Falar
em saúde ou na sua antípoda a doença nos primeiros cem anos da imigração alemã
no Sul do Brasil, significa tocar num assunto que deixava as pessoas e as
comunidades em constante sobressalto. É verdade que os imigrantes trouxeram bons
hábitos de higiene e alimentação que, aliados a uma formação média de bom nível, fizeram com que a mortalidade infantil fosse
relativamente baixa e as condições de saúde de crianças e adultos aceitável em situações normais. A
questão assumia outras proporções nos casos de doenças mais sérias e de
acidentes de trabalho com ferimentos graves. Tornava-se dramática nos períodos
de epidemias de tifo, cólera, varíola, que exigiam a intervenção de médicos ou
pelo menos pessoas com conhecimentos mais avançados de medicina. O Pe. Ambros
Schupp caracterizou assim o estado das coisas com a saúde nos primeiros tempos
da imigração, na sua obra: “A Missão dos Jesuítas Alemães no Rio Grande do
Sul”:
A situação na colônia no
que diz respeito a doenças foi durante muito tempo lamentável. Na colônia
praticamente não havia médicos e, por isso mesmo, tanto mais charlatães. Mandar
vir um médico da cidade significava na prática sacrificar uma fortuna e nem
então se tinha certeza que de fato se tratava de um médico pois, muitos que se
apresentavam como médicos e doutores, na verdade eram apenas contínuos de
farmácia, auxiliares de hospitais ou pessoas do gênero. (Schupp. 2004, p.
204-205)
Consideradas
essas circunstâncias fica relativamente fácil deduzir os recursos disponíveis
para socorrer os colonos nas suas enfermidades. Naquelas rotineiras como gripes, resfriados, febres ou
ferimentos superficiais, o povo recorria aos remédios caseiros de chás,
compressas, água com sal, infusões à base de aguardente, etc. Não raro
procuravam-se charlatães ou algum pseudo
médico que por acaso estivesse ao alcance. Em doenças mais graves e ou
ferimentos mais sérios a única saída
consistia em entregar a questão nas mãos
de Deus e rezar. Pode-se afirmar que esta era na verdade a situação na grande
maioria das comunidades coloniais nas primeiras gerações da imigração.
Diante
dessa penúria em relação à assistência relacionada com a saúde e às doenças, tanto
pastores protestantes quanto sacerdotes católicos costumavam prestar, ao lado
da assistência pastoral propriamente dita, também algum socorro no plano da
saúde. O Pe. Schupp ao referir-se a esta
questão deixou registrada a atuação dos padres Lipinski, Blees e Pfluger.
Já o Pe. Lipinski dispunha
de sua farmácia homeopática e, mesmo que suas
doses ínfimas não produzissem grandes efeitos, contribuíam para elevar a
confiança dos pacientes e aliviar o seu sofrimento. Os doentes não se esqueciam
dos seus préstimos e ainda muito tempo mais tarde lembravam-se dele com grata
recordação. Mais tarde o Pe. Blees
conquistou, por assim dizer, fama
de médico com suas curas, a ponto de muitos colonos vindos de mais longe
procurarem seus conselhos e sua ajuda. Nas suas excursões levava sempre três
coisas: sua farmácia homeopática, seu bom humor e seu consolo cristão. As três
faziam dele um hóspede bem-vindo em toda
a parte. (Schupp, 2004, p. 205)
A
medicina pastoral era praticada por muitos outros sacerdotes que, ao lado da
atividade religiosa, costumavam prestar também esse serviço de solidariedade e
caridade. Além das práticas homeopáticas como chás, infusões e outras formas,
popularizou-se na segunda metade do século dezenove, o método Kneipp da cura
pela água. Seu maior divulgador foi o Pe. Mathias Pfluger, vigário de São
Salvador, hoje Tupandi. Ele tinha sido colega de seminário de Kneipp e atribuiu
à aplicação do método sua cura quase milagrosa:
Quando nós dois estudávamos
juntos no seminário, fui acometido de tifo, levando-me à beira do túmulo.
Kneipp, porém, dizia com certeza intuitiva: Confia em mim, eu te curo. E como
segundo os médicos não tinha mais nada a perder, submeti-me à sua cura, que
Kneipp, porém, aplicou em segredo, mas com tanto êxito que os médicos se
mostraram estupefatos. (citado por Chupp, 2002, p. 205).
A
recuperação do Pe. Pfluger foi tão
completa quanto duradoura. Ordenou-se
sacerdote, entrou depois na Companhia de Jesus, foi mandado para a Missão do sul
do Brasil, fundou e organizou a paróquia de São Salvador, onde faleceu em 1905
aos 77 anos de idade. Entende-se assim que ele difundisse esse método entre os
próprios paroquianos e os das paróquias vizinhas. Devido à popularidade que
conquistou esse método, ele merece alguns comentários.
Na
introdução da sua obra “A Cura pela Água” o pároco Kneipp detalhou as bases
sobre as quais se apoiava o seu método.
Em primeiro lugar o “o corpo humano é uma obra prima saída das mãos de Deus.
Cada pecinha ajusta-se à maior e todas elas no seu conjunto formam um todo
harmônico”. A perturbação da harmonia chama-se doença. Todas as enfermidades,
chamem-se com se quiser, têm a sua origem no sangue ou melhor na perturbação do
sangue, tanto na circulação quanto na composição, por líquidos deteriorados. A cura se dá pela eliminação
dos ingredientes perturbadores do sangue que são as doenças. Essa eliminação se
dá por meio da “cura pela água”. A água age de três maneiras: separa os agentes
tóxicos do sangue, elimina-os e fortifica o organismo debilitado. Kneipp
afirmava que todas as doenças curáveis tem cura pelo método que ele criou, por
agirem na raiz da própria enfermidade: separando os agentes tóxicos,
eliminando-os, restabelecendo a circulação normal e, finalmente, temperando e
fortificando o organismo.
O
método Kneipp da “Cura pela Água” gozou de uma aceitação impressionante na
Europa e em outras partes do mundo, nas décadas finais do século XIX. Para se ter uma ideia, entre 1886 e 1893
houve 44 edições do seu manual. Não é aqui nem o lugar nem a ocasião para
entrar no mérito terapêutico do método. Em todo o caso a sua popularização pelo
Pe. Pfluger ainda repercute em
comunidades por ele atendidas no atual município de Tupandi e arredores, onde a
aplicação de práticas do método Kneipp ainda hoje podem ser observadas.
O
método Kneipp divulgado pelo Pe. Pfluger e os tratamentos por meios
homeopáticos de todo o tipo de enfermidade foram diminuindo na medida em que
médicos formados se foram instalando na região colonial. O Pe. Schupp informa
que, a partir daí, os superiores
proibiram as farmácias homeopáticas e a função de médicos, aos padres que
cuidavam daquelas paróquias
Referimo-nos
até aqui às práticas de saúde entre os colonos alemães católicos, normalmente
por conta de padres encarregados da pastoral. Do lado dos evangélicos a
assistência aos colonos, apresentava características muito semelhantes. Parece
que entre eles a presença de profissionais da saúde leigos aconteceu mais cedo
do que entre os católicos. Até um médico, o dr. Carl Gottfried von Ende,
encontrava-se entre as primeiras levas. Mas uma assistência mais permanente
ficou a cargo de pastores a serviço das diversas comunidades. Se entre os
católicos sobressaíram os padres
Lipinski, Blees e Pfluger, entre os
protestantes o pastor Peters é a personalidade mais emblemática. Nascido
em 1842 veio ao Brasil em 1871 e seu campo de trabalho veio a ser o Forromeco
com as quatro comunidades: Forromeco,
Feliz, Francesa, Porto dos Guimarães (São Sebastião do Caí). Não vem ao caso
aqui as enormes dificuldades que no começo tornaram sua atividade pastoral
extremamente difícil. Um dos fatores que finalmente lhe conquistou a confiança
e o apreço, foram suas habilidades no tratamento das doenças mais comuns do
quotidiano da colônia. Como estudante no Seminário de Barmen atuara como
enfermeiro voluntário durante uma epidemia de cólera, familiarizando-se com os
procedimentos mais essenciais de enfermagem, o que lhe seria muito útil no
contato com os problemas de saúde dos colonos a ele confiados. A prática adquirida cuidando de afetados pela
cólera, somada ao aprofundamento dos conhecimentos relativos a doenças, doentes
e respectivos tratamentos, o Pastor Peters aliou cuidado pela saúde da alma ao
bem estar do corpo. O êxito nos dois
planos conquistou-lhe, por fim, admiração e a veneração dos fieis.
Para tanto, muito contribuiu
o fato de prestar assistência médica a
todos os doentes e, tanto em virtude do dom natural para essa profissão quanto
através de uma prática que sempre mais se ampliava, tornou-se capaz de realizar grandes coisas. Não só prescrevia
medicamentos, como também realizava operações. E é maravilhoso que não tenha
falhado em nenhuma das muitas, por vezes complicadas operações ou que alguma delas tenha tido fim trágico. A fama de seus
conhecimentos médicos e de sua destreza, em breve, ultrapassaram os limites de
suas comunidades. Foi visitado, consultado, buscado, e seu trabalho se
multiplicou de maneira tal que o cansava e desgastava. (Os Dois Vizinhos e
outros textos, 1997, p. 193)
É claro que a prática médica
lhe aplainou o caminho em muitas dificuldades. Jamais estive no Forromeco sem que de fato muitas pessoas,
em busca de socorro, viessem à casa
pastoral, e Peters não conseguia andar a cavalo, em sua comunidade e
fora dela, sem que fosse consultado por doentes. A procura e a confiança nele
eram muito grandes e deve-se dizer que tinha um tino admirável para descobrir a
causa dos sofrimentos e grande segurança ao operar. Era um “médico por graça de
Deus”, como bem foi dito, e como tal foi benfeitor de milhares. ( ... ) Como
fosse consciencioso, de modo algum quis assumir o papel de “charlatão”. Por
isso reiniciou seus estudos de medicina, iniciados em Barmen. Em breve, podiam-se
encontrar em sua biblioteca as mais recentes e melhores obras da área de
terapêutica; sua biblioteca tornava-se, ano após ano, mais completa e seus
instrumentos eram tão diversificados que um médico urbano ocupadíssimo,
certamente não teria necessitado de mais. (Os dois Vizinhos e outros textos,
1997, p. 201).
Deixando
de lado o charlatanismo desde o começo presente no meio colonial, o Pastor
Peters e em escala menos visível os padres jesuítas antes mencionados, foram os
protótipos do médico prático. No caso de
Peters falou-se em “médico por graça de Deus”. Comumente a referência a estes é
de médicos que “praticando” tornaram-se profissionais.
Eles podem ser encontrados, até 1930, em não poucas comunidades coloniais pelo
sul do Brasil, prestando serviços de alto valor. Não há necessidade de insistir
que, também partir da segunda metade do
século dezenove médicos formados em escolas de medicina na Alemanha, emigraram
para o Brasil. A grande maioria, porém, estabeleceu-se nos centros maiores para
atender às comunidades urbanas de
imigrantes assim como a população em geral.
Classificamos
as doenças de que nos ocupamos até aqui como aquelas rotineiras: gripes,
resfriados, infecções das vias respiratórias e outras mais, relacionadas
normalmente à mudanças na rotina climática ou acidentes mais leves como fratura
de braços ou pernas, cortes superficiais, etc. A situação tornava-se bem mais complicada
quando enfermidades mais graves como pneumonia, pleurisia, apendicite, surtos
de tifo, varíola, mordida de cães raivosos, partos complicados ou acidentes
graves de trabalho, exigiam socorro especializado. Nas três primeiras décadas
um pouco mais havia por fazer do que confiar na capacidade de reação de cada
enfermo ou entregar a questão nas mãos
de Deus. Já durante a década de 1850, com a formação das comunidades urbanas de
imigrantes em Pelotas, Rio Grande, Porto Alegre e outras cidades,
estabeleceram-se aí também médicos que atendiam em seus consultórios
particulares e/ou na Santa Casa. Nos casos de urgência o maior problema ficava
com a distância e as condições de
transporte do doente ou do acidentado. No momento em que se configurava uma
situação do gênero numa picada no interior do vale do Caí, por exemplo, a
remoção até a Santa Casa dividia-se em três etapas. Na primeira carregava-se o
acidentado numa maca improvisada até o local onde numa segunda etapa era levado
de carroça até o porto fluvial de Caí ou Montenegro. A viagem continuava depois
numa lancha pelo rio até Porto Alegre.
Não é difícil de entender de que, em tais circunstâncias, um número mínimo de
casos graves pudessem ser socorridos com chance de êxito. Evidentemente só em
situações em que o paciente estava em condições de sobreviver à viagem, fato
que se dava por ex. quando alguém era mordido por um cão raivoso, sofria de
tuberculose, casos de queimaduras mais sérias ou outros males que exigiam um
tratamento que reclamava recursos especializados e acompanhamento presencial do
médico e de enfermeiras. Jornais, almanaques, periódicos e outras
publicações da época jornais registraram muitos exemplos a respeito.