Naquela
noite corri sem descanso de um lado para o outro em busca de uma forma para
paralisar a situação. Na minha casa eu desocupara todo e qualquer espaço
disponível e meus filhos esfregavam e
limpavam os galpões, os depósitos de milho e a garagem, para oferecer abrigo
aos expulsos. Contudo no meu íntimo eu esperava que as coisas não chegassem ao
extremo e que uma contra-ordem estaria sendo articulada, antes que as caravanas
fossem obrigados a se por em movimento. Mas o
inacreditável aconteceu e era preciso agir. Apesar de todas as ameaças
de enquadrar-me, apesar da minha cidadania americana, não me intimidei em
enfrentar a policia com um: “até aqui e nenhum palmo além”. Pensei comigo: “My
house my castle!”. E quem teria poder em impedir-me de abrir as portas e as
cancelas e receber e reter as pessoas nos limites da minha propriedade. O que
mais poderia suceder-me além de mandado para o exílio junto os demais. Ninguém
ousava pôr-me a mão e vista do meu passaporte americano. Valia agora como
trunfo e eu o explorei.
Na
tarde de 17 de fevereiro entrou na nossa propriedade a primeira grande
caravana. Eram os rumenos da linha Popi. Durante a viagem uma pancada de chuva
molhara tudo que levavam na carroça. De resto mal molhara o pó da estrada.
Reinava uma inquietante atmosfera abafada e homens e animais estavam
mortalmente exaustos. Em todos os rostos eu lia o apelo: “É verdade que de fato
podemos permanecer na sua propriedade?” Sem perder tempo coloquei à disposição
tudo que tinha telhado e sem perder tempo e na melhor das disciplinas estava
tudo acomodado. No grande potreiro havia lugar para os animais e as vacas de
leite encontraram abrigo na sombra do pomar. A sala de aula dos meus filhos
eles próprios a tinham transformado em dormitório para as crianças pequenas e
suas mães. Mostravam-se encantadas que em seus berços e carrinhos de bonecas
descansavam bebês de verdade. Por tudo corriam e arrastavam-se crianças
pequenas. A alegria das minhas meninas era grande por poderem dar a sua
contribuição nos banhos coletivos dos muitos bebês, em especial de uma dupla de
gêmeos de poucos messes. As mulheres e moças abrigamos em nossa casa, os homens
e rapazes no galpão e na garagem. Todos estavam felizes por terem encontrado
sombra e descanso.
O
dia 18 de fevereiro passou sem notícias e sem aparecimento da policia.
Alimentávamos a alegre esperança que não demoraria uma notícia de Porto Alegre.
A casa e o pátio pareciam um acampamento de
ciganos. A cera com que foram
impermeabilizados lençóis, improvisados por falta de melhor proteção para as
carroças, escorrera com o calor do sol, as roupas de cama ficaram molhadas.
Tudo estava estendida ao sol para secar. Várias crianças e mulheres estavam
doentes, isto quando a viagem apenas
começara com apenas três dias na estrada.
19
de fevereiro. Martelava-se em todas carroças, melhorava-se e acomodava-se a
carga. Um carro de duas rodas acidentado na viagem teve que ser consertado. A
pobre família perdeu muitos pertences. No acidente misturaram-se melado, banha
e querosene com a roupa, roupa de cama e gêneros alimentícios e a família
passou por enorme privação. Contaram-me que a filha de 16 anos portara-se como
uma heroína, segurando com força sobre-humana os bois pelos chifres, até que as
crianças pequenas fossem retiradas do carro tombado, as correias e laços
pudessem ser cortados para evitar uma tragédia maior.
A
atmosfera oprimente perdurou também durante todo esse dia que terminou também
sem uma notícia. A coragem e a esperança por socorro começou a diminuir aos
poucos entre as pessoas. Custou-me muito trabalho mantê-las confiantes.
Na
entrada da noite percebemos a aproximação de um automóvel. Todos correram até a
estrada para certificar-se o que significava. Eu pessoalmente tinha que estar
sempre a postos, para estar presente se alguma coisa acontecesse. Estava consciente da responsabilidade que
assumira de livre escolha da minha parte,
pelos meus atos . Corri até lá. O carro passou lentamente na frente do
pomar com o motor desligado, em cuja sombra estavam estacionados as carroças
dos fugitivos. No banco da frente encontrava-se além do capitão fardado o nosso
delegado. No portão de entrada do pomar o carro parou um momento e escutamos
quando o capitão chamou a atenção do delegado que apontava satisfeito para as
carroças: “Veja, senhor, já estão aqui”. O automóvel seguiu então o caminho em
direção a Porto Feliz. Mais tarde soube-se que o delegado queria estar ausente,
para que uma contra-ordem vinda donde viesse, se tornasse inviável para que os expulsos fossem obrigados a
continuar a marcha para o exílio.
Sabíamos
agora o que estava acontecendo. O senhor capitão deveria ter a impressão de que
a evacuação estava acontecendo em perfeita ordem e que as pessoas seguiam “meio
voluntárias”. Não há dúvida de que a impressão era bastante positiva. Ao
transeunte poderia parecer um acampamento de fim de semana em nosso pomar. O
fato de morarmos bem próximo do limite do território éramos também a última
estação em condições de oferecer abrigo para uma caravana e pasto para os
muitos animais. O sr. capitão nem suspeitava a miséria que reinava nos fundos.
Neste
meio tempo algumas pessoas tinha contraído infecções intestinais ao ponto de
termermos uma epidemia de tifo pois, alguns casos já haviam sido constatados na
colônia. A penúria de água era demasiada e restava outra saída senão beber a
água do rio. Meu cunhado dr. Neff vinha todos os dias fazer uma visita aos
doentes e deixar-lhes medicamentos.
20
de fevereiro. Em vão e angustiados esperávamos a entrada de notícias para
aquela noite. A cavalo percorri todos locais onde supunha se encontrarem
pessoas nossas. Queria ter uma idéia de quantos se encontravam nas estradas e
organizar tudo de tal maneira que a marcha progredisse o mais lentamente possível. Insisti que
permanecesse por mais um ou dias nos pousos pois, confiava que a ajuda viria de
qualquer forma. Observei o desespero em tantos e tantos rostos e tive que
recorrer às últimas reservas para convencer
que as pessoas a manter o ânimo em pé.
A
ameaça contra mim de um forasteiro qualquer que passara provocou a desconfiança
no acampamento dos romenos. Ninguém queria que queria que o acampamento deles
resultasse em algum mal feito contra mim e decidiram e decidiram continuar o
deslocamento com sua caravana, para deixar lugar para os que vinham vindo.
Fiaram para trás somente alguns doentes e aos demais recomendei com insistência
que não passasse dos limites do território da Sociedade União Popular, a fim de
não perdermos o contato. Pra que o contato não se desfizesse cuidaram meus
filhos com suas motocicletas. Sentia-se orgulhosos quando tinham novidades a
comunicar. Não demorou para tornaram-se íntimos com os mais jovens dos
acampamentos de fugitivos.
Seguiu-se
uma intensa atividade de limpeza e de desinfecção do ambiente para, pelo meio
dia acolher a seguinte coluna. Eram todas famílias alemãs das linhas Dourado, Hervalzinho e São João com muitas
crianças pequenas. Fizemos tudo para por à disposição o que era o possível.
Liberamos a roça para colher pasto para os animais. Os homens tinha sempre algo
a fazer nas carroças, concertando, adaptando, modificando o que se mostrara
pouco prático. A situação era
especialmente dolorosa para as mães com crianças e contudo não perderam
o ânimo e a confiança em Deus. Uns ajudavam aos outros e nessa situação a
unidade e a disposição de ajudar-se mutuamente, era maior do que nunca.
Minhas
filhas estavam fora de si entre tantas crianças queridas das quais podiam
cuidar. Já tinham escolhidas as mais pequenas que ficariam conosco para não
enfrentarem a viagem. Havia uma movimentação colorida na casa e arredores. A rotina
diária, da manhã à tarde, consistia em lavar roupa, cozinhar, dar banho nas
crianças, fazer pão e satisfazer as boquinhas com fome. Além das famílias havia
neste grupo também alguns solteiros. Era de fato comovente como se doavam aos
outros. De manhã cede até noite a dentro carregavam lenha, aqueciam o forno,
faziam pasto, ordenhavam as vacas e mostravam-se de todas as maneiras como
companheiros queridos e práticos.
Depois
de me certificar de que todos estavam bem acomodados, cavalguei de volta para
sustar a marcha dos que vinham depois. Insisti que todos ficassem no ponto em
que se encontravam. Mas horas passavam e a situação tornava-se cada vez mais
desesperadora. Havia abrigados também nas propriedades das minhas irmãs e da
vovó, como também em ao longo da estrada onde havia galpões e telhados. Um
grupo bem humorado havia avançado até a atura o nosso vizinho.
Autodenominavam-se os 12 apóstolos e o “Zöllner”, (cobrador de impostos).
Tratava-se dos homens casados com brasileiras, aos quais era mais fácil manter
o humor pois, as mulheres e as propriedades foram mantidas em funcionamento.
Marchavam a pé cada qual levava apenas o mais indispensável.
Dois
homens vieram de Porto Feliz para informar-se sobre um possível socorro e
orientar os expulsos de lá acordo com a
resposta. Minha situação tornava-se cada vez mais difícil, porque eu esperava
tão desesperadamente por notícias quanto os demais. Agarrava-me cada vez mais
no conteúdo de um telegrama do sr.
Gaston Englert de oito dias arás, no
qual se pedia para reter os colonos. Sempre tive o sr. Gaston Englert
como um dos dirigentes mais proeminentes da Sociedade União Popular. Isso
impediu-me que eu vacilasse o sr.
Englert pode ter a certeza que o telegrama enviado na ocasião foi a última
centelha de esperança de todos os dispersos. Com certeza dificilmente e toda a
sua vida um telegrama dirigido a pessoas na maior das angustias e aflições,
significou tanto quanto este que decidiria sobre um destino tão desumano. O
fato de as negociações de uma intervenção nos acontecimentos se arrastassem deve ser creditado à distancia e
as circunstâncias, sob as quais foram conduzidas. De qualquer forma da minha
parte fiz tudo ao meu alcance para manter em pé a fé e a esperança das pessoas.
Como
a primeira coluna já avançara até Catres, pedi a um dos padres que rezasse
ainda uma missa e ministrar-lhes os sacramentos se até o domingo não entrasse
uma contra ordem pois, para mim estava claro, que para não poucos significaria
uma marcha para a morte. O sacerdote atendeu de boa vontade ao pedido.
Tarde
naquela noite escutamos o ronco de um carro na altura da barca. Meu filho
precipitou-se imediatamente até lá, mas o caminhão já se fora. Soube,
entretanto, que um religioso viajara com ele. Enquanto esperava a volta do meu
filho na beira da estrada, apareceu um passageiro do caminhão. Perguntei-o por
notícias, mas de medo ele nada informou.
Por fim consegui que ele dissesse que tinha escutado que o socorro
estava a caminho. Forneceu-me também o nome de um conhecido que chegara pela
outra estrada até Itapiranga. Deduzi que ele era o portador da notícia. As
pessoas vinha correndo de todos os acampamentos com a esperança que se tratava
da notícia tão esperada. Contudo não passou de uma centelha de esperança.
Pisávamos em brasas. A inquietude aumentava constantemente e a maioria começou
a perder a esperança por uma salvação. Tinham medo dos castigos com que foram
ameaçados na eventualidade de resistência. Não restou-me outra saída a não ser
pedir que esperassem até o domingo.
Pela
meia noite quando a lua nasceu e subiu
no firmamento, iluminando o caminho, meu filho percorreu com a motocicleta o
longo caminho até Itapiranga, a fim de informar-se se alguém sabia de alguma
novidade. Naquele domingo de manhã reunimo-nos em nossa casa para uma devoção.
Vieram também os acampados na
vizinhança, ocupando todo espaço disponível. Há muito tempo estavam proibidos
os cantos religiosos em língua alemã. Mas naquele dia ressoaram no “meu
castelo” os velhos versos, talvez pela última vez, carregados pela nostalgia
pela quietude do domingo. Comovi-me com a devoção, de modo especial dos homens
pois, aquele domingo foi para todos um dia decisivo e o clima de incerteza
minava os nervos. Minhas filhas acompanharam as belas canções no harmônio e no
final uma senhora pediu pelo menos mais um canção. Entendi muito bem a sua
angustia pois, deixara para trás, com as irmãs de Itapiranga a meno para evitar
que sucumbisse naquela marcha para a morte.
Implorou
para minha filha: cantemos mais uma vez a canção: “Confia minha alma, confia no
Senhor”. Todos entoaram com muita seriedade a canção, mas já não era um cantar
mas um implorar, o último grito de socorro vindo do fundo da alma e do
abandono. Impossível reter as lágrimas: “Quando tudo desaba, Deus não nos
abandona pois, a angustia não é maior do que Salvador”. Enquanto lá dentro repetíamos o último verso,
ouvimos lá fora na estrada meu filho
dava sinal na motocicleta. O último “Deus fiel”, mas deixara de soar, quando
todos se apressaram em correr para fora. A motocicleta contornou a esquina e
avistei meu filho levantar bem alto e sacudir uma carta, enquanto gritava: “De
Porto Alegre”.
Foi
esta a resposta imediata ao grito de socorro e que nos abalou a todos.
Constatou-se mais uma vez de que: “Onde a necessidade é maior, Deus está mais
perto”. Eram duas cartas, uma do meu marido que nos comunicava que poderíamos
ficar todos onde estávamos e um longo relato do dr. Albano Volkmer, dando conta
das providências que estavam sendo tomadas no Rio de Janeiro para intervir no
processo e que esperássemos tranquilamente até ser emitido um documento oficial neste sentido da parte das
autoridades. Todos respiramos aliviados pois, tínhamos certeza que o cortejo da
morte seria interrompido.
(
O relato conclui na postagem que segue)