Depois
dessas colocações de caráter mais teórico vem a pergunta se, consideradas as
circunstâncias concretas, a realização do sonho de paisagens humanizadas
inspiradas na combinação dos dois trinômios que formulamos acima, é exequível.
Fiquei horas empacado procurando uma resposta para esse questionamento. A
proposta feita há 50 anos pelos técnicos alemães para a valorização do vale do
rio dos Sinos prova a sua validade em dezenas de pequenos municípios
emancipados de então para cá em todos os vales dos rios que confluem para
formar o Guaíba. Embora não se tenha feito um planejamento técnico como o descrito acima a maioria
desses municípios desenvolveu-se de forma muito parecida com o modelo desenhado
tecnicamente para o vale do Sinos. Têm em comum que sua população na média não
passa dos 5.000 habitantes. As sedes urbanas contam com uma infraestrutura
administrativa enxuta e eficiente confiada a prefeitos, vereadores,
funcionários e técnicos, que têm como prioridade o progresso e o bem-estar da
população. Os desvios desse objetivo e a prática de atos de corrupção, se
ocorrem, são exceções e de proporções toleráveis. A população conta com postos
de saúde bem equipados a cargo de profissionais treinados e, em casos de
cirurgias e situações de maior gravidade, as prefeituras dispõem de ambulâncias
para levar os pacientes aos hospitais
regionais e a Porto Alegre quando o caso o requer. A educação costuma
ser, a par da saúde, a preocupação maior das administrações municipais e da população
em geral. Para tanto dispõem de uma rede de escolas que vão do maternal até o
ensino médio. O transporte escolar eficiente atende os alunos, as professoras e
professores são relativamente bem pagos e os prédios e instalações adequadas a
um ensino de qualidade. Ha exemplos em que municípios investem até 30% dos seus recursos na educação. Não
podem faltar salões de festa, para casamentos, bailes, e comemorações de datas
importantes como os aniversários das emancipações. Há municípios que dispõem de
museus e centros de eventos. Os Kerbs fazem parte do calendários onde
predominam os descendentes de imigrantes alemães. As estradas municipais em
muitos casos costumam ser asfaltadas até os limites dos municípios, facilitando
a circulação das mercadorias e pessoas. Mas,
o que mais se destaca é o complexo da atividade econômica. Nas sedes, em vez
das antigas casas de comércio, as lendárias “vendas”, foram substituídas por
lojas especializadas bem ao estilo urbano. Pequenas, médias e até indústrias de
porte maior oferecem um número significativo de postos de trabalho. No interior
desses municípios a típica policultura familiar de subsistência deu lugar a
atividades mais seletivas, tornando obsoleto todo o complexo de instrumentos e
ferramentas tradicionais. Arados de bois, moendas de cana, carroças de bois,
machados, serras manuais e até enxadas e machados, máquinas de costura manuais
ou com pedais, são hoje, em grande parte, artigos de museu Com a chegada da
eletricidade tudo foi substituído por ferramentas que tornaram a produção rural
muito mais produtiva e muito menos penosa do que das gerações passadas. Motosserras
dispensaram o machado e o traçador, roçadeiras, micro-tratores e tratores de maior porte dispensaram os arados
e as juntas de bois, carros, motos e caminhões tomaram o lugar das carroças puxadas por bois, cavalos ou mulas. Em vez de
montarias as pessoas deslocam-se em automóveis que já não são mais motivo de
ostentação e riqueza mas, fazem parte das utilidades normais da imensa maioria
das pessoas, também do meio rural. Como já afirmamos mais acima, a produção
rural tornou-se mais seletiva e especializada para atender ao mercado regional,
estadual, nacional e até internacional. Dezenas de aviários alinham-se nas encostas dos morros acomodados
no meio de árvores nativas e em não
poucos casos rodeados pela mata secundária em constante avanço. Abastecem o
mercado estadual, nacional e internacional. Famílias inteiras, filhos ou netos
de antigos agricultores encontram trabalho rentável e, ao mesmo tempo, saudável nesse ramo de
atividade amparados por tecnologias de última geração no manejo de frangos de
corte e galinhas e/ou perdizes de postura. A suinocultura intensiva valendo-se
também de tecnologias de ponta como a seleção genética de raças mais apuradas,
inseminação artificial, alimentação balanceada,
assistência veterinária, higiene e destinos dos dejetos, substituíram a
criação suínos destinados a suprir as
necessidades das famílias. Como no caso da avicultura a suinocultura destina-se
ao atendimentos das demandas regionais, nacionais e do mercado internacional em
constante crescimento quantitativo e com exigências qualitativas cada vez mais rigorosas. Esse setor de
atividade oferece um mercado de trabalho difícil de dimensionar além de perspectivas
para evitar que muitos jovens nascidos no meio rural se deixem iludir com os
encantos ilusórios das oportunidades oferecidos pela vida urbana. Um ensino
fundamental e médio que inclua em suas programações o alerta pela, as
oportunidades e a realização de uma vida sadia e digna no meio rural de hoje,
pode evitar que muitos jovens iludidos pela fantasia de uma vida fácil e cômoda
nas cidades, terminem subempregados, mal empregados e desempregados, expostos a
todos os riscos que infestam os bairros periféricos. Os administradores dos
municípios, os conselhos comunitários, as autoridades e agremiações religiosas
e outras tantas, têm condições de prestar um serviço de valor incalculável para
as futuras gerações, conscientizando, propondo iniciativas e propondo soluções
concretas. As escolas agrícolas de nível médio podem ser multiplicadas formando
técnicos na produção de hortigranjeiros orgânicos, fruticultura, suinocultura,
avicultura, floricultura, silvicultura e por aí vai. E já que o público consumidor
e legislação e controle sanitário e o manejo dos reflorestamentos e a proteção
da mata nativa, exigem conhecimentos especializados, abre-se espaço para
egressos das escolas superiores de agronomia, veterinária, engenharia florestal
e similares.
A
educação, a conscientização, a formação técnica emtodos os níveis e o acesso às tecnologias e métodos de última
geração, não mudou apenas o rendimento e a qualidade dos produtos, como também
uma paisagem físico geográfica
inimaginável há 80 anos passados. A policultura à base da enxada e do arado de
bois nas encostas pedregosas e muito
íngremes foi abandonada e entregue ao avanço da vegetação nativa. Já nos
referimos a esse fenômeno em outa ocasião mais acima. Vai se formando uma
floresta secundária muito parecida na sua composição e formato àquela original
e intocada que os imigrantes encontraram ao desembarcarem e se fixarem nessas
paragens. Em não poucos casos, no fundo dos vales mais estreitos essa
recuperação florestal já desceu até os arroios formados pelos muitos córregos
que descem dos morros. Um outro efeito extremamente benéfico desse
florestamento espontâneo consiste na retenção da água das chuvas aumentando a
vasão das fontes e córregos e fazendo reaparecer fontes que haviam secado
depois do desmatamento. Na medida que a nova floresta avança horizontalmente e
se avoluma verticalmente vai-se confundindo com as manchas de floresta virgem
original que sobreviveram nas coroas e nos topos dos morros. E, na medida em
que a floresta secundária se espalha e avoluma, as espécies de aves, mamíferos,
répteis, batráquios e insetos, que não foram
extintos, saem dos seus refúgios e voltam a povoar a nova “casa”,
enchendo-a com a sinfonia dos seus cantos, assobios, gritos, pios, roncos,
urros. A proibição da caça anima pássaros, mamíferos e outas espécies a se
aproximarem das moradias e por assim dizer, conviver em harmonia e comunhão com
o homem e seus animais domésticos. A grande maioria das espécies de aves
originais e mamíferos, exceto a onça e o puma, encontram tranquilidade nos
terrenos acidentados de inúmeras áreas abandonadas, impraticáveis para a produção
agrícola nos moldes da demanda de alimentos de hoje. A floresta reconquistando
o seu espaço nos declives dos morros e montanhas, as pastagens, a fruticultura
e o reflorestamento artificial, nas encostas menos íngremes, as áreas mais
planas ocupadas com a produção de hortaliças e legumes, as moradias acomodadas
na sombra de grandes árvores, o traçado das estradas e caminhos acompanhando as
características topográficas, as cidades em franco progresso no centro ou na
saída dos vales, compõem uma paisagens que provam que o “jardim” confiado por
Deus ao homem, quando “cultivado” racional e afetivamente resulta em panoramas
de uma beleza singular. (cf. Laudato si, 124).
Enquanto
reflito sobre a realidade que acabo de pintar circulam nas redes sociais em
torno de duas dúzias de documentários que retratam pequenos municípios no
interior do Rio Grande do Sul, todos contando com a mesma trajetória histórica.
Derrubada a floresta virgem original, a
terra foi cultivada durante 100 ou mais anos no mesmo molde da agricultura
familiar de enxada e arado de bois descrito mais acima. De meio século para cá
moldaram os seus perfis de acordo com as demandas dos mercados de consumo.
Substituíram os tradicionais instrumentos de trabalho pelas ferramentas
oferecidas pela tecnologia moderna. Os meio de comunicação ao alcance de
qualquer colono na mais remota extremidade
de um vale, mexeram fundo na maneira de ser dos produtores rurais,
pondo-os em contato com o que há e acontece de novo, de bom, de discutível e/ou
de deplorável no âmbito regional, nacional e internacional. Nesse cenário já
não há mais lugar para as famílias numerosas de 10 ou mais filhos. Deram lugar
a casais com um ou dois filhos e o próprio conceito de matrimônio tradicional
indissolúvel convive tranquilamente com uniões consensuais, mães solteiras,
separações, divórcios, etc. A prática rigorosa e controlada da religião cedeu o
lugar a uma opção mais pessoal e livre do que há duas ou três gerações
passadas. Ficou no passado o agricultor que costumava percorrer apenas dois
caminhos: o diário de ida e volta da roça e o semanal de ida e volta à igreja.
Mas, não é aqui o lugar para uma análise antropológica e sociológica mais
aprofundada. Resumindo, parece lícito afirmar que os pequenos municípios que
surgiram no interior colonial e ocupam uma significativa parcela dos
territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e outros estados,
moldaram um paradigma, diria civilizatório que, descontados os senões e mesmo
críticas mais severas e contundentes,
apontam o caminho para “cultivar” o “jardim” em que o Criador colocou
homem para que tenha condições de realizar os seus anseios existenciais. Tendo
sempre em vista que falo do modelo da pequena propriedade familiar dedicada à
policultura de subsistência, horticultura, fruticultura e tantas outras
modalidades, atrevo-me concluir nas linhas e sugerir nas entrelinhas, que o “agricultor” deu lugar
ao “produtor rural”. Munido de um comportamento social e familiar urbano,
cultivador de costumes e valores, hábitos religiosos, preocupações econômicas e
políticas, pretensões de uma formação mais apurada, sem demora passará ser um
personagem da história, como os artesãos e tantas outras ocupações. E, para
concluir as reflexões que têm o “trabalho” como um dos instrumentos mais
determinantes no cuidado e cultivo racional da natureza, sugiro como opção de
lazer circular em domingos ou feriados pelos vales dos rios que formam o
Guaíba: Santa Maria do Erval, Bom Princípio, São Vendelino, Tupandi, São Pedro
da Serra, Salvador do Sul, Poço das Antas, Teutônia, Westfália, Sinimbu,
Sobradinho e tantos outros pequenos municípios.