Nacionalização e ação policial no Estado Novo - Nacionalização e ação policial em Santa Catarina A caravana dos expulsos de 1943

Nota introdutória
Os anos de 1942, 1943, 1944 e 1945 foram especialmente difíceis ara os imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil, de modo especial  nos estados do sul. A Campanha de Nacionalização, desencadeada em 1938, assumira características de uma perseguição sistemática e implacável  contra tudo e todos que, de alguma forma sugerissem  alguma relação com o que era alemão, ou assim  pudesse ser interpretado. A situação agravou-se em muito depois da entrada  do Brasil na Guerra, em agosto de 1942. Falar alemão, ler alemão, manter relações de amizade com algum alemão, ou simplesmente  ter cabelos louros, colocava a pessoa sob suspeita  de traição. A ação policial tornou-se cada vez mais ostensiva  e mais draconiana. As prisões se sucediam. O confinamento  em cadeias comuns ou em colônias penais, tornou-se  um fato rotineiro. Não se respeitavam nem os princípios mais elementares  da inviolabilidade dos lares, do livre ir e vir e a integridade física ou moral. Instalou-se um clima generalizado de  suspeitas, de vinganças, de temores. Em não poucos casos, as pessoas acuadas pela ação policial, viviam com que em prisão domiciliar.

O documento aqui publicado é bem uma amostra dos extremos a que se pode chegar em circunstâncias como as que predominaram nos estados do Sul durante a Segunda Guerra Mundial. Foi redigido pela sra. Maria Rhode, alemã de nascimento, mas portadora de cidadania norte americana e esposa de Carlos Rhode, diretor da Colônia de Porto Novo (Itapiranga), no extremo oeste de Santa Catarina A Colônia contava na época com apenas dezoito anos. Fundada em 1926, compreende hoje os municípios de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis. As terras haviam sido adquiridas pela Sociedade União Popular, organização dos teuto-brasileiros católicos, com sede em Porto alegre, e estavam sendo vendidas aos associados, dentro de um projeto étnica e confessionalmente identificado. Entendem-se perfeitamente as preocupações das autoridades frente a uma população exclusivamente de alemães  e descendentes de alemães, assentada numa área de fronteira desprotegida com a Argentina, manifestamente simpática à Alemanha, e o Brasil, em estado de guerra declarada àquele país. O fato de uma  porcentagem significativa  dos moradores da Colônia terem sido alemães natos, imigrados para Brasil depois da Primeira Guerra Mundial, foi um motivo a mais para suspeitas. Acontece, porém, que entre eles não havia ninguém filiado  ao partido nazista, como acontecia com frequência em outros lugares no Sul do Brasil. Pelo contrário. Uma porcentagem significativa deles tinha emigrado da Romênia. Eram descendentes  dos antigos   alemães imigrados para a Rússia, expulsos pelo regime. Portavam certidões de nascimento russos. Refugiados na Romênia, obtiveram passaportes alemães e haviam imigrado legalmente para o Brasil. Um segundo grupo era formado por profissionais liberais, inclusive de nível superior, que haviam abandonado a Alemanha devido à sua posição  contrária ao regime nacional-socialista. Foram tentar a vida como colonos naquela fronteira de colonização. Os demais tinham o perfil do imigrante convencional que migra a procura de melhores oportunidades em outro país.

Fica mais do que evidente que os alemães estabelecidos na Colônia de Porto Novo, não tinham nenhum envolvimento, muito menos compromisso com a ideologia  nacional-socialista. Pelo contrário. Um bom número deles podia ser considerado banido pelo sistema nazista. Um segundo grupo era composto por cidadãos russos expulsos pelo regime comunista. Pessoas comuns, para as quais o nazismo não oferecia nada que as pudesse aliciar,  formavam o terceiro grupo.

Pois bem. Foi exatamente naquela fronteira de colonização, no extremo oeste de Santa Catarina, que a Campanha de Nacionalização produziu um dos episódios policiais mais negros, mais constrangedores e por isso mesmo, quem sabe, pouco conhecido. Os alemães romenos expulsos da Rússia, os alemães que haviam abandonado o país por causa do nazismo, os alemães emigrados em busca de melhores oportunidades de vida, descendentes de imigrantes alemães de até a quarta geração, foram todos nivelados pela acusação de terem sido nazistas ou no mínimo simpatizado com o nacional-socialismo. A distância, o isolamento e as dificuldades de comunicação, facilitaram uma ação   policial que, objetivamente falando, avançou para além dos limites do aceitável, mesmo em tempo de guerra.

O documento não deixa claro até que ponto as autoridades locais e regionais agiram por conta própria e até que ponto estavam obedecendo orientações superiores. De qualquer maneira fica difícil imaginar  que delegados de polícia locais e comandantes subalternos da policia assumissem, por sua conta e responsabilidade, o confisco  de bens e propriedades,  a deportação de centenas de homens, mulheres e crianças, com o objetivo de concentrá-los num campo de confinamento, sem assistência, sem infra-estrutura, abandonados à própria sorte.

Da época da Segunda Guerra Mundial tem-se notícia de mais três campos de confinamento de alemãs no Brasil, porém, com características diferentes daquele de Porto Novo e até certo ponto compreensíveis nas circunstâncias. Dois deles foram instalados no vale do Paraíba para receber  as tripulações de navios mercantes alemães fundeados no porto de Santos, por ocasião  da declaração de guerra do Brasil à Alemanha. Um terceiro, noticiado ultimamente pela revista Veja, edição de nº 1338, de 18 de março de 1998, encontrava-se em Pernambuco, com a finalidade específica de confinar os funcionários alemães das Lojas Lundgreen. Suspeita-se neste caso que o confinamento tivesse, na verdade a finalidade de proteger os funcionários da Lundgreen, para não serem molestados pelo fato de serem alemães.

O caso de Porto Novo assumiu conotações muito mais dramáticas do que os demais. Colonos com suas famílias, homens, mulheres e crianças, depois de espoliados dos seus bens e sequestradas as economias, de um dia para o outro, foram simplesmente expulsos da Colônia e obrigados, sem um mínimo de apoio logístico, a empreender uma peregrinação até Xanxerê. Essa localidade ficava a 200 quilômetros  para o norte no estado de Santa Catarina, na região do campo. Vamos ao relato de Maria Rhode.

O sol escaldante torrava toda a paisagem, as plantações ressequidas, a mata vigem seca, por sobre os caminhos, sobre os homens e os animais. Os alegres arroios que em melhores tempos rumavam céleres e alegres ao encontro do grande irmão Uruguai, estavam secos. Seus leitos cobertos de pedras e cascalhos nus, ofereçam um espetáculo desolador. Aqui e lá, ora perto, ora longe levantavam-se incêndios bastava cair uma fagulha para incendiar a vegetação seca. Um odor pesado de fumaça e fogo tomava conta da atmosfera. Nenhuma brisa mexia as folhas e um calor de 32 a 35 graus R. Na sombra, paralisava  qualquer ser vivo.

Haviam-se passado três semanas de medo e preocupações pois, os incêndios na mata faziam-se visíveis  por toda  a parte. As ondas de fogo aproximavam-se também de nós. Atrás do morro na propriedade a mata virgem estava em chamas e não havia água para apagar o fogo. Jamais os estados do sul tinham passado por tamanha estiagem. Há meses que não caía uma chuva satisfatória e a grande maioria dos poços tinham secado. Só com muito trabalho os colonos conseguiam água para os animais domésticos. Não poucos viam-se obrigados a levar o gado até bebedouros afastados. E quando a  propagação da voracidade avançou ao ponto de ameaçar as benfeitorias e as plantações dos colonos, os vizinhos uniam-se e abriam largas brechas na mata virgem, para atalhar o avanço do fogo. E como não soprava uma brisa sequer obtiveram êxito.

Num desses dias meu ilho mais velho chegou em casa com tantas e tamanhas bolhas na a ponto de quase não conseguir movimentar a mão.  Foram os terríveis dias do verão 1942-1943. Jamais esqueceremos o que passamos.

Continuava parecer-me inacreditável a ordem de partir de todos os estrangeiros. Já não bastara que os homens arrimos da família fossem levados e durante semanas não se tinha notícia do seu paradeiro, enquanto mulheres e crianças lutavam sozinhas nas roças para garantir o pão de cada dia. E agora, todos eram obrigados a partir? É verdade que as crianças nascidas no Brasil podiam ficar para trás. Mas, será que esses desumanos por acaso acreditavam que uma mãe alemã deixaria seus pequenos sozinhos para trás? Era possível apenas no caso de que os filhos já estivessem mais crescidos, ou se pudessem ser confiados a pessoas de confiança. As bondosas irmãs de Itapiranga assim como famílias decentes, encarregaram-se algumas das menores, sem condições de suportar os incômodos da viagem. No geral, porém, as mães não se separaram dos filhos.

Havia também imigrantes alemães casados com mulheres brasileiras e vice-versa, fazendo com não poucas famílias fossem separadas à força. Qualquer pode imaginar-se o que significa deixar para trás a casa, as benfeitorias, as plantações e mudar-se para uma terra desconhecida, sem recursos e sem meios de locomoção; percorrer caminhos sem sombra, parte pela mata virgem, parte pelo campo, com temperaturas beirando os 35º. Penalidades legais seriam aplicadas aqueles que até o dia 15 de fevereiro não tivessem deixado suas propriedades.

No dia 16 de fevereiro, a primeira coluna de expulsos, movimentava-se lentamente pelos caminhos cobertos de pó. Onze simples carroças de colonos, carregadas com gêneros alimentícios, alguma louça, roupa de cama e crianças pequenas. Alguns homens e mulheres seguiam com vacas, outros as levavam presas às carroças, puxadas  por cavalos, mulas ou bois.

A “coluna dos condenados à morte”, por nós chamada assim para expressar o nosso estado espírito pois, que outra coisa esperariam as pessoas em tais circunstâncias?

Em países em guerra os cidadãos inimigos são internados em campos de confinamento, onde encontram abrigo e onde se lhes garante o básico de alimentação. Nada disso aconteceu aqui. Os estrangeiros inimigos foram proibidos de vender propriedades, seus depósitos nos bancos bloqueados, todas as armas arrestadas. A estação do trem ficava a 200 quilômetros de distância e não oferecia possibilidade de transporte. Os caminhões que não conseguiam gasolina, mantinham a muito custo o contato com o mundo exterior. De mais a mais nem havia possibilidade de trafegar nas estradas em péssimo estado até o longínquo local do exílio.

Naquela altura nem dispunha de um único caminhão em condições de trafegar em Porto Novo. Todos encontravam-se em viagem e tenho certeza de que nenhum dos nossos motoristas teuto-brasileiros, tinha vontade de colaborar que a determinação desumana, abstraindo do fato de que dificilmente alguma das famílias dos colonos dispunha de meios para pagar a viagem. Ninguém tinha a mínima ideia onde se localizava Xanxerê  e como eram as condições de lá. Dizia-se que ficava, na região do campo  cerca de 200 quilômetros para o norte. Noticiava-se também que já se tinham apresentado certos patifes, tentando espoliar os miseráveis de seus últimos recursos, oferecendo a colônia de terra por 7:000$000 ou por 600$000 de aluguel lotes em condições de serem cultivados. Para agravar a situação a estação do plantio demoraria meio ano e a colheita meses mais depois.

Era de chorar o aspeto dessas tristes caravanas. Muito mais miseráveis do que viaturas de ciganos. Estas pelo menos dispunham de uma cobertura e normalmente pelo menos uma lona protegendo os carros, coisas que as nossas caravanas careciam. A crescia a tudo isso o grande número de crianças pequenas e em não poucas famílias a presença de crianças de peito. Todas elas tinham nascido aqui. Eram todas brasileiros natos e cidadãos de plenos direitos. E neste caso?

Os primeiros a chegar foram os teuto-romenos do interior. Durante a primeira Guerra Mundial esses alemães fugindo da Rússia, tinha perdido tudo. A Alemanha empobrecida recebera na ocasião os fugitivos como netos e bisnetos dos antepassados emigrados. Tratou-se com simpatia e mais tarde receberam a autorização de imigrar, para aí construir uma nova pátria e agora estavam sendo coagidos a peregrinar como apátridas, arrastando consigo uns poucos pertences. Receberam o tratamento simples e puro de estrangeiros inimigos, só porque tinham viajado com passaportes alemães, embora portassem atestados de nascimento russos.

Esta foi a primeira caravana: 64 pessoas e 58 animais. A esta seguia caravana após caravana, os demais homens, mulheres e crianças, alemães de nascimento. A revolta e estupefação paralisava toda a população de Porto Novo. Toda a população teuto-brasileira estava de tal forma intimidada pelas buscas domiciliares que haviam precedido, pelos procedimentos brutais e à revelia da lei, como na caso dos cidadãos brasileiros Kliemann e Eidt, que ninguém ousava uma reação. Como todos os demais também o clero tinha as mãos amarradas pois, bastava uma palavra para ser ameaçado com prisão e pauladas e em alguns casos levados a  efeito.


(O relato  continua na postagem seguinte)

This entry was posted on quarta-feira, 8 de outubro de 2014. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.