E
concluindo o Cap. II da Encíclica o Papa Francisco chama a atenção a mais uma
questão de não pouca importância no catolicismo e em outras religiões.
Referimo-nos as assim chamadas posturas ascéticas em relação à natureza e suas
dádivas. Originou-se toda uma complexa e discutível Teologia Ascética e Moral.
Nas bibliotecas especializadas estantes e mais estantes exibem dezenas de
compêndios e tratados de ascética e
moral. Dedicam-se a codificar e com isso racionalizar o comportamento das
pessoas. Novamente a maldita racionalização imiscuindo-se num terreno que pertence na sua essência ao coração, melhor
talvez a consciência moral do certo e errado somada a liberdade de opção por um
ou outro, inata no ser humano e não ao cérebro. A explicação que inúmeras
formas de ascese praticadas por indivíduos ou
por agremiações, congregações e
ordens religiosas e apresentadas aos fiéis como caminho para a
bem-aventurança, aproximam-se do desumano, para não dizer do sadismo e
masoquismo. A sobriedade não pode desandar em demonização das dádivas da
natureza que tornam a vida das pessoas prazerosa e gostosa de se viver. Foi
essa mensagem que o Papa nos deixa quando
ensina:
Jesus vivia em plena
harmonia com a criação, com grande maravilha dos outros: ‘Quem é este, a quem
até o vento e o mar obedecem?’ (Mt8,27). Não se apresentava como um asceta
separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de Si
mesmo, declarou: ‘Veio o Filho do Homem que come e bebe, e dizem: Aí está o
glutão e bebedor de vinho’ (Mt11,19). Encontrava-se longe das filosofias que
desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo
da história, esses dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns
pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho. Jesus trabalhava com suas mãos,
entrando diariamente em contato com a matéria. (Laudato si, 98).
Partindo
do nosso pressuposto de que o homem encontra-se existencial ou ontologicamente
inserido na natureza, é “Adam, nascido da terra”, Cristo assumindo a condição
humana levava a vida como qualquer ser humano normal. Essa realidade fica
explícita nas citações do evangelho de S. Mateus acima mencionadas. Cabe aqui
uma breve reflexão sobre o lugar das
práticas de penitência comuns no cristianismo e não poucas outras correntes
religiosas. Na sua essência podem ser classificadas em várias categorias, entre
elas: a abstinência de determinados alimentos,
jejuns periódicos ou ocasionais, a abstenção de certas bebidas, a
renúncia aos mais variados prazeres legítimos que a vida oferece, etc. Enquanto
se mantiverem em nível que não prejudicam a saúde ou põem em risco a própria
vida, nada a opor. Se bem entendidos e devidamente praticados podem ser
considerados como louváveis recursos
pedagógicos para disciplinar o corpo e com isso melhorar a vida espiritual no
sentido mais amplo. “Mens sana in corpore sano – uma mente sadia num corpo
sadio”, ensinam os antigos romanos. Evidentemente uma greve de fome, por ex.,
pela razão que for, deixando sequelas para o resto da vida ou, em casos extremos
levam à morte, não encontram justificativa de natureza alguma, nem moral, nem
espiritual, nem ascética, nem política, nem outra qualquer.
Um
outro capítulo relacionado com o tratamento do corpo engloba todas as práticas
de esporte, disciplinamento, exercícios físicos e tantos outros, que têm como
finalidade um corpo sadio que resulta também numa alma sadia, enfim, numa
personalidade sadia, com a ressalva que
tudo aconteça dentro dos limites do razoável. Não há necessidade de insistir
que o exagero em qualquer modalidade de exercício corporal, pode levar a danos
irreversíveis inclusive levar à morte. Até aqui nos ocupamos com formas de
lidar com o corpo que partem do princípio de que o corpo que abriga o espírito
consiste num pressuposto que é passível de aperfeiçoamento para, desta maneira
servir melhor ao espírito.
Acontece,
porém, que para não poucas filosofias e teologias ascéticas e/ou morais,
explícita ou implicitamente, o corpo é tido como um animal rebelde, uma
besta de carga, que precisa ser domado e
mantido sob rédeas curtas, não poupando o chicote e as esporas. Com essa
metáfora refiro-me às práticas de penitência que agridem fisicamente o corpo
como silícios, flagelos e, em casos extremos, mutilações de órgãos, castração e
outras, auto-infligidas ou aplicadas por
terceiros. Neste caso o próprio pressuposto peca pela base. Mascara a ideia de
que entre o corpo físico e o espírito
e/ou a alma reina uma dualidade em que o corpo em última análise não passa de
“um mal necessário” para que o espírito tenha condições de realizar-se na sua
plenitude. Hans Driesch numa tentativa de explicar como funcionam os seres
vivos, inclusive o homem, valeu-se da metáfora do navio comandado por seu capitão. O que de fato importa que o
navio não se desgarre do rumo para chegar ao porto pretendido é habilidade do
capitão. O navio, o corpo é apenas seu instrumento. Ao capitão cabe a
responsabilidade de mantê-lo na rota certa e corrigir os desvios. Num
percurso normal basta a vigilância
somada a manobras de correção de rota. Em situações de emergência, porém, é
preciso recorrer a intervenções mais drásticas para evitar desvios que impedem
o navio chegar ao porto previsto. A proposta e Driesch teve uma aceitação
entusiasmada da parte dos criacionistas da primeira metade do século XX.
Parecia uma saída honrosa para os cientistas críticos da teoria de Darwin como
também para os filósofos mais ligados à cosmologia e os teólogos e todas as
suas áreas específicas, acuados pelo endurecimento da ortodoxia anti-modernista de
Pio X e a consequente vigilância severa das autoridades eclesiásticas.
Provavelmente sem querer, Driesch filósofo e cientista leigo e sem compromissos
doutrinários, forneceu combustível para
moralistas e ascetas subirem o tom. Meu professor de Cosmologia, ainda na
década de 1950, argumentava com Driesch para nos passar essa cosmovisão
dualista. Os tempos passaram e hoje a teoria do eminente filósofo e biólogo,
foi atropelada e arquivada nos museus do
tempo, de um lado pelo avanço das conquistas científicas e do outro,
pela aproximação a partir de Pio XII, e
seus sucessores, das Ciências Naturais e Ciências do Espírito, em busca de
um consenso que concebe o homem como uma unidade indissolúvel, na qual
matéria e espírito se complementam ontologicamente. Em sendo assim iniciativas e procedimentos
que prejudicam ou aperfeiçoam a uma dimensão influem na outra na mesma
proporção. E estamos de volta ao princípio da “mente sadia num corpo sadio” e
invertendo a afirmação “o corpo sadio pressupõe uma mente sadia” é igualmente
correta.
As
considerações que acabamos de fazer levam a uma série de conclusões. Entre elas
privilegiamos em primeiro lugar a total legitimidade, quando não
obrigatoriedade, de usufruir as dádivas da natureza quando e enquanto são
indispensáveis para a saúde física e mental e úteis para um relacionamento
construtivo entre as pessoas. É neste particular que o Papa insiste na citação
que registramos um pouco mais acima, fundamentada no evangelho de São Mateus.
Entre muitas outras passagens dos evangelhos que registram o quotidiano de
Jesus nas sua pregação da Boa Nova, lembramos ainda uma das reflexões da
Encíclica.
Ele próprio vivia em
contato permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e
admiração. Quando percorria os quatro cantos da sua terra detinha-Se a
contemplar a beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a
individuarerm, nas coisas, uma mensagem divina: “Levantai os olhos e vede os
campos que estão doirados para a ceifa” (Jo 4, 35)
Da
mesma forma como fazia suas pregações em contato com a natureza preparou seus
discípulos caminhando pelas estradas e veredas da Terra Santa, ilustrando sua
doutrina com metáforas inspiradas em plantas, animais e nas pessoas que moravam
perto das veredas por que passava. O cenário escolhido para o Pai revela-lo
como Seu Filho aos apóstolos mais chegados, não foi uma sinagoga ou templo em
Jerusalém, mas o cume do Monte Tabor, rodeado pelo encanto e as belezas
naturais próprias desse tipo de paisagem. Poderíamos enumerar outras muitas
situações em que a natureza pura foi o cenário de suas mensagens., como a
multiplicação dos pães, a pesca milagrosa, os 40 dias no deserto e outros. Tudo
isso demonstra que os ensinamentos que formam os fundamentos do cristianismo
foram anunciados em contato íntimo com a natureza e tornados compreensíveis aos
ouvintes pelas mensagens que plantas, animais e paisagens naturais inspiravam.
Uma
outra faceta que Jesus não foi um alienado excêntrico fica claro pelas relações
diretas, senão íntimas, que cultivava com pessoas especiais que se tornaram
paradigmáticas para demonstrar o “Seu Humano” em todos os momentos da sua vida.
Convidado com Sua mãe para as bodas de Caná, não hesitou em aceitar o convite.
Não se limitou em estar apenas presente, mas com a mãe Maria participou do
banquete e quando a ela Lhe chamou a atenção que o vinho estava acabando, o que
resultaria em constrangimento para o noivo, não hesitou em usar o seu poder
divino e transformar água em vinho, e da melhor qualidade como observaram os
outros convivas. Mais um exemplo. Como qualquer mortal cultivou amizades
especiais com amigos e amigas escolhidas a dedo. Destacamos apenas o
relacionamento com Lázaro e suas irmãs Marta e Madalena. Chorou como qualquer
mortal quando a morte levou o amigo especial. Mas, compadecendo-se das irmãs,
não teve dúvidas em recorrer ao poder divino de que dispunha, ressuscitou
Lázaro, falecido e sepultado há três dias. Não se esquivou quando Madalena lhe
lavou os pés e os secou com próprio cabelo além de passar bálsamo. Ouvindo
Marta reclamar a ajuda de Madalena nas lides da casa aproveitou para mais um
ensinamento. Não se deve exagerar no cuidado com as coisas terrenas para não
negligenciar as celestes. O inverso
também é válido. O exagero nas coisas
espirituais prejudica, ou até
impede, o desempenho saudável do corpo que, por sua vez afeta a atividade
espiritual. Por isso, “a mente sadia num
corpo também sadio”, deve ser a regra áurea que deveria orientar a atitude que
qualquer pessoa deveria assumir perante “as coisas terrestres e as celestes”
ou, se preferirmos, entre as preocupações materiais e as espirituais. Essa
perspectiva deveria orientar o proceder das pessoas ao procurarem uma harmonia,
a mais perfeita possível, entre a dimensão material e espiritual de suas
personalidades individuais e inseridas num contexto coletivo.