Da Enxada à Cátedra [ 8 ]

Passo a gora a descrever o dia a dia da minha infância até começar a frequentar a escola aos 8 anos sempre tendo em vista a precaução recomendada por Alexandro Caldera: “recordar consiste em percorrer novamente velhos caminhos e também imaginar o ocorrido pois, as coisas não são como as vemos mas como as recordamos”. As lembranças mais remotas que guardo até hoje naminha memória datam dos meus três anos, um pouco mais ou até um pouco menos. No começo não passam de retalhos meio difusos e indefinidos envoltos no crepúsculo do tempo. Relembrando novamente. Fui o último (o nenê, no jargão da época), duma família numerosa, pobre em riqueza material mas rica em valores familiares, sociais, morais e religiosos e, sobretudo, num ambiente de muito respeito e amor. Conosco morava meu irmão Raymundo que casou quando eu contava com um ano e dois meses. A diferença de idade da sua filha mais velha e minha ficou em 15 meses. Depois dela nasceram, até 1938 mais três meninas sobrinhas e um sobrinho. Apesar de ser o último, 8 anos mais novo que minha irmã mais nova, a Ana, não vivi uma infância solitária. Minhas parceiras de brinquedos, de aventuras e descobertas foram minhas duas sobrinhas mais velhas e o sobrinho 4 anos mais novo que eu. Passávamos os dias de tempo bom inventando brincadeiras.

Como já lembrei mais acima, a casa ficava a 50 metros mais ou menos de um faixa de mata virgem de cerca de 100 metros de largura. Cobria a encosta para emendar na floresta intacta que cobria o morro todo. O inhambus vinham ciscar entre as galinhas domésticas na entrada do mato. Aliás, sempre havia até uma dúzia ou mais delas, comandadas por um galo que passavam o dia no interior daquela faixa de floresta e, ao anoitecer em vez de se recolherem no galinheiro, passavam a noite empoleirados nos galhos de alguma árvore. Até hoje tenho gravado na memória o canto do galo ecoando de madrugada do interior daquela floresta silenciosa. Não raro aparecia uma choca com uma dezena de pintos, chocados em algum esconderijo no mato. Daquele ambiente misterioso e carregado de encantos e surpresas fazia parte o trilar do inhambu, o canto inconfundível do uru anunciando o por do sol, o canto do sabiá na primavera, o cacarejar das aracuãs e, no alto de um galho seco sobressaindo às copas das árvores o “martelar” do ferreiro. Na minha infância já não havia mais nem onças, nem pumas, nem antas. Com o avanço da derrubada da floresta bugios, quatis, micos e outras espécies procuraram refúgio longe das roças e mordias. Com alguma frequência apareciam jaguartiricas, gatos do mato, gambás, ouriços, esquilos, pacas, cutias, tatus, lagartos, ratos e camundongos silvestres. Como meu pai e meus irmãos praticavam caçava só esporadicamente, essas espécies sobreviveram naquele e em outros refúgios. E, na medida em que a floresta secundária avança, aproximavam-se de novo das moradias e os inhambus chegam a misturar-se com as galinhas caipiras ciscando no terreiro. Aquela faixa de florestas foi mais tarde derrubada e cultivada por duas ou três dezenas de anos. Hoje a mata secundária tomou de novo conta daquele paraíso e seus antigos donos estão voltando dos seus esconderijos.

Aqueles lugares, espaços e caminhos reservavam muitas outras surpresas que contribuíram para moldar física, sentimental e espiritualmente a personalidade adulta das crianças. Um enorme gabiju poupado por meu avô ao abrir a primeira clareira na floresta para construir a primeira casa da família, dominava soberano no canto do terreno. Na sua sombra um telheiro abrigava uma dúzia de colmeias de abelhas com os apetrechos usuais para colher o mel com destaque para uma centrífuga manual, caixilhos e caixas prontas para serem usados para capturar novos enxames. Periquitos às dezenas, com a algazarra inconfundível, costumavam procurar no começo do verão aquele guabiju emblemático para disputar conosco os cachos de frutinhas pretas e deliciosas que vergavam a ponta dos galhos. Ao abrigo dessa árvore, que hoje não existe mais, de mês em mês costumava ser carneado um porco para abastecer as necessidades da família, com carne e principalmente com banha. Na época não se conheciam azeites de tipo nenhum.

Num grande tacho de cobre as mantas de toucinho, cortadas em tiras e depois de tirado o couro em cubinhos, eram fervidas para, em seguida prensadas para separar a banha líquida do torresmo. Só por curiosidade essa prensa, com rosca e tudo fora confeccionada de cerne de cabriúva por um artesão local. Não me lembro do seu nome. Depois de prensada a banha costumava ser guardada e latas de querosene de 20 litros. O torresmo em forma de uma torta era guardado e mais tarde usado para fazer o sabão em pedra para no uso doméstico. Como naquela época não se dispunha de energia elétrica e toda a parafernália que dela depende, evidentemente não se conheciam geladeiras. A preservação da carne, quando não consumida nos dois ou três dias seguintes, podia ser garantida de duas maneiras. Pernis, linguiças e outras partes mais grossas, depois de assadas costumavam ser guardadas na banha na qual não se deterioravam. Lombinhos, costelas, linguiça, tiras dos courinhos eram defumados, pendurados em taquaras acima do fogão a lenha. A prensa foi restaurada e hoje enfeita a sala de estar do apartamento de uma sobrinha neta em São Paulo. O tacho de cobre enfeita a minha sala de estar.

Ao abrigo dessa árvore, no mesmo tacho de cobre martelado de uma peça inteiriça aprontava-se também o melado, além das “Schmiers” de batata doce, chuchu, abóbora, marmelo, aipim etc. além de oferecer um magnífico lugar para tomar um chimarrão num fim de tarde de verão. Ainda na sombra daquela árvore um cepo de seus 80 centímetros, munido de ganchos de ferro servia para dar o acabamento às tabuinhas para cobrir depósitos, chiqueiros, galinheiros e também as casas de moradia, em vez de recorrer a telhas de barro ou folhas de zinco.

A partir do final da década de 1930 tornaram-se sempre mais frequentes a passagens de aviões, os frágeis teco-tecos “máster Brasília” da base aérea de Canoas. Aquelas máquinas voadoras conquistaram para o resto da vida a minha a paixão por aviões. No internato durante a segunda guerra mundial tínhamos acesso à revista “Em Guarda” dedicada à propaganda dos feitos militares das forças armadas aliadas na Europa. O Brasil como é sabido por todos encontrava-se diretamente engajado nessa missão no norte da Itália. Com aquela publicação familiarizei-me com todos os modelos de aviões de caça e bombardeio utilizados no conflito. Num das férias em casa durante esse período construí um de 4 motores de mais ou menos um metro de envergadura, com hélices que giravam com o vento, inspirado na assim chamada “superfortaleza voadora”, ou B 29. Tudo pronto, com uma haste presa entre as asas montei a “máquina” numa taquara reforçada amarrada nos galhos do topo do “guabiju”. O aviãozinho movimentava-se como um cata-vento e as hélices diminuíam ou acelerava as rotações de acordo com a velocidade de vento. Do que acabo de relembrar insisto em chamar a atenção à riqueza de fragmentos de vivências propiciadas por uma única árvore e que irão perpassar, embora subliminarmente, os caminhos e também os descaminhos da vida futura de qualquer pessoa. E, com o avançar da idade ressurgem das brumas do tempo nos mínimos detalhes, retocados pelo passar dos anos pois, segundo Valle Inclán “as coisas não são como as vemos mas como as recordamos.

A sombra desse Guabiju emblemático emendava com a de marmeleiros, laranjeiras de umbigo, bergamoteiras e uma enorme plátano e num canto uma majestosa guaguíra. Não caberia num livro a descrição das oportunidades de diversão em companhia de patos, galinhas e no alto o canto, o chilrear, a dança dos pássaros de todos os tamanhos e cores, perturbada de quando em vez pela passagem de um gavião à espreita de uma presa.

Ampliando os lugares, espaços e caminhos da minha infância dou uma passada pelo grande curral dos porcos separado da casa e imediações por um taipa de pedra bruta construído por um tio, irmão de meu pai. Uma dúzia de soberbas araucárias alinhavam-se ao longo da taipa e outras tantas espalhadas pelo curral. Essas araucárias foram plantadas por minha mãe quando ainda menina. Acontece que o pároco, o padre jesuíta Mathias Pfluger, de origem bávara, cultivava uma verdadeira paixão pelas araucárias. Providenciou sementes e distribuiu entre as crianças da catequese para plantarem na propriedade dos pais. Minha mãe, além de plantar ao longo do muro do curral de porcos plantou outras perto do muro do potreiro. Na minha infância essas árvores contavam com cerca de 50 anos. E como o terreno era fértil desenvolveram-se extraordinariamente. Todos os anos carregavam sacos de pinhões. Nas copas desses pinheiros reuniam-se centenas de pintassilgos dando o melhor de si com suas algazarras. De fins de março até meados de maio as pinhas estavam maduras e começavam a debulhar. Lá por meados de abril o pai programava a colheita. Dois primos peritos em subir em árvores costumavam passar alguns dias em nossa casa para subir nos pinheiros e derrubar as pinhas com uma taquara. As pinhas carregadas na carroça costumavam ser amontoadas perto de casa. Uma panela de ferro com pinhão cozido fazia parte obrigatória do ritual da janta daqueles dias. Nos dias seguintes passava horas abrindo as pinhas com um martelo de madeira, separava os pinhões e os guardava em cestos de vime. Acontece que em toda aquela região as araucárias não eram comuns pois, não faziam parte da floresta virgem daquelas encostas de morros. Até pessoas de Bom Princípio vinham se abastecer de pinhões. O pai não costumava cobrar nada e a ocasião servia para um bom papo regado a chimarrão, com parentes ou conhecidos que moravam um pouco mais longe. Naquele curral de porcos além dos pinheiros havia laranjeiras, bergamoteiras, guabirobeiras, nespereiras, goiabeiras, figueiras e como intrusa na vegetação nativa, uma nogueira europeia plantada por meu avô. No verão, principalmente no Natal e Ano Novo um enorme e vistoso “Três Marias” com flores cor de rosa conferia um toque todo especial quele curral. As flores de “Três Marias” davam o tom aos enfeites da noite de Natal. Aproveitando a ocasião permito-me aqui relembrar como costumava ser o ritual no entardecer da véspera do Natal. Nós crianças, eu e minhas sobrinhas, os irmãos maiores e o pai reunidos na sala de jantar rezávamos o terço, enquanto o “Menino Jesus” (a mãe, a cunhada e minhas irmãs maiores) arrumavam na grande mesa da sala as bolachas de natal coloridas e os presentes das crianças. Um detalhe importante não pode ser esquecido. Ao lado da escada que dava acesso à sala da casa colocava-se um feixe de pasto para a “mulinha” do Menino Jesus, enquanto ele deixava os presentes na grande mesa da sala. Depois que o Menino Jesus partia na sua “mulinha”, a mãe abria a porta da sala e as crianças com os olhos brilhando entravam para degustar as bolachas coloridas e curtir os brinquedos à luz das velinhas do pinheirinho de Natal, junto ao presépio.

E, incluindo nos espaços, lugares e caminhos, nos quais passei os anos da minha infância, não posso deixar de lembrar o potreiro cobrindo cerca de três hectares. Todo ele cercado por uma taipa de pedra bruta como aquela que já descrevi mais acima. Em forma de quadrado, um dos lados fazia a divisa com o potreiro do vizinho. O outro lado encostava numa área de floresta virgem original de uns oito hectares. O terceiro lado encostava numa mancha de floresta em parte secundária. E por fim o quarto lado dividia a taipa com a do curral dos porcos. Nesse espaço em declive suave encontravam-se isoladas de árvores nativas com louros, cabriúvas, cerejeiras do mato, figueiras nativas, guabirobeiras, dajaúvas e um bosque de ariticum. As frutas dessas árvores amadureciam em março e abril, por isso nós as chamávamos de quaresmeiras. Nesses dois meses o programa dos domingos de tarde resumia-se em colher as saborosas frutas dessas árvores. Feita a colheita a turminha acomodava-se na grama do potreiro e procedia o sorteio para quem cabia escolher a primeira fruta. Depois em ordem também por sorteio seguiam as rodadas até terminarem os frutos. Naquele potreiro andávamos de carrinho de lomba, dávamos cambalhotas, esquiávamos lomba abaixo sobre as canoinhas formadas pelo invólucro seco dos cachos dos coqueiros, brincávamos de esconde-esconde, degustávamos as guabirobas e cerejas do mato. Cavalos, vacas, bezerros e bois nos faziam companhia. Não suspeitávamos que num futuro nem tão longínquo, crianças da nossa idade fossem separadas do convívio gostoso da natureza sem poluição, com a parafernália eletrônica substituindo as cambalhotas ou as descidas num carrinho de lomba pela grama na ladeira do potreiro, com os animais domésticos pastando por perto. Um casal de periquitos criava religiosamente todos os anos a sua ninhada no oco de uma velha cerejeira do mato num canto do potreiro e ao longo das taipas as araucárias plantadas por minha mãe exibiam as pinhas amadurecendo. Lembro-me que debulhei uma delas contendo 120 pinhões. Bandos de papagaios frequentavam os pinheiros no fim do outono quando se dava o auge do amadurecimento e as pinhas debulhavam naturalmente. Na primavera os “rabos de palha” escolhiam os topos para armar seus ninhos coletivos.

Acontece que o quotidiano, além das brincadeiras e diversões que acabo de descrever, incluía pequenas tarefas como varrer os arredores da casa, recolher os ovos no galinheiro, cuidar para não faltar lenha na cozinha, descascar batatas, limpar a estrebaria, o chiqueiro e o galinheiro, cuidar para não faltar água para os porcos em fase de engorda. Lá pelos seis ou sete anos munido de uma enxada mais leve fazia companhia aos pais e irmãos maiores na capina do milho em dias mais amenos. Meu irmão Raimundo mandou forjar um machado mais leve com o qual rachei alguma lenha para abastecer a cozinha, inclusive derrubei árvores menores de alguma área de mato para aumentar a roça. Uma vez por mês me cabia a tarefa de montado no cavalo levar um saco de milho até o moinho cerca de cinco quilômetros e trazer a farina para casa. Na véspera das grandes festas levantava de manhã cedo, montava no cavalo com um saco de trigo para levar par o moinho do Zimmer na Linha Francesa Baixa, cerca de 10 quilômetros de onde morávamos. Esperava a moagem para voltar para casa pelo fim da tarde. E tudo isso aos sete anos, antes de começar a frequentar a escola. O que acabo de lembrar, causa sem dúvida, arrepios àqueles que nasceram há menos de 40 anos atrás. Para os parâmetros de hoje falaríamos em exploração infantil, em escravidão de crianças e os pais seriam responsabilizados pelos conselhos tutelares, correndo o risco de prisão ou perder o pátrio poder sobre os filhos. Acreditem ou não, lembro-me com saudades daqueles anos da minha infância. E como era gostoso aquele banho numa grande bacia no fim da tarde, depois uma sopa reforçada seguida de uma reunião da família em volta do fogão a lenha, ou no verão ao luar na frente da casa e, por fim, afundar no colchão de palha de milho e puxar o cobertor de penas de pato e sonhar com os anjos.

E, para concluir essa reflexão afirmo com toda a convicção que, se depois de 60 anos dedicados a duas universidades a Federal do Rio Grande do Sul e a Unisinos dos jesuítas em São Leopoldo e agora de ambas prof. titular emérito; depois de coordenar um PPGH da Unisinos por 8 anos; depois de me dedicar por 30 anos à imigração alemã no Brasil e publicado a maioria das minhas obras com esse tema como pano de fundo, volto ao passado de 94 anos e percebo como foram sólidas e definitivas essas raízes. E concordando com Heidegger concluo: “Pois, aquilo que eu e tu somos, a maneira como somos humanos na terra, ressume-se no construir e morar. Ser humano significa morar como mortal na terra”. (in Zaborowski, 1974, p. 223).

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