Festa em família.
Em outubro do ano em que eu contava com 6 anos de idade meu irmão mais velho, o Balduino foi ordenado sacerdote jesuíta na catedral de Porto Alegre. Por tratar-se de um acontecimento marcante para a família, meus pais resolveram estar presentes na solenidade e decidiram levar- me com eles. Para as pessoas de hoje que vencem esse trajeto de cerca de 100 quilômetros em duas horas ou menos, por estradas asfaltadas, fica difícil imaginar as peripécias e o tempo de dois ou três dias que se levavam para percorrer a mesma distância em 1936. A “aventura” começou com uma caminhada de madrugada de mais ou menos 8 quilômetros, descendo o Morro da Manteiga, passando pela Linha Mauá, na época conhecida como “Blumental” ou também “Stutental, ou Strutetal” no dialeto, para terminar em Bom Princípio e embarcar no ônibus para São Leopoldo. Foi preciso levantar às 3 horas da madrugada fazer a caminhada em grande parte ainda no escuro. A descida do morro passava por uma trilha de mato. No dia anterior a mãe aprontou tochas com varas de bambu e buchas de panos velhos na ponta, embebidos com banha para iluminar a descida pelo mato coberta de pedras soltas e sulcos cavados pela água da chuva. Pelas 7 da manhã chegamos em Bom Princípio onde nos esperava o ônibus. Comparado aos de hoje esse veículo ninguém imaginaria que fosse um meio de transporte popular como são hoje os ônibus. Começava por aí que os bancos atravessavam de lado a lado e o embarque se dava entrando pelos lados. A bagagem ficava acomodada nos fundos ou na frente ao lado do motorista. Uma estrutura de madeira coberta com lona e uma lona enrolada em ambos os lados, podia ser descida para proteger da chuva e do vento frio. Enfim uma grande carroça, melhorada e sobre pneus, puxada por um motor em vez de bois, cavalos ou mulas e um motorista em lugar do cavaleiro manejando as rédeas, cuidando para manter o veículo na estrada de chão batido, que em épocas de chuva, virava uma sequência de atoleiros.
Embarcamos com os nossos poucos pertences. A minha primeira surpresa veio depois de um ou dois quilômetros de viagem. Do lado esquerdo da estrada acompanhava-nos, meio encoberto pela vegetação de arbustos o rio Caí. Para mim que conhecia apenas fontes e pequenos córregos na vizinhança da nossa casa e na roça, a visão de tanta água gravou na minha memória uma imagem que até hoje ressurge automaticamente quando se menciona Bom Princípio. Um pouco mais adiante um desvio da estrada descia até a altura da água do rio e a barca encostada com a rampa de acesso apoiada na margem. O local era conhecido com do “Passo do Selbach”, único ponto de travessia para veículos pesados entre São Sebastião do Caí e Bom Princípio. Em ponte ou pontes nem pensar na época. Nos períodos de pouca chuva e o rio no nível mais baixo, carroças, cavalos, cavaleiros, animais domésticos e até pessoas a pé, atravessavam o rio sobre os cascalhos expostos um pouco a montante do remanso onde passava a barca. Chamo a atenção que a barca presa a um cabo de aço fixado nas duas margens do rio, era levada de uma margem à outra, no braço, como se dizia, pelos barqueiros. No outro lado, perto do rio ao lado de uma casa de comércio o ônibus foi abastecido numa bomba de gasolina acionada manualmente. Depois seguimos viagem para São Leopoldo. A viagem evidentemente levou horas. Não guardo na memória detalhes dela. Mas, recordo-me perfeitamente de quando nos aproximamos de São Leopoldo. Lá adiante a igreja matriz e à direita os prédios do Seminário, mais tarde da Unisinos. Não esquecerei nunca a travessia do Sinos pela ponte 25 de julho. Pranchões de madeira soltos permitam a travessia em vez do concreto e asfalto de hoje. O barulho causado pela passagem dos rodados do ônibus ainda hoje soam em minha memória. Na minha percepção parecia que iríamos terminar caindo no rio. Depois de entrar em São Leopoldo desembarcamos do ônibus e percorremos a pé as poucas quadras até o Colégio São José onde nos aguardava uma irmã do meu pai, a irmã Pancrácia. Ela nos recebeu e nos mostrou as dependências do Colégio: principalmenteacapelaeahortasobsuaresponsabilidade. PernoitamosnoColégioSãoJosée no dia seguinte embarcamos de novo no ônibus que nos levaria até Porto Alegre. Naquela época a primeira estrada pavimentada do Rio Grande do Sul, recém inaugurada ligava o centro de São Leopoldo com Porto Alegre. A faixinha como ficou conhecida, feita de cimento media 3 metros de largura, seguia o mesmo traçado da estrada que hoje passa pelo Cemitério Ecumênico, cruza o horto florestal e termina em Sapucaia. Naquele remoto 1936 São Leopoldo, Sapucaia, Esteio, Canoas e Niterói não passavam de núcleos urbanos de pequeno porte rodeadas de fazendas de criação de gado. Na minha memória ficaram as imagens de rebanhos de gado pastando onde hoje funciona a refinaria Alberto Pasqualini. Do lado esquerdo da estrada os campos avançavam em direção à Gravatai e do outro terminavam na margem do rio dos Sinos. Aliás o bairro Mathias Velho tem esse nome em homenagem ao dono daqueles campos, o estancieiro Mathias Velho. A sede da propriedade ficava onde hoje é a sede da refinaria. Aquela viagem entre São Leopoldo e Porto Alegre foi uma experiência única. Pela primeira vez ultrapassava os topos dos morros que limitavam o mundo da minha infância. Foi a primeira incursão para dentro do grande mundo e a sensação única da linha do horizonte distanciando-se na medida em que o ônibus avançava sobre a faixinha de cimento em direção a Porto Alegre. Os raros automóveis, os famosos Ford de Bigode, que cruzavam por nós serviam de motivo para alvoroço. Chegados em Porto Alegre desembarcamos na frente do Hotel São Luiz no final da Avenida Farrapos onde passamos a primeira noite. Não me lembro de muitos detalhes pois, as novidades eram tantas e tão estranhas para um menino da colônia que até então circulara num mundo completamente diferente, entre animais domésticos, na sombra de grandes árvores e na entrada de uma faixa de mata virgem. De uma sacada do hotel fiquei observando por um bom tempo o movimento no cruzamento das ruas na minha frente. Não havia sinaleira e a disciplina do trânsito ficava a carga de um guarda postado em cima de uma armação de madeira colocada no meio do cruzamento. Os braços levantados e um apito na boca comandava o fluxo dos poucos veículos que passavam por aquele ponto. Torcia para que nenhum deles trombasse naquele caixote e derrubasse o guarda de trânsito e o ferisse.
No dia seguinte subimos até o Colégio Bom Conselho onde nos esperava a irmã Pelágia minha tia, também irmã do meu pai e minha irmã Tecla, mais tarde como religiosa, irmã Antônia, interna naquele colégio. Situado no final da rua Ramiro Barcelos no alto do bairro Moinhos de Vento, permitia uma vista em direção ao Guaíba sobre praticamente toda a Porto Alegre de então. Aquele mar de casas com telhados de telhas vermelhas, nenhum prédio de mais de dois, no máximo três andares, barrava a vista do Guaíba e do outro lado, já no horizonte o aglomerado de casas de Pedras Brancas, hoje cidade de Guaíba. Na ponta mais avançada da cidade o gasômetro com sua chaminé e do lado o “cadeião”, antigo presídio mais tarde demolido com a transferência dos apenados para o atual presídio no Partenon. Como no interior colonial o tamanho e o número de porcos e chiqueiros costumava ser um dos critérios para avaliar os bem ou mal sucedidos e como não tinha visto nenhum chiqueiro em Porto Alegre fiz a observação que rendeu boas risadas. “Aqui na cidade deve haver muitos pobres pois, não vi nenhum chiqueiro até agora”. Depois dessa observação minha tia levou-me para o porão do colégio e me mostrou dois ou três porcos enormes engordando com as sobras da cozinha do internato e os descartes da grande horta que as irmãs cultivavam nos fundos da instituição. Gravei também na memória o estilo e as características arquitetônicas do Hospital Moinhos de Vento, vizinho do Bom Conselho. Naquela noite hospedamo-nos naquele colégio para na manhã do dia seguinte cedo, nos deslocarmos até a catedral onde aconteceria a ordenação sacerdotal do meu irmão Balduino e seus colegas Antônio Steffen, Afonso Hansen, Canísio Orth e Ervino Schmidt. A catedral encontrava-se ainda em fase de construção. Por isso a cerimônia da ordenação presidida pelo arcebispo D. João Becker ocorreu na cripta. Não me lembro de detalhes daquele ritual todo. Só sei que o achei muito longo e cansativo. O que me impressionou naquela cripta nada tem a ver com a ordenação sacerdotal. Foram aqueles rostos enormes moldados no lado de fora da cripta que deixaram em mim uma sensação desagradável de mistério e medo.
Encerrada a cerimônia da ordenação embarcamos no ônibus para voltar até São Leopoldo. Dessa vez nos hospedamos num hotel, se não me engano, Rio Branco, no outro lado da igreja. Depois de nos termos acomodado fui para a calçada junto com minha mãe. Inexperiente naquele ambiente me pus a atravessar a rua sem dar atenção ao trânsito e por pouco não fui atropelado por um dos poucos automóveis que circulavam em São Leopoldo. Só me lembro que alguém que passava agarrou-me pelo braço e puxou-me de volta para a calçada. Na manhã seguinte aconteceu uma sessão solene preparada pelos seminaristas e professores do Seminário Central para os novos sacerdotes. Lembro-me que houve discursos e declamações de poesia, apresentações do coral do Seminário, tudo muito estranho e fora da compreensão de um menino da roça de 6 anos. Terminada a sessão solene oficial, saímos do auditório e meus pais e eu ficamos aguardando meus dois irmãos o Pe. Balduino e o Roberto, estudante de Filosofia. Nesse intervalo veio ao nosso encontro o Pe. Godofredo Kessler, prof. de Teologia e me presenteou com uma enorme barra de chocolate. Nunca tinha visto na minha vida, muito menos saboreado um chocolate. A mãe levou essa barra de chocolate para casa e guardou no roupeiro da sala. Durante dias minha mãe, a Ana, minha irmã com dificuldade de locomoção, repartimos parcimoniosamente aquela guloseima e a degustamos com autêntica devoção. O Pe. Kessler seria 25 anos mais tarde meu professor de Teologia, meu grande defensor e apoiador quando, como aluno de Teologia já lecionava Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, motivo de não poucos ciúmes dos meus colegas jesuítas. Foi o presidente da banca de 5 examinadores do meu exame “ad Gradum”, isto é, o exame de recapitulação e coroação dos 3 anos de Filosofia e 4 anos de Teologia que faziam parte obrigatória da formação dos jesuítas na época. Mais abaixo ao detalhar a minha formação acadêmica, darei mais detalhes sobre o significado do exame “ad Gradum”. Ao Pe. Godofredo Kessler, oficial veterano da Primeira Guerra Mundial, rendo aqui a minha gratidão póstuma.
Terminada a sessão solene no Seminário Central embarcamos no ônibus de volta a Bom Princípio. De lá, carregando os poucos pertences que havíamos levado para a viagem, vencemos de novo os 8 quilômetros pela Linha Mauá, subindo no final a encosta do Morro da Manteiga para voltar à minha inesquecível casa à sombra do emblemático e majestoso plátano cuja imagem se perde também nas brumas do tempo e o farfalhar do vento nas suas folhas ainda ecoa na minha memória.
A segunda etapa das comemorações aconteceu logo na semana seguinte. Meu irmão, agora Pe. Balduino, viria celebrar as suas “primícias”, isto é, a primeira missa solene na igreja matriz da terra natal, Tupandi. Esse tipo de solenidade envolvia principalmente a família, os parentes próximos, a vizinhança e, em parte, a comunidade como um todo. O acontecimento se deu no dia primeiro de novembro de 1936, festa de Todos os Santos. Começou já na tarde do dia anterior com a recepção solene do neo sacerdote. Bem ao gosto da época a comunidade se reuniu em frente ao sobrado do dentista Balduino Weber, hoje restaurado como referência arquitetônica transformado em memorial com museu e biblioteca. Um piquete de cavaleiros formado por rapazes e moços foi receber o Pe. Balduino no limite da paróquia e numa solene cavalgada, ele montado no cavalo mais vistoso que foi possível localizar na paróquia para apear na frente do solar. Os padres presentes junto com neo sacerdote entraram no sobrado onde se paramentaram. Depois, acompanhados pela comunidade dirigiram-se em solene procissão até a igreja matriz, uns duzentos metros mais adiante. Com o templo lotado foi ministrada uma bênção solene (naquela época não se celebravam missas à tarde), depois o povo voltou para as suas casas. Também eu, com meus pais e irmãos, voltamos para passar a noite na nossa casa no Morro da Manteiga, para voltar na manhã seguinte para a solenidade propriamente dita da Missa Solene e, depois o almoço festivo para os parentes e convidados, no salão de baile do Afonso Konzen.
Para a missa solene do dia seguinte a igreja paroquial foi pequena, toda ornamentada com palmeirinhas do mato e belos exemplares de palmito colhidos nas encostas do morro de Santa Rita, fixados nos arcos do portal de entrada e nas colunas interiores. Os paroquianos que de alguma forma tinham condições se fizeram presentes para homenagear o ilustre filho da comunidade do qual todos, parentes ou não, vizinhos ou não, se orgulhavam. Aos meus pais, irmãos e tios fora reservado um lugar perto do altar. Ficaria longo demais descrever todos os detalhes da missa solene cantada em latim. Vale lembrar que até o Concílio Vaticano II na primeira metade da década de 1960, o latim foi a língua obrigatória para os rituais litúrgicos oficiais da Igreja Católica em todo o mundo, também na administração dos sacramentos, sepultamentos, batismos, etc. O coral sob a batuta do escrivão José Weber, (o Juca Weber) fez ecoar pelas arcadas góticas daquela igreja o Kyrie, o Glória, o Credo o Introito, tão caros ao povo que, embora não entendesse nada da letra, captava no mais íntimo da alma o divino que permeava a melodia. Para a ocasião o recém ordenado em combinação com os pais costumava convidar um pregador de destaque para proferir o sermão festivo. O Pe. Balduino seria mais tarde muito requisitado para essas e outras solenidades. Para o dia o convidado para falar ao povo reunido na igreja foi o Pe. Godofredo Kessler, aquele que me presenteou com a barra de chocolate, amigo e professor de teologia do Balduino. Falou mais do que uma hora, evidentemente em alemão, numa linguagem feita sob medida para esse povo simples e antes de mais nada religioso, num silêncio que se podia ouvir o zumbido das moscas. O momento da consagração foi anunciado pelo estrondo de uma bateria de morteiros alinhados no potreiro do vizinho da igreja misturado ao badalar dos quatro sinos na torre. Nunca vou esquecer essa melodia singular do badalar dos sinos e como fundo os disparos dos morteiros rebatendo nos vales e encostas dos morros das proximidades. Terminada a missa o povo se dispersou e a família e parentes próximos com o homenageado encontraram-se no salão do Sr. Afonso Konzen para o almoço festivo. Pela meia tarde foi o momento de registrar o acontecimento com uma fotografia da família. Guardo comigo como relíquia preciosa o aparelho fotográfico e a foto em preto e branco da família que foi tirada na ocasião. Em vez de filme a imagem era captada numa lâmina de vidro com os devidos produtos químicos e depois revelada e copiada em preto e branco sobre papel fotográfico. Trata-se daquela foto que foi exposta inclusive no aeroporto Salgado Filho por ocasião do centenário do nascimento do Pe. Rambo em 2005 e publicado nos dois livros comemorativos na mesma ocasião: “Os Aparados da Serra – Na Trilha do Pe. Rambo” e “Pe. Balduino Rambo – A Pluralidade na Unidade – Memória, Religião, Ciência e Cultura”, (2007). Pelo fim da tarde subimos de novo o Morro da Manteiga para passar a noite e no dia seguinte voltar para mais uma outra festa da família: o casamento do meu terceiro irmão mais velho, o Fridolino com a Maria Orth.
A cerimônia religiosa aconteceu também na igreja matriz de Tupandi, presidida pelo Pe. Balduino. Foi o primeiro matrimônio abençoado por ele com um significado todo especial por ter sido do próprio irmão. Esse meu irmão, o terceiro mais velho da família, iria mais tarde, em 1944, mudar- se para a então fronteira de colonização de São João do Oeste em Santa Catarina. Embora um homem franzino foi mais um desses gigantes pioneiros junto com sua esposa Maria e os filhos mais velhos, a desbravar aquela floresta virgem e preparar o terreno para a prosperidade e a beleza daquela paisagem hoje completamente humanizada, economicamente próspera e cultural, social, educacional e religiosamente de nível invejável. Aproveito a ocasião para sugerir aos netos e bisnetos desses heróis conquistadores, localizar os túmulos desses homens e mulheres nos cemitérios comunitários da região e, em silêncio, fazer uma oração e agradecer-lhes os sacrifícios inimagináveis nas circunstâncias de hoje. Com sangue, suor e privações hoje impensáveis, prepararam o chão sobre o qual floresce hoje aquele jardim no extremo oeste de Santa Catarina.
Mas, voltemos 87 anos para o passado. Depois da cerimônia religiosa na igreja o novo casal, seus pais, irmãos e convidados dirigiram-se também para o salão de baile do Sr. Afonso Konzen para o almoço festivo. Uma bandinha formado por primos e conhecidos da família munidos de Bandoneon, flauta e clarinete animaram a festa. Pela meia tarde foram todos reunidos para uma fotografia tirada com o mesmo aparelho de que falei mais acima. Depois voltamos a subir o Morro da Manteiga para no dia seguinte retomar o velho ritmo de ida e volta diária para a roça e a ida volta para a igreja aos domingos.