O
documento que apresentamos a seguir é o Relatório II da Chefatura de polícia do
Rio Grande do Sul, publicado em 1942.
Consiste na continuação e complementação do Relatório I. É apresentado
e, 7 partes: uma introdução geral;
- a segunda, uma análise da
participação da propaganda do consulado e, em especial, do cônsul Ried; - a
terceira, sobre religião e política nazista, abordando a questão dos pastores
protestantes e pregadores do Evangelho como meio para contrabandear a ideologia
nacional-socialista para dentro do País;
- a quarta, ocupa-se como
envolvimento da União Beneficente e Educativa Alemã na difusão das ideias e propostas
nazistas; - a quinta, ocupa-se com a propaganda e mostra
como os ideais nacional-socialistas são veiculadas por meio de toda a sorte de
publicações como livros, jornais, almanaques, revistas, periódicos, impressos
avulsos, etc.; - a sexta, leva o título “Juventude Brasileira”
e trata do aliciamento dos jovens para a ideologia nazista, principalmente
pelas organizações criadas para essa finalidade; -
sétima, esse capítulo centra sua as atenções à Liga Colonial do Reich e
o Boicote Comercial.
Neste
Relatório as autoridades policiais oferecer às demais autoridades e aos
brasileiros em geral, as provas definitivas da existência de um “perigo alemão”
no Estado, desmascarando sues agentes e denunciando seus métodos. O Relatório
II começa com uma introdução na qual se afirma:
“Outras
faces do problema, não divulgadas então, (no Relatório I) aparecem agora examinadas
de forma a permitir, não só ao Governo do Estado, como aos altos responsáveis
da República, um estudo completo da matéria. Julgamos ter cumprido assim, um
indeclinável dever patriótico, tornando possível aos novos dirigentes o exame
de um assunto que afeta a própria nacionalidade. Durante muito tempo não se
acreditou e até zombou-se da existência de semelhante caso. Os documentos
apresentados em nosso primeiro relatório em parte abalaram tal incredulidade. O
povo só mais tarde foi orientado pelos jornais, com a divulgação de noticiários
estrangeiros, referentes às pretensões de Hitler na América do Sul. (Relatório
II. P. 7)
Após
essas palavras introdutórias, segue uma série de referencias indicando os
tópicos que foram considerados especialmente ilustrativos par comprovar o
“perigo nazista” no Estado. Afirma-se que o nazismo, em nome do princípio da
autodeterminação dos povos, exige a união de todos os alemães em uma grande
Alemanha. Segundo o Relatório, foi essa a razão pela qual se estabeleceram
comunidades alemãs no exterior que, pelas sociedades e associações perseguiam
como finalidade maior a preservação dos valores, costumes e a maneira de ser alemã.
Seguindo
na sua exposição o relator afirma que germanismo e nazismo são conceitos que se
confundem. Um é essência do outro. Portanto, sem nazismo não há razão de ser
para o germanismo, sendo o inverso também verdadeiro. Estamos aqui frente a
mais um equívoco em incorreram os nacionalizadores. Basta abrir o dicionário
Aurélio e conferir o significado do termo “germanismo”. Os três significados
básicos são: 1.Palavra, expressão ou construção peculiar à língua alemã; 2. Admiração
excessiva ou fanática de tudo quanto é alemão; 3. Imitação das maneiras,
costumes ou coisas alemãs. A confusão é evidente. Tomando como base o segundo e o terceiro
sentidos, o temo germanismo reporta-se à história, às tradições, , usos,
costumes, enfim, à maneira peculiar de os alemães se identificarem, o
normalmente se chama de germanidade. Ora
o nazismo não passa de uma ideologia política que defende a ideia de um estado nacional-socialista. O conceito
de “germanismo” foi, entretanto, interpretado no Relatório como número conceito
racial: “Eliminando a questão racial (germanismo), terá desaparecido o
nazismo”. (Relatório II, p. 8). Em vez de esclarecer a questão alemã do
nazismo, o autor do Relatório agrava ainda mais a confusão. Quando em qualquer
ambiente razoavelmente informado, o termo germanismo é entendido como um
conceito de natureza cultural, no Relatório
é reduzido a uma um mero significado biológico, confundindo-o com o
conceito de raça.
O
autor ou os autores do Relatório incorrem num segundo equívoco e este ainda
mais danoso, quando afirmam que “nazismo e germanismo” são a essência um do
doutro. É a mesma coisa do que afirmar que a ideologia nacional-socialista é
fruto do germanismo e que o germanismo, por sua vez, se perpetua pelo nazismo.
Aqui há duas coisas que merecem destaque. A primeira, quando se fala em
germanismo entende-se de fato uma tradição cultural e não uma concepção
idiossincrática da raça alemã. É certo que uma tradição cultural, uma história
de muitos séculos, com valores consolidados e implementados por usos e costume
próprios, oferece solo fecundo para germinar e medrar uma determinada
ideologia, no nosso caso, a nazista. Concluir daí, porém, que foi produto do
germanismo, não passa de um reducionismo simplista. Ninguém nega que o
nacional-socialismo encontrou chão fértil numa Alemanha destroçada pela guerra
e mergulhada numa profunda crise de identidade, somada ao caos social, político
e econômico. Seus defensores souberam aproveitá-lo magnificamente como forma
para reafirmar a identidade nacional e reencontrar a sua própria dignidade.
Um
outro aspecto da questão mercê ser lembrado. De que maneira o germanismo pode
ser considerado como a essência do nacional-socialismo, se esse tipo de
ideologia, floresceu nos pontos mais distantes do planeta e entre povos com
tradições as mais diversa. Basta lembrar o fascismo na Itália, o falangismo na
Espanha, o salazarismo em Portugal e, não esqueçamos, o nacionalismo do Estado
Novo no Brasil. Essa confusão toda só foi possível na medida em que as
autoridades nacionalizadoras não se aperceberam de que estavam identificando
erroneamente, um conceito de natureza cultural com uma concepção ideológica de
Estado e da sociedade, aliada a uma concepção da superioridade biológica de uma raça.
Depois
de lido e examinado o conteúdo do Relatório II é lícito tirar algumas
conclusões.
A
primeira. O Relatório ocupa-se com uma série de fatos que de forma alguma
poderiam ter sido ignorados pelas autoridades, tanto civis quanto policiais.
Entre eles, destaca-se a tentativa de instalação de um rádio transmissor de
longo alcance no navio alemão “Rio Grande”; a posição declaradamente favorável ao nazismo de certos líderes
religiosos; o rumo que uma série de organizações teuto-brasileiras começavam a
seguir; a orientação de setores da imprensa
veiculando matérias favoráveis à ideologia nacional-socialista.
A
segunda. Outras questões, como foi a de legalizar a União da Juventude
Teuto-Brasileira posta fora da lei; o
episódio do boicote comercial; a acusação contra pastores evangélicos
como porta vozes disfarçados do nacional-socialismo e outros, pareem pouco relevantes, quando
encarados como seriedade e objetividade.
Terceira. Ao analista de hoje salta aos olhos
o exagero de importância que atribui indistintamente a todos os fatos. As
circunstâncias criadas pelo envolvimento progressivo do Brasil no conflito
mundial a favor dos aliados, explica de alguma forma a reação das autoridades
municipais, estaduais e federais. Não justificam, entretanto, o clima de pânico
e terror que espalharam entra as populações de origem alemã.
A
quarta. A maioria dos fatos e episódios arrolados continha um potencial de
periculosidade nada desprezível. Limitavam-se, porém, a grupos e circunstâncias
localizadas e identificadas e a polícia dispunha dos instrumentos necessários
para neutralizá-los. De outra parte, 80% ou mais da população teuto-brasileira,
estava fora do alcance e da influência exercida pelos postos avançados do
nazismo. Inserir qualquer teuto-brasileiro na lista dos nazistas não passou de
equívoco funesto e enorme injustiça. O grosso da massa de cidadãos brasileiros
de origem alemã nada mais ambicionava do que pôr em prática a sua cidadania por
meio do trabalho honesto, cumprindo assim suas obrigações cívicas e religiosas.
O nazismo pouco, melhor, nada tinha a lhes oferecer. A maioria o rejeitava por
causa da hostilidade à religião e religiosidade.
Com
tudo não se quer afirmar que não se desse importância às organizações e aos
indivíduos comprometidos com a propaganda nacional-socialista. Seu número e,
principalmente, sua virulência e fanatismo exigiam das autoridades responsáveis
uma atitude firme. Uma investigação inteligente, seguida de uma ação policial
firme, os teria reduzido à inanição, dispensando esforços e aparatos de
exceção. No País vigoravam leis suficientes para o caso e, em tempo de guerra,
acresciam as regras próprias para a situação, ditadas pelos tratados
internacionais. O perigo nazista no sul do Brasil foi exagerado e transformado
num monstro que na realidade não passava de um caso de polícia, um pouco mais
complexo do que os do dia a dia.
Aurélio Py - Chefe de Polícia no período da nacionalização.