Archive for maio 2024
Da Enxada à Cátedra [ 9 ]
Festa em família.
Em outubro do ano em que eu contava com 6 anos de idade meu irmão mais velho, o Balduino foi ordenado sacerdote jesuíta na catedral de Porto Alegre. Por tratar-se de um acontecimento marcante para a família, meus pais resolveram estar presentes na solenidade e decidiram levar- me com eles. Para as pessoas de hoje que vencem esse trajeto de cerca de 100 quilômetros em duas horas ou menos, por estradas asfaltadas, fica difícil imaginar as peripécias e o tempo de dois ou três dias que se levavam para percorrer a mesma distância em 1936. A “aventura” começou com uma caminhada de madrugada de mais ou menos 8 quilômetros, descendo o Morro da Manteiga, passando pela Linha Mauá, na época conhecida como “Blumental” ou também “Stutental, ou Strutetal” no dialeto, para terminar em Bom Princípio e embarcar no ônibus para São Leopoldo. Foi preciso levantar às 3 horas da madrugada fazer a caminhada em grande parte ainda no escuro. A descida do morro passava por uma trilha de mato. No dia anterior a mãe aprontou tochas com varas de bambu e buchas de panos velhos na ponta, embebidos com banha para iluminar a descida pelo mato coberta de pedras soltas e sulcos cavados pela água da chuva. Pelas 7 da manhã chegamos em Bom Princípio onde nos esperava o ônibus. Comparado aos de hoje esse veículo ninguém imaginaria que fosse um meio de transporte popular como são hoje os ônibus. Começava por aí que os bancos atravessavam de lado a lado e o embarque se dava entrando pelos lados. A bagagem ficava acomodada nos fundos ou na frente ao lado do motorista. Uma estrutura de madeira coberta com lona e uma lona enrolada em ambos os lados, podia ser descida para proteger da chuva e do vento frio. Enfim uma grande carroça, melhorada e sobre pneus, puxada por um motor em vez de bois, cavalos ou mulas e um motorista em lugar do cavaleiro manejando as rédeas, cuidando para manter o veículo na estrada de chão batido, que em épocas de chuva, virava uma sequência de atoleiros.
Embarcamos com os nossos poucos pertences. A minha primeira surpresa veio depois de um ou dois quilômetros de viagem. Do lado esquerdo da estrada acompanhava-nos, meio encoberto pela vegetação de arbustos o rio Caí. Para mim que conhecia apenas fontes e pequenos córregos na vizinhança da nossa casa e na roça, a visão de tanta água gravou na minha memória uma imagem que até hoje ressurge automaticamente quando se menciona Bom Princípio. Um pouco mais adiante um desvio da estrada descia até a altura da água do rio e a barca encostada com a rampa de acesso apoiada na margem. O local era conhecido com do “Passo do Selbach”, único ponto de travessia para veículos pesados entre São Sebastião do Caí e Bom Princípio. Em ponte ou pontes nem pensar na época. Nos períodos de pouca chuva e o rio no nível mais baixo, carroças, cavalos, cavaleiros, animais domésticos e até pessoas a pé, atravessavam o rio sobre os cascalhos expostos um pouco a montante do remanso onde passava a barca. Chamo a atenção que a barca presa a um cabo de aço fixado nas duas margens do rio, era levada de uma margem à outra, no braço, como se dizia, pelos barqueiros. No outro lado, perto do rio ao lado de uma casa de comércio o ônibus foi abastecido numa bomba de gasolina acionada manualmente. Depois seguimos viagem para São Leopoldo. A viagem evidentemente levou horas. Não guardo na memória detalhes dela. Mas, recordo-me perfeitamente de quando nos aproximamos de São Leopoldo. Lá adiante a igreja matriz e à direita os prédios do Seminário, mais tarde da Unisinos. Não esquecerei nunca a travessia do Sinos pela ponte 25 de julho. Pranchões de madeira soltos permitam a travessia em vez do concreto e asfalto de hoje. O barulho causado pela passagem dos rodados do ônibus ainda hoje soam em minha memória. Na minha percepção parecia que iríamos terminar caindo no rio. Depois de entrar em São Leopoldo desembarcamos do ônibus e percorremos a pé as poucas quadras até o Colégio São José onde nos aguardava uma irmã do meu pai, a irmã Pancrácia. Ela nos recebeu e nos mostrou as dependências do Colégio: principalmenteacapelaeahortasobsuaresponsabilidade. PernoitamosnoColégioSãoJosée no dia seguinte embarcamos de novo no ônibus que nos levaria até Porto Alegre. Naquela época a primeira estrada pavimentada do Rio Grande do Sul, recém inaugurada ligava o centro de São Leopoldo com Porto Alegre. A faixinha como ficou conhecida, feita de cimento media 3 metros de largura, seguia o mesmo traçado da estrada que hoje passa pelo Cemitério Ecumênico, cruza o horto florestal e termina em Sapucaia. Naquele remoto 1936 São Leopoldo, Sapucaia, Esteio, Canoas e Niterói não passavam de núcleos urbanos de pequeno porte rodeadas de fazendas de criação de gado. Na minha memória ficaram as imagens de rebanhos de gado pastando onde hoje funciona a refinaria Alberto Pasqualini. Do lado esquerdo da estrada os campos avançavam em direção à Gravatai e do outro terminavam na margem do rio dos Sinos. Aliás o bairro Mathias Velho tem esse nome em homenagem ao dono daqueles campos, o estancieiro Mathias Velho. A sede da propriedade ficava onde hoje é a sede da refinaria. Aquela viagem entre São Leopoldo e Porto Alegre foi uma experiência única. Pela primeira vez ultrapassava os topos dos morros que limitavam o mundo da minha infância. Foi a primeira incursão para dentro do grande mundo e a sensação única da linha do horizonte distanciando-se na medida em que o ônibus avançava sobre a faixinha de cimento em direção a Porto Alegre. Os raros automóveis, os famosos Ford de Bigode, que cruzavam por nós serviam de motivo para alvoroço. Chegados em Porto Alegre desembarcamos na frente do Hotel São Luiz no final da Avenida Farrapos onde passamos a primeira noite. Não me lembro de muitos detalhes pois, as novidades eram tantas e tão estranhas para um menino da colônia que até então circulara num mundo completamente diferente, entre animais domésticos, na sombra de grandes árvores e na entrada de uma faixa de mata virgem. De uma sacada do hotel fiquei observando por um bom tempo o movimento no cruzamento das ruas na minha frente. Não havia sinaleira e a disciplina do trânsito ficava a carga de um guarda postado em cima de uma armação de madeira colocada no meio do cruzamento. Os braços levantados e um apito na boca comandava o fluxo dos poucos veículos que passavam por aquele ponto. Torcia para que nenhum deles trombasse naquele caixote e derrubasse o guarda de trânsito e o ferisse.
No dia seguinte subimos até o Colégio Bom Conselho onde nos esperava a irmã Pelágia minha tia, também irmã do meu pai e minha irmã Tecla, mais tarde como religiosa, irmã Antônia, interna naquele colégio. Situado no final da rua Ramiro Barcelos no alto do bairro Moinhos de Vento, permitia uma vista em direção ao Guaíba sobre praticamente toda a Porto Alegre de então. Aquele mar de casas com telhados de telhas vermelhas, nenhum prédio de mais de dois, no máximo três andares, barrava a vista do Guaíba e do outro lado, já no horizonte o aglomerado de casas de Pedras Brancas, hoje cidade de Guaíba. Na ponta mais avançada da cidade o gasômetro com sua chaminé e do lado o “cadeião”, antigo presídio mais tarde demolido com a transferência dos apenados para o atual presídio no Partenon. Como no interior colonial o tamanho e o número de porcos e chiqueiros costumava ser um dos critérios para avaliar os bem ou mal sucedidos e como não tinha visto nenhum chiqueiro em Porto Alegre fiz a observação que rendeu boas risadas. “Aqui na cidade deve haver muitos pobres pois, não vi nenhum chiqueiro até agora”. Depois dessa observação minha tia levou-me para o porão do colégio e me mostrou dois ou três porcos enormes engordando com as sobras da cozinha do internato e os descartes da grande horta que as irmãs cultivavam nos fundos da instituição. Gravei também na memória o estilo e as características arquitetônicas do Hospital Moinhos de Vento, vizinho do Bom Conselho. Naquela noite hospedamo-nos naquele colégio para na manhã do dia seguinte cedo, nos deslocarmos até a catedral onde aconteceria a ordenação sacerdotal do meu irmão Balduino e seus colegas Antônio Steffen, Afonso Hansen, Canísio Orth e Ervino Schmidt. A catedral encontrava-se ainda em fase de construção. Por isso a cerimônia da ordenação presidida pelo arcebispo D. João Becker ocorreu na cripta. Não me lembro de detalhes daquele ritual todo. Só sei que o achei muito longo e cansativo. O que me impressionou naquela cripta nada tem a ver com a ordenação sacerdotal. Foram aqueles rostos enormes moldados no lado de fora da cripta que deixaram em mim uma sensação desagradável de mistério e medo.
Encerrada a cerimônia da ordenação embarcamos no ônibus para voltar até São Leopoldo. Dessa vez nos hospedamos num hotel, se não me engano, Rio Branco, no outro lado da igreja. Depois de nos termos acomodado fui para a calçada junto com minha mãe. Inexperiente naquele ambiente me pus a atravessar a rua sem dar atenção ao trânsito e por pouco não fui atropelado por um dos poucos automóveis que circulavam em São Leopoldo. Só me lembro que alguém que passava agarrou-me pelo braço e puxou-me de volta para a calçada. Na manhã seguinte aconteceu uma sessão solene preparada pelos seminaristas e professores do Seminário Central para os novos sacerdotes. Lembro-me que houve discursos e declamações de poesia, apresentações do coral do Seminário, tudo muito estranho e fora da compreensão de um menino da roça de 6 anos. Terminada a sessão solene oficial, saímos do auditório e meus pais e eu ficamos aguardando meus dois irmãos o Pe. Balduino e o Roberto, estudante de Filosofia. Nesse intervalo veio ao nosso encontro o Pe. Godofredo Kessler, prof. de Teologia e me presenteou com uma enorme barra de chocolate. Nunca tinha visto na minha vida, muito menos saboreado um chocolate. A mãe levou essa barra de chocolate para casa e guardou no roupeiro da sala. Durante dias minha mãe, a Ana, minha irmã com dificuldade de locomoção, repartimos parcimoniosamente aquela guloseima e a degustamos com autêntica devoção. O Pe. Kessler seria 25 anos mais tarde meu professor de Teologia, meu grande defensor e apoiador quando, como aluno de Teologia já lecionava Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, motivo de não poucos ciúmes dos meus colegas jesuítas. Foi o presidente da banca de 5 examinadores do meu exame “ad Gradum”, isto é, o exame de recapitulação e coroação dos 3 anos de Filosofia e 4 anos de Teologia que faziam parte obrigatória da formação dos jesuítas na época. Mais abaixo ao detalhar a minha formação acadêmica, darei mais detalhes sobre o significado do exame “ad Gradum”. Ao Pe. Godofredo Kessler, oficial veterano da Primeira Guerra Mundial, rendo aqui a minha gratidão póstuma.
Terminada a sessão solene no Seminário Central embarcamos no ônibus de volta a Bom Princípio. De lá, carregando os poucos pertences que havíamos levado para a viagem, vencemos de novo os 8 quilômetros pela Linha Mauá, subindo no final a encosta do Morro da Manteiga para voltar à minha inesquecível casa à sombra do emblemático e majestoso plátano cuja imagem se perde também nas brumas do tempo e o farfalhar do vento nas suas folhas ainda ecoa na minha memória.
A segunda etapa das comemorações aconteceu logo na semana seguinte. Meu irmão, agora Pe. Balduino, viria celebrar as suas “primícias”, isto é, a primeira missa solene na igreja matriz da terra natal, Tupandi. Esse tipo de solenidade envolvia principalmente a família, os parentes próximos, a vizinhança e, em parte, a comunidade como um todo. O acontecimento se deu no dia primeiro de novembro de 1936, festa de Todos os Santos. Começou já na tarde do dia anterior com a recepção solene do neo sacerdote. Bem ao gosto da época a comunidade se reuniu em frente ao sobrado do dentista Balduino Weber, hoje restaurado como referência arquitetônica transformado em memorial com museu e biblioteca. Um piquete de cavaleiros formado por rapazes e moços foi receber o Pe. Balduino no limite da paróquia e numa solene cavalgada, ele montado no cavalo mais vistoso que foi possível localizar na paróquia para apear na frente do solar. Os padres presentes junto com neo sacerdote entraram no sobrado onde se paramentaram. Depois, acompanhados pela comunidade dirigiram-se em solene procissão até a igreja matriz, uns duzentos metros mais adiante. Com o templo lotado foi ministrada uma bênção solene (naquela época não se celebravam missas à tarde), depois o povo voltou para as suas casas. Também eu, com meus pais e irmãos, voltamos para passar a noite na nossa casa no Morro da Manteiga, para voltar na manhã seguinte para a solenidade propriamente dita da Missa Solene e, depois o almoço festivo para os parentes e convidados, no salão de baile do Afonso Konzen.
Para a missa solene do dia seguinte a igreja paroquial foi pequena, toda ornamentada com palmeirinhas do mato e belos exemplares de palmito colhidos nas encostas do morro de Santa Rita, fixados nos arcos do portal de entrada e nas colunas interiores. Os paroquianos que de alguma forma tinham condições se fizeram presentes para homenagear o ilustre filho da comunidade do qual todos, parentes ou não, vizinhos ou não, se orgulhavam. Aos meus pais, irmãos e tios fora reservado um lugar perto do altar. Ficaria longo demais descrever todos os detalhes da missa solene cantada em latim. Vale lembrar que até o Concílio Vaticano II na primeira metade da década de 1960, o latim foi a língua obrigatória para os rituais litúrgicos oficiais da Igreja Católica em todo o mundo, também na administração dos sacramentos, sepultamentos, batismos, etc. O coral sob a batuta do escrivão José Weber, (o Juca Weber) fez ecoar pelas arcadas góticas daquela igreja o Kyrie, o Glória, o Credo o Introito, tão caros ao povo que, embora não entendesse nada da letra, captava no mais íntimo da alma o divino que permeava a melodia. Para a ocasião o recém ordenado em combinação com os pais costumava convidar um pregador de destaque para proferir o sermão festivo. O Pe. Balduino seria mais tarde muito requisitado para essas e outras solenidades. Para o dia o convidado para falar ao povo reunido na igreja foi o Pe. Godofredo Kessler, aquele que me presenteou com a barra de chocolate, amigo e professor de teologia do Balduino. Falou mais do que uma hora, evidentemente em alemão, numa linguagem feita sob medida para esse povo simples e antes de mais nada religioso, num silêncio que se podia ouvir o zumbido das moscas. O momento da consagração foi anunciado pelo estrondo de uma bateria de morteiros alinhados no potreiro do vizinho da igreja misturado ao badalar dos quatro sinos na torre. Nunca vou esquecer essa melodia singular do badalar dos sinos e como fundo os disparos dos morteiros rebatendo nos vales e encostas dos morros das proximidades. Terminada a missa o povo se dispersou e a família e parentes próximos com o homenageado encontraram-se no salão do Sr. Afonso Konzen para o almoço festivo. Pela meia tarde foi o momento de registrar o acontecimento com uma fotografia da família. Guardo comigo como relíquia preciosa o aparelho fotográfico e a foto em preto e branco da família que foi tirada na ocasião. Em vez de filme a imagem era captada numa lâmina de vidro com os devidos produtos químicos e depois revelada e copiada em preto e branco sobre papel fotográfico. Trata-se daquela foto que foi exposta inclusive no aeroporto Salgado Filho por ocasião do centenário do nascimento do Pe. Rambo em 2005 e publicado nos dois livros comemorativos na mesma ocasião: “Os Aparados da Serra – Na Trilha do Pe. Rambo” e “Pe. Balduino Rambo – A Pluralidade na Unidade – Memória, Religião, Ciência e Cultura”, (2007). Pelo fim da tarde subimos de novo o Morro da Manteiga para passar a noite e no dia seguinte voltar para mais uma outra festa da família: o casamento do meu terceiro irmão mais velho, o Fridolino com a Maria Orth.
A cerimônia religiosa aconteceu também na igreja matriz de Tupandi, presidida pelo Pe. Balduino. Foi o primeiro matrimônio abençoado por ele com um significado todo especial por ter sido do próprio irmão. Esse meu irmão, o terceiro mais velho da família, iria mais tarde, em 1944, mudar- se para a então fronteira de colonização de São João do Oeste em Santa Catarina. Embora um homem franzino foi mais um desses gigantes pioneiros junto com sua esposa Maria e os filhos mais velhos, a desbravar aquela floresta virgem e preparar o terreno para a prosperidade e a beleza daquela paisagem hoje completamente humanizada, economicamente próspera e cultural, social, educacional e religiosamente de nível invejável. Aproveito a ocasião para sugerir aos netos e bisnetos desses heróis conquistadores, localizar os túmulos desses homens e mulheres nos cemitérios comunitários da região e, em silêncio, fazer uma oração e agradecer-lhes os sacrifícios inimagináveis nas circunstâncias de hoje. Com sangue, suor e privações hoje impensáveis, prepararam o chão sobre o qual floresce hoje aquele jardim no extremo oeste de Santa Catarina.
Mas, voltemos 87 anos para o passado. Depois da cerimônia religiosa na igreja o novo casal, seus pais, irmãos e convidados dirigiram-se também para o salão de baile do Sr. Afonso Konzen para o almoço festivo. Uma bandinha formado por primos e conhecidos da família munidos de Bandoneon, flauta e clarinete animaram a festa. Pela meia tarde foram todos reunidos para uma fotografia tirada com o mesmo aparelho de que falei mais acima. Depois voltamos a subir o Morro da Manteiga para no dia seguinte retomar o velho ritmo de ida e volta diária para a roça e a ida volta para a igreja aos domingos.
Da Enxada à Cátedra [ 8 ]
Passo a gora a descrever o dia a dia da minha infância até começar a frequentar a escola aos 8 anos sempre tendo em vista a precaução recomendada por Alexandro Caldera: “recordar consiste em percorrer novamente velhos caminhos e também imaginar o ocorrido pois, as coisas não são como as vemos mas como as recordamos”. As lembranças mais remotas que guardo até hoje naminha memória datam dos meus três anos, um pouco mais ou até um pouco menos. No começo não passam de retalhos meio difusos e indefinidos envoltos no crepúsculo do tempo. Relembrando novamente. Fui o último (o nenê, no jargão da época), duma família numerosa, pobre em riqueza material mas rica em valores familiares, sociais, morais e religiosos e, sobretudo, num ambiente de muito respeito e amor. Conosco morava meu irmão Raymundo que casou quando eu contava com um ano e dois meses. A diferença de idade da sua filha mais velha e minha ficou em 15 meses. Depois dela nasceram, até 1938 mais três meninas sobrinhas e um sobrinho. Apesar de ser o último, 8 anos mais novo que minha irmã mais nova, a Ana, não vivi uma infância solitária. Minhas parceiras de brinquedos, de aventuras e descobertas foram minhas duas sobrinhas mais velhas e o sobrinho 4 anos mais novo que eu. Passávamos os dias de tempo bom inventando brincadeiras.
Como já lembrei mais acima, a casa ficava a 50 metros mais ou menos de um faixa de mata virgem de cerca de 100 metros de largura. Cobria a encosta para emendar na floresta intacta que cobria o morro todo. O inhambus vinham ciscar entre as galinhas domésticas na entrada do mato. Aliás, sempre havia até uma dúzia ou mais delas, comandadas por um galo que passavam o dia no interior daquela faixa de floresta e, ao anoitecer em vez de se recolherem no galinheiro, passavam a noite empoleirados nos galhos de alguma árvore. Até hoje tenho gravado na memória o canto do galo ecoando de madrugada do interior daquela floresta silenciosa. Não raro aparecia uma choca com uma dezena de pintos, chocados em algum esconderijo no mato. Daquele ambiente misterioso e carregado de encantos e surpresas fazia parte o trilar do inhambu, o canto inconfundível do uru anunciando o por do sol, o canto do sabiá na primavera, o cacarejar das aracuãs e, no alto de um galho seco sobressaindo às copas das árvores o “martelar” do ferreiro. Na minha infância já não havia mais nem onças, nem pumas, nem antas. Com o avanço da derrubada da floresta bugios, quatis, micos e outras espécies procuraram refúgio longe das roças e mordias. Com alguma frequência apareciam jaguartiricas, gatos do mato, gambás, ouriços, esquilos, pacas, cutias, tatus, lagartos, ratos e camundongos silvestres. Como meu pai e meus irmãos praticavam caçava só esporadicamente, essas espécies sobreviveram naquele e em outros refúgios. E, na medida em que a floresta secundária avança, aproximavam-se de novo das moradias e os inhambus chegam a misturar-se com as galinhas caipiras ciscando no terreiro. Aquela faixa de florestas foi mais tarde derrubada e cultivada por duas ou três dezenas de anos. Hoje a mata secundária tomou de novo conta daquele paraíso e seus antigos donos estão voltando dos seus esconderijos.
Aqueles lugares, espaços e caminhos reservavam muitas outras surpresas que contribuíram para moldar física, sentimental e espiritualmente a personalidade adulta das crianças. Um enorme gabiju poupado por meu avô ao abrir a primeira clareira na floresta para construir a primeira casa da família, dominava soberano no canto do terreno. Na sua sombra um telheiro abrigava uma dúzia de colmeias de abelhas com os apetrechos usuais para colher o mel com destaque para uma centrífuga manual, caixilhos e caixas prontas para serem usados para capturar novos enxames. Periquitos às dezenas, com a algazarra inconfundível, costumavam procurar no começo do verão aquele guabiju emblemático para disputar conosco os cachos de frutinhas pretas e deliciosas que vergavam a ponta dos galhos. Ao abrigo dessa árvore, que hoje não existe mais, de mês em mês costumava ser carneado um porco para abastecer as necessidades da família, com carne e principalmente com banha. Na época não se conheciam azeites de tipo nenhum.
Num grande tacho de cobre as mantas de toucinho, cortadas em tiras e depois de tirado o couro em cubinhos, eram fervidas para, em seguida prensadas para separar a banha líquida do torresmo. Só por curiosidade essa prensa, com rosca e tudo fora confeccionada de cerne de cabriúva por um artesão local. Não me lembro do seu nome. Depois de prensada a banha costumava ser guardada e latas de querosene de 20 litros. O torresmo em forma de uma torta era guardado e mais tarde usado para fazer o sabão em pedra para no uso doméstico. Como naquela época não se dispunha de energia elétrica e toda a parafernália que dela depende, evidentemente não se conheciam geladeiras. A preservação da carne, quando não consumida nos dois ou três dias seguintes, podia ser garantida de duas maneiras. Pernis, linguiças e outras partes mais grossas, depois de assadas costumavam ser guardadas na banha na qual não se deterioravam. Lombinhos, costelas, linguiça, tiras dos courinhos eram defumados, pendurados em taquaras acima do fogão a lenha. A prensa foi restaurada e hoje enfeita a sala de estar do apartamento de uma sobrinha neta em São Paulo. O tacho de cobre enfeita a minha sala de estar.
Ao abrigo dessa árvore, no mesmo tacho de cobre martelado de uma peça inteiriça aprontava-se também o melado, além das “Schmiers” de batata doce, chuchu, abóbora, marmelo, aipim etc. além de oferecer um magnífico lugar para tomar um chimarrão num fim de tarde de verão. Ainda na sombra daquela árvore um cepo de seus 80 centímetros, munido de ganchos de ferro servia para dar o acabamento às tabuinhas para cobrir depósitos, chiqueiros, galinheiros e também as casas de moradia, em vez de recorrer a telhas de barro ou folhas de zinco.
A partir do final da década de 1930 tornaram-se sempre mais frequentes a passagens de aviões, os frágeis teco-tecos “máster Brasília” da base aérea de Canoas. Aquelas máquinas voadoras conquistaram para o resto da vida a minha a paixão por aviões. No internato durante a segunda guerra mundial tínhamos acesso à revista “Em Guarda” dedicada à propaganda dos feitos militares das forças armadas aliadas na Europa. O Brasil como é sabido por todos encontrava-se diretamente engajado nessa missão no norte da Itália. Com aquela publicação familiarizei-me com todos os modelos de aviões de caça e bombardeio utilizados no conflito. Num das férias em casa durante esse período construí um de 4 motores de mais ou menos um metro de envergadura, com hélices que giravam com o vento, inspirado na assim chamada “superfortaleza voadora”, ou B 29. Tudo pronto, com uma haste presa entre as asas montei a “máquina” numa taquara reforçada amarrada nos galhos do topo do “guabiju”. O aviãozinho movimentava-se como um cata-vento e as hélices diminuíam ou acelerava as rotações de acordo com a velocidade de vento. Do que acabo de relembrar insisto em chamar a atenção à riqueza de fragmentos de vivências propiciadas por uma única árvore e que irão perpassar, embora subliminarmente, os caminhos e também os descaminhos da vida futura de qualquer pessoa. E, com o avançar da idade ressurgem das brumas do tempo nos mínimos detalhes, retocados pelo passar dos anos pois, segundo Valle Inclán “as coisas não são como as vemos mas como as recordamos.
A sombra desse Guabiju emblemático emendava com a de marmeleiros, laranjeiras de umbigo, bergamoteiras e uma enorme plátano e num canto uma majestosa guaguíra. Não caberia num livro a descrição das oportunidades de diversão em companhia de patos, galinhas e no alto o canto, o chilrear, a dança dos pássaros de todos os tamanhos e cores, perturbada de quando em vez pela passagem de um gavião à espreita de uma presa.
Ampliando os lugares, espaços e caminhos da minha infância dou uma passada pelo grande curral dos porcos separado da casa e imediações por um taipa de pedra bruta construído por um tio, irmão de meu pai. Uma dúzia de soberbas araucárias alinhavam-se ao longo da taipa e outras tantas espalhadas pelo curral. Essas araucárias foram plantadas por minha mãe quando ainda menina. Acontece que o pároco, o padre jesuíta Mathias Pfluger, de origem bávara, cultivava uma verdadeira paixão pelas araucárias. Providenciou sementes e distribuiu entre as crianças da catequese para plantarem na propriedade dos pais. Minha mãe, além de plantar ao longo do muro do curral de porcos plantou outras perto do muro do potreiro. Na minha infância essas árvores contavam com cerca de 50 anos. E como o terreno era fértil desenvolveram-se extraordinariamente. Todos os anos carregavam sacos de pinhões. Nas copas desses pinheiros reuniam-se centenas de pintassilgos dando o melhor de si com suas algazarras. De fins de março até meados de maio as pinhas estavam maduras e começavam a debulhar. Lá por meados de abril o pai programava a colheita. Dois primos peritos em subir em árvores costumavam passar alguns dias em nossa casa para subir nos pinheiros e derrubar as pinhas com uma taquara. As pinhas carregadas na carroça costumavam ser amontoadas perto de casa. Uma panela de ferro com pinhão cozido fazia parte obrigatória do ritual da janta daqueles dias. Nos dias seguintes passava horas abrindo as pinhas com um martelo de madeira, separava os pinhões e os guardava em cestos de vime. Acontece que em toda aquela região as araucárias não eram comuns pois, não faziam parte da floresta virgem daquelas encostas de morros. Até pessoas de Bom Princípio vinham se abastecer de pinhões. O pai não costumava cobrar nada e a ocasião servia para um bom papo regado a chimarrão, com parentes ou conhecidos que moravam um pouco mais longe. Naquele curral de porcos além dos pinheiros havia laranjeiras, bergamoteiras, guabirobeiras, nespereiras, goiabeiras, figueiras e como intrusa na vegetação nativa, uma nogueira europeia plantada por meu avô. No verão, principalmente no Natal e Ano Novo um enorme e vistoso “Três Marias” com flores cor de rosa conferia um toque todo especial àquele curral. As flores de “Três Marias” davam o tom aos enfeites da noite de Natal. Aproveitando a ocasião permito-me aqui relembrar como costumava ser o ritual no entardecer da véspera do Natal. Nós crianças, eu e minhas sobrinhas, os irmãos maiores e o pai reunidos na sala de jantar rezávamos o terço, enquanto o “Menino Jesus” (a mãe, a cunhada e minhas irmãs maiores) arrumavam na grande mesa da sala as bolachas de natal coloridas e os presentes das crianças. Um detalhe importante não pode ser esquecido. Ao lado da escada que dava acesso à sala da casa colocava-se um feixe de pasto para a “mulinha” do Menino Jesus, enquanto ele deixava os presentes na grande mesa da sala. Depois que o Menino Jesus partia na sua “mulinha”, a mãe abria a porta da sala e as crianças com os olhos brilhando entravam para degustar as bolachas coloridas e curtir os brinquedos à luz das velinhas do pinheirinho de Natal, junto ao presépio.
E, incluindo nos espaços, lugares e caminhos, nos quais passei os anos da minha infância, não posso deixar de lembrar o potreiro cobrindo cerca de três hectares. Todo ele cercado por uma taipa de pedra bruta como aquela que já descrevi mais acima. Em forma de quadrado, um dos lados fazia a divisa com o potreiro do vizinho. O outro lado encostava numa área de floresta virgem original de uns oito hectares. O terceiro lado encostava numa mancha de floresta em parte secundária. E por fim o quarto lado dividia a taipa com a do curral dos porcos. Nesse espaço em declive suave encontravam-se isoladas de árvores nativas com louros, cabriúvas, cerejeiras do mato, figueiras nativas, guabirobeiras, dajaúvas e um bosque de ariticum. As frutas dessas árvores amadureciam em março e abril, por isso nós as chamávamos de quaresmeiras. Nesses dois meses o programa dos domingos de tarde resumia-se em colher as saborosas frutas dessas árvores. Feita a colheita a turminha acomodava-se na grama do potreiro e procedia o sorteio para quem cabia escolher a primeira fruta. Depois em ordem também por sorteio seguiam as rodadas até terminarem os frutos. Naquele potreiro andávamos de carrinho de lomba, dávamos cambalhotas, esquiávamos lomba abaixo sobre as canoinhas formadas pelo invólucro seco dos cachos dos coqueiros, brincávamos de esconde-esconde, degustávamos as guabirobas e cerejas do mato. Cavalos, vacas, bezerros e bois nos faziam companhia. Não suspeitávamos que num futuro nem tão longínquo, crianças da nossa idade fossem separadas do convívio gostoso da natureza sem poluição, com a parafernália eletrônica substituindo as cambalhotas ou as descidas num carrinho de lomba pela grama na ladeira do potreiro, com os animais domésticos pastando por perto. Um casal de periquitos criava religiosamente todos os anos a sua ninhada no oco de uma velha cerejeira do mato num canto do potreiro e ao longo das taipas as araucárias plantadas por minha mãe exibiam as pinhas amadurecendo. Lembro-me que debulhei uma delas contendo 120 pinhões. Bandos de papagaios frequentavam os pinheiros no fim do outono quando se dava o auge do amadurecimento e as pinhas debulhavam naturalmente. Na primavera os “rabos de palha” escolhiam os topos para armar seus ninhos coletivos.
Acontece que o quotidiano, além das brincadeiras e diversões que acabo de descrever, incluía pequenas tarefas como varrer os arredores da casa, recolher os ovos no galinheiro, cuidar para não faltar lenha na cozinha, descascar batatas, limpar a estrebaria, o chiqueiro e o galinheiro, cuidar para não faltar água para os porcos em fase de engorda. Lá pelos seis ou sete anos munido de uma enxada mais leve fazia companhia aos pais e irmãos maiores na capina do milho em dias mais amenos. Meu irmão Raimundo mandou forjar um machado mais leve com o qual rachei alguma lenha para abastecer a cozinha, inclusive derrubei árvores menores de alguma área de mato para aumentar a roça. Uma vez por mês me cabia a tarefa de montado no cavalo levar um saco de milho até o moinho cerca de cinco quilômetros e trazer a farina para casa. Na véspera das grandes festas levantava de manhã cedo, montava no cavalo com um saco de trigo para levar par o moinho do Zimmer na Linha Francesa Baixa, cerca de 10 quilômetros de onde morávamos. Esperava a moagem para voltar para casa pelo fim da tarde. E tudo isso aos sete anos, antes de começar a frequentar a escola. O que acabo de lembrar, causa sem dúvida, arrepios àqueles que nasceram há menos de 40 anos atrás. Para os parâmetros de hoje falaríamos em exploração infantil, em escravidão de crianças e os pais seriam responsabilizados pelos conselhos tutelares, correndo o risco de prisão ou perder o pátrio poder sobre os filhos. Acreditem ou não, lembro-me com saudades daqueles anos da minha infância. E como era gostoso aquele banho numa grande bacia no fim da tarde, depois uma sopa reforçada seguida de uma reunião da família em volta do fogão a lenha, ou no verão ao luar na frente da casa e, por fim, afundar no colchão de palha de milho e puxar o cobertor de penas de pato e sonhar com os anjos.
E, para concluir essa reflexão afirmo com toda a convicção que, se depois de 60 anos dedicados a duas universidades a Federal do Rio Grande do Sul e a Unisinos dos jesuítas em São Leopoldo e agora de ambas prof. titular emérito; depois de coordenar um PPGH da Unisinos por 8 anos; depois de me dedicar por 30 anos à imigração alemã no Brasil e publicado a maioria das minhas obras com esse tema como pano de fundo, volto ao passado de 94 anos e percebo como foram sólidas e definitivas essas raízes. E concordando com Heidegger concluo: “Pois, aquilo que eu e tu somos, a maneira como somos humanos na terra, ressume-se no construir e morar. Ser humano significa morar como mortal na terra”. (in Zaborowski, 1974, p. 223).
Da Enxada à Cátedra [ 7 ]
É óbvio que não me lembro de nada dos meus dois primeiros anos de vida. O que descrevo deduzo-o como o recordo dos costumes e práticas usuais naquela época que se perde nas brumas do tempo. Aconselham, por isso mesmo, as devidas precauções, senão restrições pois, “as coisas não são como as vemos mas como as recordamos”. (Valle Inclán, in Caldera, 2004. p.14). As linhas mestras, porém, definem o panorama em que acontecia, não somente o diário no trabalho da lavoura, como também e, sobretudo, a manifestação, a explosão do humano do homem, naqueles homens e mulheres, moços, moças, adolescentes e crianças, descalços, chapéu de palha na cabeça, roupas com três ou quatro camadas de remendos, ao ponto de não se reconhecer o tecido original, não raro cantando e assobiando, manejando o arado, a enxada, o gadanho, o ancinho, a foice e demais instrumentos de trabalho, cumprindo sem reclamação a missão que lhes fora confiada, humilde sim, mas de um significado sem adjetivos. Passadas as primeiras semanas as mães costumavam retomar a rotina diária também na roça. Sem onde deixar os filhos pequenos a solução consistia em levá-los consigo para a roça. Um grande balaio de vime devidamente adaptado e acomodado na sombra de uma árvore ou na beira do mato, servia de berço vigiado por um cachorro e o problema estava resolvido. A mãe capinando por perto interrompia o trabalho e amamentava seu bebê nos intervalos previstos, acomodada na raiz de uma árvore ou simplesmente sentada no chão em cima de uma braçada de capim ou palha. Evidentemente uma cena dessas de há muito desapareceu do cenário rural. Penso, entretanto, que merece uma breve reflexão. Numa época em que a mortalidade infantil era alta comparada aos índices de hoje pois, ainda não existiam vacinas contra a paralisia infantil, o sarampo, etc.; em que o recurso aos hospitais e médicos ficava horas e dias de distância; em que creches e jardins de infância somente em centros urbanos maiores; em que, portanto, a sobrevivência dos recém nascidos dependia em grande parte da bagagem e do potencial de sobrevivência com que vinham ao mundo, os evolucionistas falariam em aptidões maiores ou menores para sobreviverem, uma criança, superados os riscos da primeira infância, desenvolvia-se num adolescente e adulto apto para superar os tropeços da saúde normais, como gripes e outros, sem maiores riscos. Partindo do pressuposto de que o ser humano é “Adam” - “nascido da terra”, em outras palavras ontologicamente inserido na natureza, é legítimo concluir que quanto mais próximo do seu hábitat, quanto mais intimamente acolhido nessa sua “casa” prospera a sua vida, tanto maior será a ressonância sobre sua existência biológica como também sobre a relação com suas potencialidades sentimentais, emocionais e espirituais. Baixando do abstrato ao concreto. Mesmo que não disponhamos nem de método, nem de equipamentos, nem de modelos matemáticos para identificar e mensurar a repercussão biológica, psicológica e espiritual desse crescer em contato com a natureza, é possível intui-lo, melhor talvez percebê-lo, no comportamento de pessoas adultas em relação ao seu entorno natural. São emblemáticos os testemunhos como o do Pe. Balduino Rambo recordando a sua infância exatamente vivida nos mesmos lugares, espaços e caminhos como eu com uma diferença de 25 anos pois, ele nasceu em 1905 e eu em 1930. “Fui criança um dia, como todas as crianças, só mais silente e reflexiva do que a maioria delas. Imagens, flores e florestas virgens sempre foram meus brinquedos prediletos”. (Tavares, E. – Dalto, Renato, 2007, p. 109). Desafio qualquer especialista em educação infantil a me provar que numa creche climatizada, oferecendo toda parafernália que a pós moderna tecnologia oferece, teria sido mais saudável para meus pulmões, que já passam dos 94 anos, sem darem mostras de falência. Credito-o, em grande parte, àquela brisa perfeitamente dosada de oxigênio, hidrogênio, nitrogênio e carbono que fluía de dentro da floresta, das plantações de milho, feijão, mandioca, amendoim, cana de açúcar, sem resquício de contaminação, que tive o privilégio de respirar no meu berço improvisado numa balaio de vime à beira da mata virgem, a cachorra fiel vigiando e minha mãe sempre atenta, capinando por perto. A essa relação, por assim dizer primária, física, telúrica, com a natureza, acresce, num outro nível de contato, diria subliminar, imprimindo marcas indeléveis e definitivas na formação da personalidade futura. Não há como dimensionar e/ou quantificar esses elementos e as marcas por eles deixados para o resto da vida nas pessoas que vivenciaram esse mundo desde sua mais remota infância. Não é minha intenção especular sobre essa realidade orientado por hipóteses e teorias formuladas sobre a importância dessas primeiras vivências na formatação do perfil da identidade juvenil e adulta das pessoas. Limito-me a intuir ou imaginar as marcas deixadas pela sinfonia da natureza no germinar e deitar as raízes na sua forma mais próxima e mais íntima com a “sua mãe e pátria”. E, para não estagnar no nível teórico e abstrato chamo a atenção aos “instrumentos” que faziam parte da “orquestra” que executava a sinfonia que lembrei acima. O palco, o panorama natural também já descrevi. Mas, quem realmente decidia sobre a importância existencial e perene para a vida futura, foram os artistas com seus instrumentos que povoavam aqueles cenários. Os passarinhos e pássaros ocupavam naturalmente um lugar de destaque. Entre eles o tico-tico costumava andar sempre por perto. Saltitando pelo chão ou voando de um arbusto para outro, de um pé de mandioca para outro, marcando o seu lugar com o pipilar característico, catava incestos e bichinhos, o machinho ostentando orgulhosamente seu topete de luxo e sua companheira de cabecinha lisa parecendo uma joia recém saída da oficina de um artista plástico. Na primavera armavam os ninhos caprichosamente tecidos, escondidos em meio a arbustos fechados ou, então, no chão sob densas touceiras. Esses ninhos com os ovos e/ou filhotes costumavam ser alvo e vítima fácil de predadores como gatos selvagens e domésticos. A corruíra fazia parte obrigatória da companhia dos agricultores com a localização dos seus ninhos em ocos de árvore ou sob as pedras de cobertura das taipas. Nas explorações infantis dos segredos e surpresas da natureza fazia parte obrigatória a localização dos ninhos desses passarinhos minúsculos escondidos, em ocos de árvores, sob as coberturas dos galinheiros, chiqueiros e paióis protegidos pelas pedras de cobertura de alguma taipa. Percebendo o ninho ameaçado por algum predador ou mesmo a aproximação do homem, emitiam um chilreado inconfundível. No sítio que moro hoje um casal de tico-ticos tece religiosamente todos os anos seu ninho num tufo de orquídeas poucos metros da entrada da casa e as corruíras criam suas ninhadas em caixinhas de madeira acomodadas sob as abas do telhado. Observando seus rituais e, principalmente, escutando ao entardecer suas músicas, dou automaticamente um salto para o passado de 90 anos para trás o paraíso passado mas não esquecido da minha infância.
A simplicidade da vida da roça, lá no alto do Morro da Manteiga, emerge das brumas do tempo, redesenhada pela memória do momento em que faço esta viagem no tempo, e dou-me conta do quanto fui feliz junto aos meus, o quanto foi bom percorrer aqueles caminhos e explorar aqueles lugares e espaços, descalço, chapéu de palha na cabeça, as roupas simples de tecido barato, costuradas pela mãe nos dias de chuva. Atrás de cada bloco de pedra esperava uma surpresa. Enormes caranguejeiras vigiavam a entrada de seus esconderijos entre as raízes em decomposição de tocos de árvore ou troncos ocos espalhados por áreas recém desmatadas. Nas laranjeiras e bergamoteiras cantavam os sabiás na primavera, centenas de pintassilgos reunidos nas copas das majestosas araucárias alinhadas ao longo dos muros de potreiro e do curral dos porcos, davam o melhor de si para enriquecer a sonoridade da sinfonia das criaturas em homenagem ao Criador. E, em meio a tudo isso, bandos de dezenas de periquitos enchendo o ar com seus sons estridentes migravam de uma árvore com frutinhas silvestres para a outra, enquanto o som rouco de algum tucano enriquecia o conjunto somado ao assobio estridente do inhambu partindo da penumbra da floresta, o cacarejar dos grupos de aracuãs intercomunicando-se de manhã, ao entardecer ou durante o dia sinalizando para a eminência de chuva. Acomodado num galho seco de alguma árvore no fundo da mata, o ferreiro fazia ecoar suas marteladas audíveis a centenas de metros de distância. Um dos sons da natureza que mais fundo calou na minha memória foi o canto do Uru, partindo também do interior da floresta ao final do dia. Marcava a hora em que meu pai se apoiava na enxada e comandava: o Uru está cantando, vamos para casa o sol está se pondo. Não posso deixar de lembrar o espetáculo sonoro do ronco dos bugios acomodados na alto de uma grandiosa figueira do mato fazendo, por assim dizer, às vezes dos bateristas do conjunto enquanto os micos pretos saltavam de árvore em árvore fazendo-se notar ao longe pelos seus assobios característicos, o que aliás lhes valeu o nome de “macaquinho assobiador” entre os moradores da região. Levaria longe demais, além de correr o risco de ser cansativo, enumerar muitos outros sons, pios, cricris e outros mais, como do grilo, da cigarra, etc., etc. que completavam e conferiam corpo e alma à bela, magnífica, grandiosa e majestosa sinfonia da natureza, cantada em verso por Homero como “o imenso mar do belo” e no entender de Sto. Agostinho, encarnava a “beleza sempre antiga e sempre nova”. E o Pe. Balduino, meu irmão 25 anos mais velho que eu, e tendo passado a infância nos mesmos lugares, espaços e caminhos, deixou anotado em seu diário uma observação que confirma a reflexão acima já referida: “Fui criança um dia, como todas as crianças, só mais silenciosa e reflexiva como a maioria delas. Imagens, flores e florestas virgens sempre foram meus brinquedos prediletos”. (Tavares E. – Dalto, 2007, p. 109).