Caixeiros viajantes - Os pioneiros

Numa postagem passada caracterizamos a importância dos caixeiros viajantes  pra a economia, em especial a prática comercial, além da sua contribuição como portadores de cultura para o interior colonial. Falaremos agora da velha guarda  desses viajantes, os riscos da profissão, o caixeiro e sua mula.

Os caixeiros viajantes contaram, no nascer e no desenvolver  da sua história, com um “grupo fundador”, personagens com características  marcantes, personagens com traços épicos, idealistas e românticos, empreendedores, honestos e bem coma vida.

Um dos caixeiros viajantes mais antigos foi Hugo Emmermann, nascido em Dorneken. Desembarcou em Porto Alegre em 1870. Encontrou o primeiro emprego na loja de ferragens de Guilherme Bier. Fundou a Firma Ernesto Bemke & Cia, tendo como sócios Ernesto Bemke e Hugo Lau. Em 1883 desligou-se da firma e começou a viajar para F. J. Friedrichs. Faleceu no ano seguinte, admirado por todos como cumpridor do dever e um colaborador leal.

Um dos representantes mais emblemáticos de autêntico caixeiro viajante foi Albrecht Lorenz. Emigrou em 1871 passando  primeiro por Buenos Aires e Montevidéu. Sem êxito desembarcou em Porto Alegre em 1872 onde encontrou emprego na Firma F. A. Engel, passou pela Firma de Bernhard Wahlrich. Tentou a sorte como  proprietário de terra e como dono de hotel, mas sem resultado. Retornou a profissão de caixeiro viajante a serviço de C. J. Schilling. Em 1891 a firma abriu uma filial em São Sebastião do Caí e Lorenz a administrou até o seu falecimento. Lorenz foi um dos fundadores do Clube dos Caixeiros Viajantes e seu primeiro presidente. Homem de bem com a vida destacava-se pelo bom humor, pelas histórias e piadas que contava.

Um outro veterano da velha guarda foi Heinrich Fuhrmeister, falecido em Wiesbaden na Alemanha em 1898. Desembarcou em Porto Alegre em 1872. Começou trabalhando para a Firma de Fazendas Hoffmann & Cia. Mais tarde associou-se a Carl Pohlmann na Firma Pohlmann & Cia. Uma extraordinária consciência do dever e uma exatidão à toda a prova marcavam todas as ações deste homem inteiramente dedicado ao trabalho. Na cidade ou na colônia, quem não conhecia o velho Fuhrmeister?

Não menos popular foi Albert  Deistel, nascido em 1852 em Klostermannsfeld, desembarcando em Porto e 1877, empregou-se na Firma de Carlos Daudt. Nos longos anos que viajou pela colônia a serviço deste estabelecimento, conquistou muitas simpatias com sua jovialidade. Mais tarde estabeleceu-se por conta própria no ramo do comércio de ferro bruto. Aqueles que privaram com ele, nunca esqueceram o velho e jovial camarada.

Otto Drück nasceu em Porto Alegre em 1853. Sua primeira atividade como viajante  foi para a Casa C. Schilling. Entrou mais tarde na  Firma C. Wahlrich. Por longos anos percorreu a colônia como caixeiro viajante para esta firma. Mais tarde trabalhou na mesma condição para F. X. Friedrichs. Além disso desenvolveu como sócio sua atividade na Firma A. Ribeiro & Cia e quando a firma assou para as mãos de seu irmão C. A. Drügg e Carlos Daudt & Cia, associou-se a elas. Acreditamos não estarmos exagerando ao afirmarmos que esse veterano caixeiro viajante, após tantos anos percorrendo a região colonial, fosse respeitado pelos colegas de profissão. Também seus numerosos amigos na mata virgem, demostravam a mais espontânea  alegria quando cruzavam com a figura  por todos conhecida, vestindo suas roupas coloridas e montando uma soberba mula.

Alfred Schrunk nasceu em 1860 em Rivera no Uruguai. Estudou na Alemanha e em 1876 veio para o Rio de Janeiro e o ano seguinte para Porto Alegre. Começou a vida como funcionário da diretoria dos transportes de imigrantes para a recém iniciada colonização de Conde D’Eu e Dona Isabel. Conquistou o apreço de todos os imigrantes a ele confiados numa época em que nem sempre recebiam tratamento humano da parte dos funcionários do governo. Em especial no alto Forromeco, muitos colonos perguntavam por notícias e num tom de indisfarçável amizade recordavam-se do “gordo Schrunk” e não se esqueciam de lhe mandar saudações.

Não é a qualquer um, como foi o caso de Heinrich Teschner, viajar por 28 anos. Nasceu em 1852 em Wagstadt na Silésia austríaca e desembaraçou em Porto Alegre em 1874. Encontrou o primeiro emprego na casa de comércio de C. J. Schilling. Viajou para esta casa até transferir-se para Bastian & Meyer e mais tarde para Bastian e & Cia. Faleceu em 1901 depois de trabalhar 21 anos na mesma casa.

Leopold Bastian nasceu em São Leopoldo mas transferiu-se para Porto Alegre em 1871.  Trabalhou com Heinrich Teschner na Firma Bastian & Meyer. Começou depois a percorrer a colônia como caixeiro viajante para H. Bom. Em 1874 passou para a firma Barbedo  & BAstian para, em seguida tornar-se sócio de B & M. Depois tornou-se sócio da casa de comércio de fazendas de Bastian & Cia. Muitos anos se passaram desde que encilhou pela última vez sua mula para, de botas e esporas, oferecer aos filhos da mata virgem as maravilhas a sua firma. Seria conhece-lo pouco se achássemos que não se recorda com prazer de suas atividades como jovem, que lhe serviram como escola preparatória para ser comerciante  estabelecido por conta própria.

J. G. Magnus foi colega de Bastian na firma Barbedo Bastian. Nasceu em Torres. Em 1874, com 24 anos veio a Porto Alegre. Na condição de caixeiro viajante a serviço da citada firma, percorreu  a região do mato e do campo. Passou depois para a firma Chaves & Almeida também como viajante. Em 1883 estava em condições de estabelecer-se por conta própria.

Phillipp Becker dedicou-se durante 20 anos à profissão de caixeiro viajante, para no final, trabalhar como procurador no mesmo estabelecimento. Conhecido na Praça 15 de Novembro como o “homem do ferro”, foi o único que ousou deixar-se fotografar com um chapéu pouco condizente com uma caixeiro viajante. Nasceu em Porto Alegre em 1853 e começou a carreira no ramo das ferragens na firma Böhmer & Dörken. Em 1890 estabeleceu-se por conta própria.

O homem que de forma alguma não conseguiu, ou não quis deixar de viajar foi o moselano Ernst Schmeiders, nascido em Cron em 1851. Desembarcou em Porto Alegre em 1871 e encontrou colocação na casa de ferragens de Th. Friederichs & Birnfeld. Administrou  mais tarde um negócio em comissão, estabelecendo-se em 1880 por conta própria com uma firma de porcelanas, ferragens e miudezas, com dedicação especial para as últimas. Costumava-se dizer: o que nãos se encontra em lugar nenhum em Porto Alegre, acha-se em algum canto no Schneiders. Os fatos demonstraram que o negócio não era nada  mau. Grande foi o número daqueles que aprenderam, com mais ou menos proveito a cartilha de Schneiders. Quem lidou  durante muitos anos com a diversidade de sortimento, desde as imensa  torradeiras  fabrico de farinha, até as pulseiras “para senhoras ordinárias”, podia ter certeza: “eu aprendi alguma coisa” e encontrava colocação em outro lugar.

Os perfis dos caixeiros viajantes que selecionamos de muitos outros que percorreram as colônias e a região dos campos a serviço de casas de importação e exportação de Porto Alegre, são paradigmáticos para esse personagem tão familiar na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. A missão que importava na sua razão de ser consistia em garantir o fluxo do comércio entre as grandes casas de Porto Alegre e as vendas nas picadas mais distantes na mata virgem. Faziam às  vezes de bancos transportando volumes grandes de dinheiro vivo e faziam o papel do correio, levando correspondência e pequenas encomendas. Sobretudo, porém, atuavam como portadores de cultura, pessoas que eram vindos do meio urbano, com boa formação e não poucos deles propagadores do pensamento liberal. Por essa razão encontravam por vezes desconfianças e restrições por parte das pessoas e lideranças religiosas, nas comunidades coloniais mais conservadoras.

A Campanha de Nacionalização e a imprensa

Entre das perguntas que poderiam ser formuladas quando se pretende entender   Campanha de Nacionalização, poderia ser esta: Qual foi o motivo porque os responsáveis por essa campanha elegeram  como alvo  prioritário os imigrantes alemães e seus descendentes. Numericamente os alemães ocupavam um modesto quarto lugar entre os diversos grupos de imigrantes. Depois da independência, entraram no Brasil mais imigrantes portugueses, espanhóis e italianos do que alemães. O que, entretanto, lhes conferiu uma posição de destaque, aquilo que de fato marcou e marca ainda hoje a presença alemã no Brasil, foi sua contribuição a nível cultural.

Destacamos, em primeiro lugar, o grande valor dado à educação pelos imigrantes alemães. Organizaram uma vasta rede de mais de mil escolas, instaladas, administradas e controladas pelas comunidades. Devido a essas escolas, ao ser desencadeada a Campanha de Nacionalização em 1938, o analfabetismo estava praticamente erradicado nessas comunidades, quando no restante do País ultrapassava os 80%. E segundo lugar, as comunidades alemãs organizaram-se solidamente em torno de suas igrejas, escolas e cemitérios, casas de comércio, artesanatos e instalações para o lazer e fomento da cultura. Recebiam das igrejas e escolas uma orientação doutrinária segura, além de diretrizes disciplinares responsáveis por uma conduta disciplinada e respeitadora em relação às autoridades religiosas e civis. Em terceiro lugar,  pelas inúmeras associações, sociedade e clubes fomentaram uma intensa e movimentada vida associativa, oferecendo lazer e incentivando a arte, o canto, o teatro e múltiplas outras atividades. Grandes e abrangentes iniciativas de organização e interesse comum: a “Associação Rio-Grandense de Agricultores” o “Bauernverein”, a “Sociedade União Popular” o “Volksverein”, a “Liga das Uniões Coloniais”, tinham como finalidade coordenar a vida e a atividade das comunidades, assim como identificar, avaliar, propor soluções e traçar estratégias, para enfrentar os desafios e as necessidades de caráter comum que as comunidades enfrentavam.

As atividades, a iniciativas e os projetos que acabamos de caracterizar contaram com a imprensa nas suas mais variadas modalidades, como o instrumento de formação e informação por excelência, já que na época o rádio estava apenas engatinhando como veículo de comunicação, a televisão uma possibilidade e os demais não passavam de um sonho. Pois bem. Desta forma a imprensa teuto-brasileira destacou-se como “o instrumento” responsável pela realização do sonho que levou os imigrantes a se fixarem em terras brasileiras. Entretanto, essa decisão teria que ser complementada por uma outra, isto é, esquecer o passado como cidadãos de outros Estados e empenhar-se de corpo e alma na edificação de uma nova pátria. Essa decisão não significou o esquecimento muito menos a negação da tradição e dos valores dos antepassados. Pelo  contrário colocaram esse imenso tesouro cultural amealhado durante uma história milenar, a serviço da nova pátria. Foi nesse passado que encontraram as ferramentas que lhes garantiram o êxito na inserção numa outra pátria, num outro continente, fazendo-os progredir e prosperar. E nessa caminhada em busca da inserção progressiva na sociedade nacional brasileira, a imprensa nas suas mais diversas modalidades, desempenhou um papel decisivo.

Os responsáveis pela Campanha de Nacionalização, ao proibirem a circulação de  todo e qualquer tipo de imprensa em língua estrangeira, de modo especial a alemã, incorreram num dos equívocos mais funestos. Cegos pela ideia fixa de que a língua alemã, a maneira ser alemã, mantida viva e realimentada pela imprensa, representava o obstáculo mais renitente para a assimilação para os assim chamados alemães, partiram para uma campanha de terra arrasada. Para eles, a imprensa representava o elemento mais eficaz para manter as comunidades alemãs isoladas, enquistadas e avessas a uma inserção efetiva e completa na sociedade nacional brasileira.

Nas considerações que seguem fica claro que a imprensa alemã aqui no Brasil, de modo especial no Sul, foi a grande responsável que em meados da década de 1930, a imensa maioria dos chamados alemães  se assumissem com cidadãos brasileiros. É óbvio que não é possível esgotar o assunto nos limites de uma postagem de “blog”. Limito-me, por isso, a alguns dos veículos mais significativos que circulavam  entre os teuto-brasileiros do sul do Brasil, com destaque para o periódico “Lehrerzeitung” (Jornal do Professor) publicado pela “Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul”. A razão da escolha dessa publicação está no fato de ela ter sido a responsável pela divulgação entre os professores das escolas comunitárias pela orientação pedagógica e, principalmente, pelo cumprimento fiel da missão confiada a essas instituições de ensino. Acontece que essas escolas  e seus professores constavam, para os nacionalizadores, como os grandes vilões da resistência à Nacionalização. Percorrendo  as dezenas de números dos 39 anos (1900-1939) dessa publicação quinzenal, constata-se que as acusações dos nacionalizadores careciam de fundamento. No primeiro ano de sua circulação em 1900 “Lehrerzeitung” publicou o currículo obrigatório para todas as escolas comunitárias católicas, que acabava de ser implantado. A língua portuguesa constava como matéria de ensino a partir da 3ª série. O registro é importante pelo fato de que as circunstâncias  do começo do século XX não favoreciam em nada um aprendizado mais completo do português. Entre as dificuldades merecem destaque os seguintes. Primeiro, poucos professores dominavam o vernáculo em nível razoável. Segundo, as pessoas comuns não sentiam falta do português pois, a comunicação diária dava-se exclusivamente em alemão. Exatamente por esses e outros motivos a obrigatoriedade do português nas escolas revela sua importância. É prova, de um lado que os responsáveis pelas escolas, professores e líderes comunitários tinham consciência que eram cidadãos brasileiros de fato e de direito e nessa condição tinham o dever de aprender a língua oficial do País e por isso mesmo fazia parte dos deveres patrióticos ensiná-lo nas escolas.

No nº 11/12 de 1916 a Lehrezeitung propõe como deveria ser ensinado o português nas escolas comunitárias: “No que diz respeito à língua portuguesa, é preciso cuidar, em primeiro lugar que a dominem para o uso na comunicação diária. Recomenda-se para tanto o livrinho:  ‘Sabe falar português?’, adotado em muitas escolas. Nos no nº  9/10 a insistência do aprendizado da língua vernácula voltou devido a uma ordem do arcebispo D. João Becker, nos seguintes termos: “Como já do conhecimento dos senhores professores, sua Excia. o  Revmo. Sr. Arcebispo ordenou que em todas as escolas católicas particulares se desse uma importância toda especial ao ensino da língua do País. Temos que aplaudir semelhante disposição já que a mudança  das circunstâncias do tempo exigem o conhecimento da língua portuguesa, cada dia com maior urgência”.    Em 1923 a Associação dos Professores publicou uma resolução com seguinte teor: “Para que a escola paroquial nas colônias alemãs obtenha pleno êxito nos seus propósitos, é necessário que, assim como a língua alemã deve continuar sendo a base do ensino, assim a língua portuguesa deve ser cultivada com todo entusiasmo”.  -  Ainda no mesmo ano de 1923, comentando a criação de escolas complementares, o assunto língua portuguesa voltou a preocupar os professores: “A razão mais importante que motiva a criação dessas escolas é a convicção de que a língua portuguesa representa para nós uma necessidade de sobrevivência. Desta maneira a língua portuguesa situa-se no centro das preocupações. Essa necessidade generalizou o costume de mandar os adolescentes, após a conclusão do período regular da escola, por mais um ou dois anos para uma escola do Estado”.  -  Em 1925 o prof. Victor Schrinner analisando as mudanças ocorridas a partir da Primeira  Guerra Mundial, deixou sua conclusão no Jornal do Professor Lehrerzeiting):  “Os acontecimentos mostram-nos,  a nós professores, que, antes de mais nada somos cidadãos brasileiros. Questões que já antes da Guerra esperavam solução, acentuaram-se rapidamente sob a pressão das circunstâncias. Antes de mais nada constatamos claramente a urgência de dispensar um cuidado todo especial à língua portuguesa”  -  Na 14ª assembleia geral dos professores em 1929, a resolução de nº 5 recomendava:  “A Assembleia recomenda aos senhores professores que estimulem com insistência o ensino da língua do País, inspirando-se nos livros didáticos do prof. Rudi Schaefer”.  -  Uma recomendação final da mesma 14ª Assembleia Geral reforçava a urgência do cuidado pela língua portuguesa:  “A assembleia recomenda que nas futuras assembleias regionais da Associação se dê uma atenção especial ao ensino da língua portuguesa”.  -  A 15ª Assembleia realizada em Porto Alegre em 1930, tomou entre outras, a seguinte resolução:  “A Assembleia resolveu recomendar às Conferências  que façam do português o tema principal de suas discussões”.  -  Como conclusão da mesma 15ª Assembleia os professores presentes tiraram a conclusão:  “Defendemos até aqui o ideal do nosso trabalho a escola bilíngue. Queremos, portanto, honrar a língua dos nossos antepassados e, ao mesmo tempo, pretendemos  que a juventude se capacite mais e mais na utilização da língua portuguesa”

Em 1934, Lehrerzeitung, nº 7 publicou um longo arrazoado do prof. Strecker sobre a conveniência de ensinar as duas línguas, a alemã e a portuguesa. Entre outras destacamos a seguinte afirmação:  “Mesmo que aqui no Brasil não existe nenhuma lei que obrigue o aprendizado da língua do País, contudo a conveniência é de tal modo óbvia que não se deveria perder uma só palavra a respeito. Aqui no Brasil nossos filhos encontraram a  sua pátria;  aqui no Brasil irão viver, trabalhar e morrer e, sem a língua da terra? Como irão defender-se no trabalho, na relação com as autoridades, na justiça, no serviço militar, sem dominarem a língua do País? Centenas e mais centenas de ocasiões os põem em contato no relacionamento diário e no comércio, com pessoas que só falam português. Caso não queiram sucumbir na luta pela vida, precisam saber português. Essas necessidades são e tal monta, que não existe uma escola alemã sequer que não considere o português como uma das suas metas mais importantes”.

Dos testemunhos e declarações acima além de muitas outras que poderiam ser lembradas, conclui-se: Primeiro, que a escola comunitária teuto-brasileira, pelo menos na mente dos responsáveis por ela, de maneira alguma representava um enclave, um corpo estranho no contexto da nacionalidade. Pelo contrário. Achava-se perfeitamente integrada consideradas as circunstâncias da época.  -  Segundo, fica clara a tendência cada vez mais explícita de que os professores preparavam uma nacionalização progressiva, insistindo cada vez mais no aprendizado da língua portuguesa e do conhecimento das realidades nacionais.  --  Terceiro, a nacionalização estava ocorrendo sem sobressaltos e sem traumas, dispensando uma Campanha de Nacionalização que, atropelando a dinâmica da lógica histórica e antropológica que preside esses processos evolutivos. Os resultados foram desastrosos. Mas não é aqui o espaço para analisá-los mais a fundo.


Até aqui mostramos como a Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul, promoveram o aprendizado da língua portuguesa pelas páginas da  publicação da classe a “Lehrerzeitung”. Ainda entre os alemães da metade católica do sul do Brasil circularam outras três publicações regulares: um jornal diário o “Deutsches Volksblatt”, um periódico mensal o “Skt. Paulusblatt” e um almanaque anual, o “Familienfreund Kalender”. Também neles encontram-se dezenas  de referências à necessidade e a  obrigatoriedade do aprendizado da língua portuguesa como condição para uma inserção definitiva na sociedade nacional. No formato da postagem não há espaço para citar mais exemplos. Em todo o caso essa imprensa, como era acusada, nunca se mostrou simpática ao nacional socialismo. Pelo contrário. Já em 1931 o “Deutsches Volksblaltt” denunciou os perigos dessa orientação política, fato que lhe valeu a proibição de circular na Alemanha.

Nacionalização e ação policial no Estado Novo - Ação policial em Santa Catarina Excertos do diário de Maria Rhode

No dia 30 de dezembro (1942), recebemos o primeiro “aviso” por meio de um desconhecidos, de que todos os estrangeiros seriam expulsos da região. No dia primeiro de janeiro (de 1943), aconteceram novas devassas nas casas. Desta vez também na casa da minha irmã. E como em todas as outras, com resultado negativo. No dia 6 de janeiro, ao escurecer duas canoas com cerca de 10 homens. atracaram no nosso porto. Tudo foi revirado e vasculhado em busca de objetos perigosos, que obviamente não existiam. No dia 10 de janeiro houve uma festa  na sede da Sociedade Atiradores, promovida pela brigada militar do Rio Gande do Sul, aí estacionada. Na ocasião, o comandante, um aspirante, pronunciou o malfadado discurso, no qual anunciava que todo os “estrangeiros” foram intimados a deixar “livremente” Porto Novo e dirigir-se para um local chamado Xaxim Xanxerê. Mas  este discurso de arrepiar não foi levado a sério e ninguém pensou em evacuação. Neste meio tempo mandei informações urgentes sobre a situação que se agravava cada vez mais.
No dia 30 de janeiro sucederam-se na Linha Becker, perturbações, excessos, abusos, devassas em casas, molestações de todo tipo, praticados pelo aspirante e seus subordinados. -  No dia 31 de janeiro veio o delegado de Xapecó e deu ordem que todos os comissários se apresentassem no dia 1º de fevereiro.  -  No dia 2 de fevereiro os comissários comunicaram que todos os estrangeiros se apresentassem no dia 3 de fevereiro na delegacia.
No dia 3 de fevereiro, bem cedo, tudo estava em movimento. Reinava um calor insuportável. Uma camada de pó de um palmo cobria as estradas, devido à prolongada seca e respirava-se uma atmosfera carregada de fumaça vinda dos incêndios na floresta. No clarear do dia, cavalguei até a cidade em companhia do sr. Batista Hofer. Depois de horas sob um calor sufocante, encontrei todos os estrangeiros, velhos e jovens, quase só homens, reunidos onde quer que houvesse uma sombra. Mulheres somente aquelas, como eu, que estavam sozinhas, cujos homens, para evitar a prisão tinham cruzado a fronteira e se refugiado na Argentina. Os cavalos ocupavam todo espaço livre na cidade. Diante da delegacia formara-se uma grande fila. Um por um aguardavam o seu despacho que vinha curto e grosso. Ao registro seguia a ordem de em 10 dias estarem prontos para partir, buscar os “documentos para a viagem” e pôr-se a caminho para Xaxim Xanxerê, para o exílio. Para as diversas objeções ou o argumento de impossibilidade, seguia a resposta lacônica: “Quem até o dia 13 não tiver abandonado a casa, será forçado pelos soldados e posto na estrada.
Combinamos que manteríamos de qualquer forma a tranquilidade e antes de mais nada a disciplina e não oferecer às autoridades nenhum motivo de nos atacar. Manter a união foi a palavra de ordem! Em caso extremo pôr-nos a caminho em bloco fechado, cada qual dando apoio ao outro, em marcha lenta, sem sair do território da Sociedade União Popular. Se possível ninguém deveria passar da Linha Chapéu.
Os dias seguintes foram inauditos.  Num prazo tão curto era impossível liquidar casa e propriedade, desfazer-se do gado e das plantações, fruto do trabalho pesado de muitos anos, conseguir meios de transporte para uma viagem dessas com a família, além de reunir  os equipamentos domésticos e os gêneros alimentícios indispensáveis. Foi preciso vender todo o gado por preços irrisórios ou então abatê-lo, para conseguir o dinheiro para comprar uma carroça e bois resistentes para a longa viagem. Funcionários, entre eles um oficial de justiça intimidavam as pessoas de tudo que era forma e aproveitavam a ocasião em seu próprio proveito, às custas da desgraça do expulsos. Compravam o belo gado por valores miseráveis para, em seguida, negociá-lo com enormes lucros. Ofereciam a preços exorbitantes terras no exílio que não existiam. Pelo que soube acima de 30 das melhores vacas leiteiras foram negociadas fora do território. Passavam obrigatoriamente por nossa colônia. Condenados que estávamos ao silêncio presenciamos o espetáculo em silêncio.
Vieram problemas ainda maiores. O que aconteceria com as pessoas de idade, os doentes, as mães com crianças pequenas, as mulheres grávidas. Tudo soava tão inaudito, tão inacreditável. Eu mandava um telegrama depois do outro a Porto Alegre, implorando por socorro.
O dia 13 de fevereiro foi a data marcada para que todos se apresentassem na polícia para retirar o “passaporte” para a viagem. Novamente fiz a cavaloo longo trajeto até a cidade. Todos se fizeram presentes e retiraram os “passaportes”. Até aquele momento ninguém acreditava seriamente que as ordens seriam levadas às últimas consequências. Acontece que o inaudito tornara-se realidade e todos estavam profundamente frustrados. Informei os presentes sobre um telegrama que eu tinha mandado a Porto Alegre. Combinei com eles que, no caso de não entrar a tempo uma contra ordem, todos se pusessem na estrada, mas avançassem a passo de lesma e não se afastassem muito. Já que muitos não tiveram tempo suficiente para resolver os negócios, foi-lhes concedido uma prazo adicional de 48 horas, motivo de esperança que a contra ordem entrasse nesse meio tempo.
Passou o domingo, 14 de fevereiro. Estávamos sobre brasas. Nenhuma notícia! Eu estava desesperada. Repetiram a ameaça de me prender caso me metesse de novo. Seguiu então a ordem: Para a estrada! Para frente e ninguém mais poderia retornar. Apesar de tudo, munida com os documentos americanos, cavalguei mais uma vez até Itapiranga. Várias pessoas chamaram-me a atenção que não fosse tão afoita. De passagem parei na casa da vovó. O que fazer? Vovó beijou-me a testa, traçou um sinal da cruz sobre a minha fronte e disse: “Com certeza, deves ir, filha. Vê o que podes conseguir. O teu anjo te acompanhe”. O conselho da vovó não poderia sido outro. Fiz o que ela teria feito se estivesse em meu lugar. Cavalguei até a cidade para negociar com a polícia, munida dos meus parcos conhecimentos da língua e com o telegrama do sr. Englert na bolsa.
No meio do caminho dois comissários vieram ao meu encontro. Vinham com a ordem para colocar imediatamente na estrada as famílias Pölking e Custodies. Dona Neff e Schickling tiveram permissão para ficar. Soube também que os alemães romenos e o povo da Linha Popi já estavam a caminho, formando uma caravana de 11 carroças de bois. No arroio Santa Fé topei com um comissário e dois soldados armados, que levavam a ordem de colocar à força as duas famílias Hoffmann. Fique com nojo frente a tanta brutalidade. Tentei falar com os soldados mas eles se afastaram dando risadas.
A situação tornou-se mortalmente séria. Continuei a galope, primeiro até a agência do correio e mandei mais telegramas a Porto Alegre: ”Expulsão à força!” O telegrafista Erasmo Mello, um brasileiro de sentimentos nobres, mandou sem hesitar o meu telegrama. Seguindo instruções, fora ele que endereçara a mim o telegrama que prometia ajuda. Lamentou a situação e mostrou-se em todos os sentidos um homem correto e pronto para ajudar. Do correio fui à delegacia par negociar mais um prazo. A resposta foi que não me metesse no assunto. Na delegacia encontrei o Pe. Theodor Treis, que acabar de retirar o seu salvo conduto para viajar. Segui-o até a casa paroquial e pedi que viajasse imediatamente a Porto Alegre para levar informações pois, a polícia ameaçava interromper o serviço telegráfico.
Naquela mesma noite o Pe. Treis, que já fora denunciado e intimado, foi até nossa zona e levou cartas e notícias e no dia seguinte de manhã cedo tratou de alcançar o chão do Rio Grande do Sul e esperar por ocasião para viajar. Graças a Deus, ele e as notícias estavam garantidas e seguiriam em boas mãos
15 de fevereiro. Sobre a ponte coberta encontravam-se as carroças dos moradores de Popi, que se tinham abrigado de uma tormenta. No dia anterior o Pe. Treis despedira-se do seu rebanho com lágrimas nos olhos. Cavalguei de volta até em casa, depois que a polícia me negou todo e qualquer entendimento. Com crescente angústia esperávamos por socorro e a resposta não vinha .... A marcha para a morte iria começar ....

Obs. o que aconteceu depois já foi objeto da primeira postagem sobre ação policial em Santa Catarina)

Nacionalização e ação policial no Estado Novo - Ação policial em Santa Catarina Excertos do diário da sra. Josefine Wirsch

Relato da sra. Josefine Wiersch, na ocasião com 82 anos de idade, sobre prisões e trabalhos forçados os assim denominados integrantes de uma suposta “quinta coluna” no oeste de Santa Catarina.
Pedi aos presos expulsos que depois de semanas retornaram, para contarem como passaram as coisas. Registro aqui o que deles ouvi.
Para começar a viagem foi terrível em meio ao pó e ao calor, sem proteção e sem cobertura contra o sol tropical. Chegados a Chapecó, fomos descarregados, trancados num galpão, as janelas pregadas e severamente vigiados. Não havia banheiro. Quem tinha necessidade de ir às capoeiras era acompanhado por dois soldados armados. Permaneciam por perto até que pudessem devolver o grande criminoso no galpão. A sede atormentava-nos de tal forma que quase não sentíamos fome. Só os motoristas dos ônibus particulares requisitados tinham pena de nós. Traziam água, pão e linguiça para os que levavam algum dinheiro. Quem não tinha dinheiro estava entregue à comiseração dos outros presos. Depois seguimos viagem  e outros presos ajuntaram-se a nós. Fomos descarregados e trancafiados numa pequena localidade.
Um oficial superior passou-nos em revista alinhados e perfilados. Perguntou-nos quem éramos e quais as nossas ocupações. Ordenou que os casados com mulheres brasileiras fossem identificados. Por fim sobraram poucos perfilados. “Então é esta a quinta coluna”, observou rindo e examinou minuciosamente cada um. E que aparência a nossa. Cobertos de pó, maltratados, sujos, despenteados, as barbas por fazer. “O melhor seria voltarem para as suas casas e trabalharem nas suas colônias. O que queremos com vocês?”, disse.
Um dos nossos queixou-se que não nos permitiam tomar mate e estávamos morrendo de sede com aquela temperatura. ”É evidente que podem tomar mate. Quem proibiu?”, perguntou irritado. O plantão desculpou-se dizendo que não tinha nada contra, mas recebera ordem para não permitir. “Ninguém o pode proibir e deu a ordem: “Os homens estão autorizados a tomar mate o quanto quiserem”. Tomamos mate com a erva que nos era fornecida, mas durante três dias comemos apenas o que tínhamos trazido conosco. Foi-nos colocada à disposição uma bacia para nos lavarmos e tivemos permissão para descer, sob vigilância, até o rio que corria lá no fundo. Um médico, senhor de idade, rolou barranco abaixo e quebrou os dois pulsos. Uma senhora, professora, que se encontrava conosco, enfaixou os pulsos e cuidou dele da melhor forma possível naquela situação.
Numa outra ocasião fomos desembarcados bem no centro de uma pequena cidade. De todas as casas precipitaram-se as pessoas,  maioria negros, gritavam, faziam algazarra e nos xingavam: “quinta coluna, quinta coluna”. Assobiavam, batiam em nós e ninguém interveio.
Depois de São Carlos só se via campo e o local do nosso destino ficava no campo. Encontramos lá um grande matadouro, provavelmente construído pelos fazendeiros. De resto apenas miseráveis cabanas de diaristas, nenhuma roça, nenhuma oportunidade para emprego e em lugar algum uma hospedaria. Causou um enorme alvoroço quando fomos desembarcados. A grande pergunta foi: “O que esta gente quer aqui? O que fazer com eles?” Os funcionários do local não demonstravam nada além de incompreensão. Por fim um galpão de cavalos foi desocupado, mas sem limpá-lo e os 60 homens foram nele amontoados. No alojamento só havia chão batido. Aqueles que não levavam nada além da roupa no corpo estavam numa pior. Recebemos ordem de trabalhar na estrada. Como pagamento recebemos comida e permissão para ajuntar capim no campo para aprontar nossas camas. Sentíamos a maior pena do médico, um senhor de 62 anos e o ajudamos da melhor forma possível.
Durante muitas semanas trabalhamos como escravos na estrada, no campo perto de Lajes e nos defendemos da melhor forma possível. Num determinado dia foi-nos comunicado que estávamos livres. Podíamos voltar para casa. Mas o “como” ficou por nossa conta.  Não havia meios de transporte nem apoio para a viagem. Restou-nos enfrentar  a pé a volta de 250 quilômetros, sem recursos, por estradas e trilhas cobertas de vegetação, que em parte cruzavam pela mata virgem e regiões despovoadas, numa temperatura de 35º R. Somava-se a tudo isso a seca catastrófica, os pequenos cursos de água secos e sem os calçados adequados. E contudo: “Para frente e para casa, quinta coluna” – gritou alguém e o conseguimos!
Queremos lembrar com muita gratidão aquelas pessoas que nos deram certeza de que nem todo amor humano naufragara naqueles tempos tenebrosos. No casaco de um entre nós sobrara só uma das mangas e as calças em frangalhos. Foi-nos entregue um pacote com um casaco usado mas inteiro e uma calça. No endereço lia-se: “Para o mais miserável”. Um fazendeiro ofereceu-nos 2:000$000 para providenciar uma viatura para seguir viagem, para ser reembolsados mais tarde. Recusamos porque não tínhamos garantia para devolver o dinheiro. Aquele senhor presenteou-nos com 200$000. Um padeiro deu-nos pão no valor de 40$000, com a recomendação: “Para a viagem”.
No caminho fomos encontrando seguidas vezes pessoas que demonstraram compreensão com a nossa situação. Dividimo-nos em grupos, a fim de facilitar os pernoites e não poucas vezes nos revezávamos. De resto dormíamos ao relento, ao abrigo de alguma moita ou árvores, melhor do que amontoados num galpão. Não poucas vezes descansamos quando encontrávamos um lugar adequado. Em muitos lugares encontramos colonos de bom coração que nos ofereciam algo para beber e comer, especialmente na zona de colonização alemã. Por precaução evitávamos os outros. Caminhávamos nas primeiras horas da manhã, ao anoitecer ou parte da noite. Nas horas quentes do dia acampávamos em algum lugar, na sombra e quando  alcançamos o rio Uruguai, tomamos banho e cuidamos dos pés feridos. Pelo final da exaustiva viagem, encontramos em casa de colonos teuto-brasileiros pronta acolhida para os mais esgotados e, em alguns trajetos alguma viatura. E assim, por termos vindo de mais longe, nós portonovenses fomos os últimos a reencontrar as nossas famílias. Foi este o depoimento dos que voltaram para casa.


Josefine Wirsch