeira  com a respiração retida e as lonas abaixadas. Militares movimentavam-se por toda a parte e as pessoas observavam com ar de espanto. Quem sabe perguntavam-se se o caminhão levava mais um reforço para as tropas acantonadas na zona da floresta. Ninguém suspeitava de que se tratava apenas de estrelenses pacíficos de passagem para  a floresta virgem. De qualquer forma passamos sem contratempo e ao entardecer alcançamos a região da floresta. No caminho encontramos por toda a parte  soldados isolados ou em grupos menores,  cuidando de  postos de vigia. Haviam-nos informado que em Barril [1]- pequena localidade formada por apenas algumas cabanas – havia um pequeno “hotel”, no qual era possível pernoitar, coisa que pretendíamos ainda antes do escurecer. Aos poucos a estrada tornou-se cada vez mais estreita. As árvores formavam uma abóboda  sobre as nossas cabeças, dando a impressão que escurecia antes do tempo. Observamos ao longe uma clareira. Pelos nossos cálculos deveria ser Barril. Respiramos aliviados com a perspectiva de que, pelo menos naquela noite, encontrar um lugar para descansar e relaxar o corpo depois de uma viagem tão cansativa. O motorista soltou um suspiro de alívio, pois, vencera a parte mais difícil da sua tarefa. Com a disposição renovada rumamos em direção à clareira.

Já quase escuro nos aproximamos da cabana maior que nos fora indicada como sendo o hotel. Alguma coisa que, á primeira vista não conseguíamos identificar, impedia a passagem. De repente tudo começou a movimentar-se  e antes de deixarmos  nossos assentos, uma multidão movimentava-se em nossa volta. Tudo aconteceu tão silenciosamente quando percebemos que tínhamos invadido um acampamento de militares, que se instalara no local para passar a noite. Por toda parte viam-se, sentados ou deitados, os cultos cansados depois de uma longa marcha. Também em ambos os lados da estrada mexiam-se soldados e cavalos relinchavam.

E agora? Arrastamo-nos para fora para verificar se no “hotel” havia algo para beber e se era possível passar a noite.

O dono informou-nos com pesar: “Nem água”. “Os senhores nem podem imaginar-se o quanto uma tropa dessas precisa, e buscá-lo onde não há nada”. Com a seca o poço há tempo não tinha mais água, nem para as pessoas nem para os animais. Mas se tivéssemos um pouco de paciência, mandaria um soldado até o arroio para, pelo menos, buscar água para o chimarrão. Infelizmente para comer não havia nada e as camas e os colchões ocupados pelos oficiais”.

Por sorte levávamos conosco provisões próprias e não foi preciso passar fome. Sentados no estribo mastigávamos e engolíamos em seco. Mais  tarde tomamos chimarrão para matar o grosso da sede. O hoteleiro contou-nos depois o que havia acontecido e como andavam as coisas. De noite de qualquer forma as coisas parecem muito mais negras e não havia outra saída a não ser esperar pelo amanhecer, observar tudo na luz do dia e tirar as conclusões. Estávamos tão cansados da viagem de dias, do calor e do pó, que tínhamos um único desejo: dormir. Depois de algum tempo apareceu a senhora hoteleira para oferecer-nos um canto na cozinha. Assim pelo menos as mulheres e as crianças dormiriam sob o telhado. Os ponchos e pelegos seriam da nossa conta. Iluminados pelo fogo do acampamento os Timm armaram o pernoite no canto da cozinha. Eu, da minha parte, preocupada com os nossos pertences, preferi dormir no caminhão. A senhora Timm manifestou preocupação pelo fato de uma mulher sozinha, passar a noite em meio a um acampamento de militares. Mas eu a tranquilizei dizendo, que eu tinha como me defender. De qualquer forma, o motorista que em algum lugar tomava o bem merecido chimarrão, vigiaria a carga.

Pedi para falar como o oficial que comandava a guarnição. Ele falava um pouco de francês e inglês e assim consegui entender-me com ele. Apelei para a sua honra de oficial e pedi garantias que eu pudesse  passar a noite no caminhão sem ser molestada. Ele percebeu logo com que tipo de pessoa estava conversando. Ordenou imediatamente a remoção das instalações do acampamento e os homens perto do caminhão. Deu-me solenemente a sua palavra de honra de oficial de que fosse descansar tranquila, que ele respondia por seus homens. Agradeci-lhe pela gentileza e o informei que carregava comigo um pequeno revólver. Em caso de emergência daria um disparo de advertência para o ar. Ele deu uma risada e garantiu que neste caso todo o batalhão me defenderia. Esforcei-me para acreditar. Acontece que aquelas figuras imundas, queimadas do sol e desgrenhadas, pareciam selvagens e de forma alguma inspiravam confiança. O seguro morreu de velho. Fechei a lona da melhor forma possível, enrolei-me no cobertor, escondi o revólver debaixo do travesseiro que por sorte trouxera comigo e acomodei-me como pude.

Em dormir, nem pensar. De qualquer forma deu para descansar um pouco. Percebi na escuridão a vinda do motorista que se acomodou na frente sobre o assento na cabine. Reinava um silêncio desconfortável. Os últimos fogos do acampamento estavam apagados. A noite parecia interminável. Não conseguia identificar os ponteiros do relógio. A ronda da patrulha indicavam-me a passagem de cada hora. Devem ter sido as  substituições das guardas. Na minha cabeça agitavam-se os pensamentos mais loucos. Era contudo verdadeiro que acontecera um assalto a Porto Novo, mas ninguém sabia informar alguma coisa certa. O que teriam passado os pobres moradores na floresta? O que estará acontecendo já que chegavam tantos reforços? Não tinha coragem de continuar pensando e apenas escutava apreensiva o silêncio da noite, com a esperança de perceber o carros que deveriam estar voltando. Tudo em vão. O oficial dissera-me que, para o meio do dia seguinte, esperava-se o primeiro caminhão vindo de Porto Feliz, com notícias e ordens. A necessidade faz rezar. Percebi então que em tais circunstancias é um privilégio todo especial, encaminhar todas as nossas preocupações  e apreensões, ao Pai do Céu por meio da oração, que, à sua maneira, podemos estar certos da sua atenção paternal.

(continua na postagem seguinte)