A
partir do final da Segunda Guerra Mundial os tempos mudaram radicalmente
afetando em cheio o personagem humano moldado pela pequena propriedade familiar
com sua produção direcionada, antes de mais nada, para suprir as demandas da
família. A última fronteira de colonização ao modelo consagrado pelos
imigrantes alemães, italianos, poloneses e de outras procedências da Europa, encerrou-se com a ocupação das
terras ainda disponíveis no oeste do Paraná. Paralelamente à industrialização
tomou fôlego e multiplicou e diversificou as oportunidades e opções de trabalho
nos centros urbanos para os excedentes das famílias ainda numerosas no interior
colonial. Os meios de comunicação com o acesso ao rádio primeiro e da televisão
um pouco mais tarde, impulsionados pela eletrificação também do meio rural, resultaram
em dois efeitos complementares. Em primeiro lugar, o agricultor entrou em
contato com o que acontecia além dos topos dos morros que delimitavam sua
comunidade e tomou conhecimento dos avanços da industrialização, da
disponibilidade de tecnologias em constante aperfeiçoamento e, de modo especial
as oportunidades de trabalho. Aconteceu com isso uma profunda transformação na
percepção do mundo pelo agricultor. Costumes, hábitos, valores, todo um estilo
de vida de “colono” vai transformando a cosmovisão dessa gente e moldá-la de
acordo com o figurino urbano. Assistimos a uma autêntica urbanização das
mentes. As famílias numerosas de 10 ou mais filhos vão dando lugar a casais com
dois ou três filhos no máximo. Em segundo lugar, a oferta de oportunidades de
trabalho desencadearam uma crescente onda migratória do meio rural para o
centros urbanos. Em poucas décadas inverteu-se a situação do
Brasil de um país predominantemente rural para um país em urbanização
cada vez mais acelerada. Hoje as
tecnologias de comunicação permitem aos agricultores conectar-se com o mundo
todo até nos intervalos dos trabalhos na lavoura. Os filhos dos colonos foram
tendo cada vez mais oportunidade e facilidade para se formarem no ensino médio
e terem acesso ao superior. Com os respectivos certificados e diplomas na mão o
leque de oportunidades de trabalho se multiplicaram absorvendo uma porcentagem
importante da mão de obra disponível no meio rural. Inúmeros filhos e filhas de
agricultores encontraram trabalho na construção civil, no setor de serviços, no
exercício de profissões liberais, no comércio, nas indústrias, no funcionalismo
público, nas forças armadas e por aí vai. O processo de urbanização daí
resultante exigiu e continua exigindo empenho cada vez maior das administrações
públicas responsáveis, no limite de suas competências, um empenho todo especial
no disciplinamento da formação de sempre novos bairros periféricos. São
fundamentais nesse esforço políticas, ações e estratégias centradas no
saneamento básico, abastecimento de água potável, mobilidade urbana, escolas e
educação, saúde pública e, sobretudo, o acesso aos produtos que formam o
complexo de uma alimentação qualitativa e quantitativamente adequada.
Já
que a preocupação da Encíclica coloca o “trabalho” como um dos pressupostos
para a realização integral as pessoas, do “humano no homem”, tentamos refletir
sobre essa questão não apenas de forma teórica e abstrata, mas inserida num
contexto regional concreto, no caso o vale do rio dos Sinos e numa proposta
tecnicamente elaborada por uma equipe altamente credenciada e habilitada para
tanto. Depois de nos demorarmos em mostrar a dinâmica da urbanização do leito
do rio impulsionada pela industrialização e seus reflexos sobre a
infraestrutura, sobre a revolução social, cultural, econômica, etc., inerente
ao próprio fenômeno da passagem de a cosmovisão rural para a urbana, um outro
complexo de potencialidades da região, chama a atenção. A geomorfologia dos curso médio e superior do Sinos como dos
demais rios que terminam no Guaíba, não permitem monoculturas ao modelo do
grande agro negócio. As florestas originais que cobriam as várzeas dos rios e
arroios e subiam até as bordas dos Campos de Cima da Serra, deram lugar à
pequena propriedade familiar, em torno de 70 hectares no começo. A produção diversificada
destinava-se, em primeiro lugar, para o sustento da família. Passados quase 200 anos depois do desembarque dos
primeiros imigrantes, os lotes coloniais foram sucessivamente repartidos para 10 ou menos hectares. A
agricultura familiar e a criação de animais domésticos caminha para a extinção.
Em outra ocasião, mais acima, já nos referimos aos efeitos dessa mudança. Nas
encostas dos morros onde há 70 anos as roças de milho, feijão, batata, mandioca
subiam até onde era possível a prática da agricultura de enxada, foram
substituídas e ainda estão sendo tomadas por uma floresta secundária parecida à
original ou reflorestadas com acácia e/ou eucalipto. Por estranho que possa
parecer nesse cenário que vai tomando
conta do espaço da agricultura familiar
abrem-se perspectivas para implantar um modelo de produção que encontra na
expansão urbana um potencial de consumo em contínuo crescimento. Vai nessa
perspectiva que a Encíclica aponta a solução tanto da produção de alimentos
quanto da abertura de postos de trabalho para os que se sentem atraídos por um
estilo de vida e, ao mesmo tempo, por uma realização profissional e pessoal
fora da rotina e das opções que oferecem os centros urbanos. Isso vale tanto
para os filhos dos agricultores, mesmo que concluam o primeiro ou segundo grau,
quanto para àqueles jovens que conquistam títulos universitários. Aliás são
mais do que louváveis as escolas de agronomia e veterinária que oferecem em
seus currículos opções para os alunos se especializarem para atuar e assim
melhorar os resultados nesse setor de vital importância para cobrir as demandas
do quotidiano dos centros urbanos.
Para se se conseguir
continuar a dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a
criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de sistemas
alimentares rurais de pequena escala que continuam a alimentar a maior parte da
população mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e de água e
produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer
na caça e recolha de produtos silvestres, quer na pesca artesanal. (...) As
autoridades têm o dever e a responsabilidade de adotar medidas de apoio claro e
firme aos pequenos produtores e à diversificação de produção. Às vezes, para que haja uma liberdade econômica da qual
todos realmente se beneficiem, pode ser necessário pôr limites àqueles que
detêm maiores recursos e poder
financeiro. (Laudato si, 129)
Essas
recomendações da Encíclica aplicam-se sem adaptações significativas às
condições geográficas, demográficas, econômicas e demandas de abastecimento em
geral, do vale do Sinos como também, ressalvadas as características, dos demais
vales que convergem para a capital e terminam se fundindo formando o lago Guaíba.
Vale a pena comentar algumas das sugestões mais relevantes deixadas pela equipe
de técnicos responsável pelo projeto de “Valorização do Vale do Rio dos Sinos”.
O lugar da tradicional policultura de subsistência pode ser perfeitamente
preenchido com a produção de hortaliças e legumes para suprir a demanda em
franco crescimento com a expansão urbana. Para tanto há áreas disponíveis com
solos adequados em toda a extensão do vale. A configuração topográfica, tipo de
solos e variação climática permitem o desenvolvimento da fruticultura de todas
as espécies, menos as eminentemente tropicais, sempre bem vindos para o consume
local e regional. Nos espaços planos e nas meias encostas os cítricos,
pêssegos, figos, uvas de mesa abacate e outras variedades subtropicais
encontram condições propícias para render bons dividendos para quem os
cultivar. Mais para o alto, de 500 metros ou mais podem ser cultivadas peras,
maçãs, ameixas e marmelos e outros que exigem temperaturas mais baixas por um
bom período do ano. Todas essas áreas oferecem condições favoráveis para
pastagens e criação de gado leiteiro. Mas há um outro setor de não pouca
importância. Falamos do reflorestamento com espécies de uso diário como acácia
e eucalipto para lenha e tanino a
primeira e madeira para a construção e lenha a segunda. Todas essas atividades,
praticadas com o uso das modernas tecnologias de manejo oferecem um potencial
difícil de dimensionar de mão obra e, portanto, perspectivas de trabalho
saudável e retorno garantido para quem se interessar, independente do nível de
formação escolar ou acadêmica. A posse do conhecimento teórico e prático da
realidade agrária e o emprego da tecnologia abre espaço para técnicos e técnicas
formadas em escolas de nível médio e agrônomos e agrônomas, veterinários e
veterinárias, portadores de diploma universitário. A combinação do trinômio
trabalho-produção-abastecimento com o trinômio natureza-preservação-cultivo temos
em mãos o pressuposto para fazer do vale do Sinos e de muitos outros ecossistemas humanizados altamente produtivos,
ecologicamente equilibrados, esteticamente belos. “Deus colocou o ser humano no jardim
recém-criado, não só para cuidar e guardar o existente, como também para
trabalhar nele e cultivá-lo afim de que produza frutos”. (Laudatdo si, 124).