Quem
nos últimos 60 ou 70 anos esteve envolvido como a evolução da universidade
brasileira, pública ou privada, certamente percebeu que a formação com bases
mais amplas no começo, foi cedendo lugar a uma orientação acadêmica e
curricular, voltada para objetivos técnicos e utilitarista precoces. Eu
pessoalmente não só acompanhei como me envolvi ativamente nessa trajetória, durante
30 anos numa universidade pública e 59
anos numa particular. Até a primeira reforma do ensino superior em 1961 a assim
apelidada “alma mater” dessas instituições tinha como centro polarizador a
faculdade de “ Filosofia, Ciências e Letras” que se encarregava de oferecer as
bases de uma formação de amplos conhecimentos básicos de caráter
generalista. Áreas de conhecimento como
por ex., a História e a Geografia, hoje quilômetros de distância uma da outra
ofereciam um currículo comum integrado ao ponto de conferirem um diploma único
de bacharel ou licenciado em História e Geografia. A “alma mater” atraía em
grande número estudantes das demais faculdades, mesmo das consideradas mais
técnicas com a Engenharia Civil, a fim de complementar a formação cursando
disciplinas como Filosofia, Antropologia, Psicologia, Química, Física, línguas
etc. Num determinado ano, dos 72 matriculados nas disciplinas introdutórias à
Filosofia na universidade pública em que atuei, menos de uma dúzia buscava o
diploma nessa área. Os demais procediam de um
caleidoscópio de áreas como a economia, a medicina, a engenharia,
odontologia, jornalismo e outras mais. O simples convívio entre esses alunos na
mesma sala de aula convidava para reflexões interdisciplinares que abriam as janelas
para horizontes amplos e enriquecedores para os futuros profissionais. Dos
perto de 60 anos que atuei na universidade particular envolvi-me ativamente em
todos as suas fases, desde o primeiro curso oficializado em 1953 e em
funcionamento desde 1954, passando pela criação da universidade em 1969, até
assumir a coordenação do mestrado de
História e o credenciamento do doutorado de História como o primeiro da
instituição neste nível. Até o começo da década de 1960 o modelo que tomava
forma, em essência era o mesmo das demais universidades em funcionamento no
país, ou as faculdades isoladas que se multiplicavam em ritmo acelerado, todas
elas hoje evoluídas para centenas de universidades espalhadas perlo país
inteiro. De alguma forma todas essas instituições adotavam, até a entrada dos
anos 80, uma organização curricular que
favorecia uma base de formação mais ampla e genérica para todos os cursos
especializados oferecidos. Na minha os alunos novos que se matriculavam a cada
semestre letivo, passavam pelo “Básico” com um total de 20 créditos
obrigatórios: História do Pensamento, Antropologia (Introdução ao estudo do
homem), Lógica e Metodologia, Português e Realidade Brasileira. Inglês e
Matemática eram optativas. Uma vez no curso profissional todos os alunos tinham
que obrigatoriamente cursar mais duas disciplinas de formação geral: Humanismo
e Tecnologia e Ética Profissional. Não há necessidade de provar que as
vantagens em termos de colocar a base da formação num fundamento comum,
facilitaria em muito o intercâmbio e a compreensão entre os diversos campos do saber
e a prática de uma autêntica interdisciplinariedade. Em outras palavras. Os
egressos dos mais diversos cursos levavam para a vida profissional
conhecimentos e conceitos, enfim uma linguagem que facilitava o diálogo entre um engenheiro e
um filósofo, um economista e um antropólogo, um linguista e um historiador.
Infelizmente
a partir da década de 1990 esse modelo
acadêmico foi sendo substituído por uma
concepção de universidade de perfil empresarial, profissionalizante,
tecnocrático posto em prática por meio de um aparato burocrático exacerbado.
Para tanto foi preciso mexer nas próprias bases do perfil que até então
orientava aa instituições. A formação básica e genérica foi banida da estrutura
curricular com o argumento de que não se podia perder tempo impondo disciplinas
“sem utilidade”, atrasando a formação
profissional. Disciplinas como “Humanismo e Tecnologia” e “Ética Profissional”
foram departamentalizadas e com isso sua existência entregue ao arbítrio das
instâncias burocráticas responsáveis pela execução do projeto acadêmico dos
diversos cursos. Dessa forma o caminho
para a formação de técnicos e burocratas bitolados e sem visão suficiente para
uma análise crítica dos problemas
econômicos, sociais e políticos que lhes compete resolver, tornaram-se os
referenciais da rotina acadêmica. Uma outra consequência que dá a pensar foi a
perde de espaço da Filosofia, Ciências Humanas, Letras e Artes nas prioridades
acadêmicas em favor de uma hipertrofia beirando a paranoia, de setores essencialmente voltados para as
técnicas e tecnologias destinadas à
administração e gerenciamento da complexidade dos desafios práticos. Nesse
contexto o lugar e a importância da pessoa humana não passa do discurso e das
declarações dos responsáveis pela “missão” que de fato não passa de um
acidente que pouco ou nada conta. Esse clima afetou inclusive os currículos
profissionais individuais que expurgaram da sua programação disciplinas que
lhes pareciam dispensáveis. Um exemplo
deplorável foi a retirada do currículo do Direito da disciplina do Direito
Romano. O que se pode esperar de uma decisão dessas? Sem informações mínimas,
em conhecimentos da natureza, da históriaca
e da competência própria da área,
formam-se peritos em manipular leis, rábulas de porta de delegacia, juristas no
sentido pleno do temo, nem pensar, aliás parece que nem interessam. Esse
fenômeno contaminou inclusive os cursos de formação humanística como a
História. As disciplinas oferecidas não tem conexão umas com as outras, dedicam
uma preocupação exagerada em reescrever e reinterpretar os acontecimentos
históricos à luz de ideologias na moda. Falta-lhes a base dos conhecimentos
garantidas pela Filosofia da História, pelo estudo da evolução do Pensamento
Humano, por disciplinas complementares como a Geografia, a Antropologia, a
Etnografia, a Etnologia, a Arqueologia.
O que se pode esperar de um historiador formado nessas condições? Estudos de
casos amarrados artificialmente, para não dizer grotescamente, às teorias da
moda do momento. Com essa afirmação não se pretende desqualificar esse tipo de
questões quando tratados com a devida objetividade. Mas para um verdadeiro
historiador esse perfil é muito pobre. Hoje a universidade, em vez de abrigar
um Centro ou um Instituto de pesquisa e inovação tecnológica de ponta, evolui
em direção ao formato de um Distrito Industrial no qual principalmente a
Filosofia, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes vão sendo condenadas a
ocupar o lugar do “primo pobre”.
Depois
desse desvio sugerido pelos cinco princípios de Wilson retornemos à sua
proposta “para salvar a vida na terra”. No capítulo 15 ele sugere como deve ser
feita a educação de um “naturalista”. Note-se que emprega o conceito de
Naturalista em vez de cientista, biólogo ou qualquer outro do gênero. Por
Naturalista entende-se uma pessoa que conhece de alguma forma todos os aspectos
de que a Natureza é composta, sua estrutura orgânica, seu funcionamento e sua
história evolutiva. Um Naturalista, portanto, é conhecedor generalista da Natureza
capaz de concebê-la como um todo, como “um fato objetivo”, como ele a definiu
em outra passagem da sua obra, e assim colaborar com proposta e iniciativas
munidas do potencial capaz de contribuir
efetivamente para “salvar a vida na terra”. Para ele a formação de um
autêntico naturalista começa cedo na infância.
A ascensão à natureza começa na infância, portanto o ideal
é que a ciência da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos da vida.
Toda a criança é uma naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar,
explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir
novos mundos – tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez
rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as
crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A
sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas
silvestres”. (Wilson, 2008, p. 158).
Wilson
resume depois a história do afastamento gradual do homem do seu habitat natural
com o começo da agricultura e domesticação de animais há 15000 anos atrás,
dando início ao Neolítico. Esse distanciamento vai-se acentuando durante a
pré-história, a história antiga, até que no final da Idade Média praticamente
todos os ecossistemas habitáveis no planeta, exibiam de alguma forma a presença
e a interferência do homem. O processo de
“humanização” porém entra num ritmo cada vez mais acelerado a partir das
grandes navegações transoceânicas. Essas tiveram como consequência a presença e
a colonização em larga escala na América, na África, na Ásia e na Oceania. O
ímpeto desse processo tomou fôlego ainda maior com a Revolução Industrial a
partir da segunda metade do século XVIII, para transformar-se em furacão devastador
no final do século XIX durante todo o
século XX, e no começo do século XXI.
Mesmo assim, os instintos ancestrais continuam vivos
dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques
e jardins, nos esportes da caça e da pesca, tão estranhos (pensando bem). Os
americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que eventos esportivos
profissionais, e ainda mais tempo nas áreas protegidas dos parques nacionais, cada vez mais abarrotados
de visitantes. A recreação nas florestas naturais e reservas naturais – isto é,
nas partes que permanecem intactas – gera uma renda substancial, da ordem de 20
bilhões de dólares anuais, ao Produto Interno Bruto do país. A televisão e o
cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da Natureza virgem.
Um símbolo de riqueza pessoal é a casa
de campo, tipicamente localizada em um ambiente pastoral ou natural. Ela serve como
refúgio para quem deseja encontrar paz de espírito e como ponto de retorno a
algo que foi perdido, mas não esquecido. Observar pássaros se tornou um importante hobby e uma
próspera indústria. Ser naturalista não é apenas uma atividade, e sim um honroso
estado de espírito (Wilson, 2008, p.
159).
Nessa
passagem, Wilson oferece nas linhas, mas principalmente nas entre linhas, uma
riqueza de informações e sugestões úteis, capazes de levar as pessoas a compreender o que significa para a sua
existência a “mãe e pátria” como o Pe. Balduino Rambo se referiu à Natureza. Começa por ai que que o homem se acha
existencialmente inserido nela e, por
isso mesmo, a sua existência e sobrevivência depende dela. Em resumo, a identidade biológica da espécie humana é feita da mesma matéria prima da natureza
mineral e orgânica; na Natureza encontra os meios para a sua subsistência; na
Natureza busca as inspirações para construir o seu universo simbólico. Como
já insistimos mais acima, as conquistas
tecnológicas postas em andamento a partir do Neolítico, foram afastando o homem
cada vez mais do contato e convívio intimo com o seu entorno natural. No
momento histórico em que vivemos hoje grande parte da humanidade passa o dia a
dia, não na sombra das árvores da floresta
ou na liberdade dos horizonte sem limites de uma savana, de uma estepe ou de
uma pradaria, mas no artificialismo de uma metrópole empestada pelo odor do
asfalto, prisioneiro de engarrafamentos
monumentais e acuado por uma rotina diária que desafia a capacidade de
resistência das pessoas mais disciplinadas. “Hoje, a maior parte da humanidade
reside em um mundo fabricado artificialmente. O
berço, o lar inicial da nossa espécie, foi quase que esquecido por
completo” (A Criação, p.159). Mas, embora nesses ambientes se tenha perdido de
vista em larga escala o contato com as raízes primigênias, elas não foram de
todo esquecidas. Mesmo sufocado pela zoeira da
atmosfera de uma metrópole
moderna, o instinto atávico do pertencimento a esse “mundo perdido mas não
esquecido”, lembra o homem das raízes da espécie humana, portanto da suas, e sente-se
atraído de volta a elas, mesmo que por algumas horas em alguma relíquia de Natureza original. A
memória atávica da qual falamos faz parte da própria natureza humana. Explicá-la desafia
qualquer teoria psicológica, sociológica, evolucionista, antropológica ou
religiosa. Tem as suas raízes no mistério que até hoje envolve em grande parte
a natureza da espécie. Valendo-se da intuição, da percepção sensorial, do
farejar o entorno, ignorando as ferramentas da lógica e da ciência que garantem credibilidade para a Ciência e a
Filosofia, degusta pelo menos por alguns momentos, no máximo por algumas horas,
o retorno ao espaço em que os remotos antepassados começaram a fantástica história do homem feita da simbiose entre ele
e seu chão. Munido com essas ferramentas a humanidade sobreviveu durante
centenas de milhares, quem sabe milhões de anos
e encontrou a matéria prima para construir a sua historia material e
espiritual. Embora, apesar de a
degradação da Natureza ter avançado até um ponto crítico, essa nostalgia
essencialmente enraizada na alma dos seres humanos dá a certeza de que é possível
bloquear o caminho antes de passar da vigésima quarta hora. E há um remédio
eficaz, talvez o mais eficaz, para que essa tragédia não se consuma. Consiste
em fazer subir à tona, essa realidade, torna-la consciente e incorpora-la na
personalidade como um dos componentes que estimulam as pessoas a lidar com
responsabilidade com a Natureza. Wilson chama a atenção de que com isso as
pessoas comuns podem tornar-se
naturalistas “que não é apenas uma atividade, e sim um honroso estado de
espírito”.(A Criação, p. 159). De outra parte, cientistas que não incarnam esse
estado de espirito nem o a levam em conta
nas suas investigações, pouco ou nada contribuem para desperta-lo como uma ferramenta coletiva nas
ações positivas em favor da conservação e preservação do ambiente natural.
A
fase ideal para despertar a consciência pela inserção existencial na natureza, é a infância
como já foi apontado mais acima. Com esse contato precoce com a natureza a
criança familiariza-se em etapas com os animais e plantas que encontra nas suas
incursões nos ecossistemas disponíveis.
Vai percebendo as diferenças entre
árvores, arbustos, ervas e
flores. Da mesma forma toma consciência da multiplicidade de formas dos
pássaros, seus cantos, pios e assobios. Aos poucos sua atenção se volta para as miríades de insetos que se movimentam
no interior de uma floresta ou no descampado. Nesse contato espontâneo com os
seres vivos, animais e plantas, dispensando regras pedagógicas e professores
treinados, onde os pais, irmãos ou outras pessoas fazem o papel de guias e
mestres, a criança, usando os cinco sentidos, como que farejando, vai
identificando, classificando e organizando o mundo que a cerca como se fosse um
brinquedo, um quebra cabeça, um lego. O Pe. Rambo, nascido no meio rural,
registrou em seu diário comentando a sua infância: “Fui um menino solitário e
meu brinquedo predileto foram as árvores da floresta”. E adulto tornou-se
botânico reconhecido nacional e internacionalmente. E nessa relação lúdica com
a natureza consolidam-se na criança as bases intelectuais e emocionais
indispensáveis para a formação formal que a preparará não apenas para ser um cientista, como para
qualquer outra área, inclusive o exercício de uma profissão liberal ou o cultivo
da arte. Wilson observa.
As habilidades cognitivas do naturalista se expressam
de muitas formas, inclusive nas atividades práticas das sociedades
industrializadas, Como observa Gardner, a criança que é capaz de discriminar
prontamente entre plantas, aves ou dinossauros está usando a mesma habilidade
(ou inteligência) que emprega ao classificar diferentes tênis, carros, aparelhos de som ou bolinhas de gude.
E ainda. É possível que o talento para reconhecer padrões recorrentes que identificamos nos artistas, poetas,
cientistas sociais seja construído sobre as habilidades fundamentais de
percepção que encontramos na inteligência do naturalista.
A mente da criança se abre muito cedo para a Natureza
viva. Se for estimulada, ela se desdobra
em estágios que vão fortalecer seus laços com as formas de vida não humanas. O
cérebro é programado para aquilo que psicólogos chamam de “aprendizado
preparado”: Nós nos lembramos com facilidade e prazer de algumas experiências.
Em contraste, somos contra-preparados para evitar aprender
outras experiências , ou então a
aprendê-las e depois evitá-las. Por ex., flores e borboletas, sim; aranhas e
cobras, não. (Wilson, 2008, p. 160 -161).
Baseado na própria experiência de como ele foi introduzido no instigante mudo da natureza
começou muito cedo como criança. Depois como jovem estudante na universidade
teve a sorte de encontrar entre seus mestres os guias certos para consolidar
nele a paixão pela natureza, sua micro e macro fauna e aprender a lidar com esse mundo complexo com as
ferramentas adequadas. Nesse aprendizado a criança e o jovem devem ser apenas
guiados e acompanhados, não empurrados e ou foçados. É importante que se
permita o livre embrenhar-se nas surpresas que pode oferecer um nicho escondido
no ângulo de um muro do quintal, um singelo arbusto na beira da estrada, uma
tábua velha abandonada num canto, um tronco
de árvore em decomposição. Os guias e ou os professores orientam e
ensinam a lidar com as teorias e as práticas para dar forma e consistência aos
dados observados ou coletados em campo. Outra recomendação importante é que
se tome em consideração e se respeite o
ritmo de cada aluno. A formação do naturalista não admite cercas e cadeados. Tem como pressuposto o livre farejar
no seu entorno e a absorção pelos cinco sentidos, por assim dizer por osmose, tudo que encontra nas trilhas percorridas num
parque ou as emoções vividas na sombra e na quietude de uma floresta. As
experiências e o aprendizado nesse
modelo terão repercussões positivas, não só nos futuros cientistas formais,
como nos de qualquer profissional na especialidade que for. O aprendizado na
“Escola da Natureza” ensina que ela se
compõe de uma complicada complexidade responsável pela sua estrutura, da
precisão com que os elementos mais insignificantes contribuem para que um
ecossistema de qualquer tamanho resulte numa obra prima de harmonia, beleza e arte. Ninguém de sã razão ousaria por em
dúvida o valor do aprendizado como instrumento
pedagógico de inegável importância para a formação técnica, e, principalmente, da personalidade, tornando-a
apta para qualquer atividade em qualquer área do conhecimento também fora do âmbito formal
das Ciências Naturais.
Somados
aos conhecimentos acumulados e à moldagem do perfil da personalidade, a
Natureza é uma poderosa e inesgotável fonte de inspiração, musa para escritores, poetas, pintores, músicos,
cantores, místicos e por aí vai. Quem
não conhece “O gigante de Pedra” de Gonçalves Dias, as canções inspiradas no
mar de Dorival Caimi, a descrição da formação de um enxame de abelhas do poeta
romano Virgílio, a Sinfonia Pastoral de Beethhoven, a Odisseia de Homero, e
outras muitas milhares de produções
literárias inspiradas nas belezas naturais. Artistas plásticos encontraram nas
montanhas, rios, lagos, flores, florestas, árvores, charnecas, campos e prados
cobertos de flores as musas particulares de inspiração. O poeta romântico
Novalis, por ex., fez da “flor azul” o
símbolo da utopia. As próprias religiões incarnaram
seus deuses e espíritos em acidentes geográficos, árvores, florestas e
animais. Até o “filosofo da esperança” Ernst Bloch encontrou na descrição das
pradarias do Mississipi, com seus horizontes sem fim, as manadas de milhões de
búfalos caçados pelos índios num cenário sem fronteiras, sem cercas, sem
porteiras e sem cadeados, o conceito-chave da estrutura do seu pensamento: A
Liberdade.
Poderíamos
multiplicar ao indefinido exemplos dessa vinculação do homem, sua história,
suas crenças, sua manifestações artísticas, seu imaginário, seus estímulos
inspirados em fenômenos naturais. Não é
o momento nem o lugar para aprofundarmos essa questão fascinante. Para fechar
essas reflexões que poderíamos prolongar até o indefinido, recorremos novamente
a Wilson.
Da liberdade de explorar vem a alegria de aprender. Do
conhecimento adquirido pela iniciativa pessoal advém o desejo de obter mais
conhecimentos. E ao dominar esse novo e belo mundo que está à espera de cada criança, surge a
autoconfiança. Cultivar um naturalista é como cultivar um músico ou um atleta:
excelência para os talentosos, prazer por toda a vida para os demais, benefício
para toda a humanidade. (Wilson, 2008, p. 166)
Wilson
dedica o capítulo 17, o último do seu livro “A Criação”, para propor a seu
destinatário, um pastor fundamentalista, uma “Aliança pela Vida”. Lembra que,
como cientista, passou a vida inteira estudando a “Criação”. Ficou claro pelo que que pode ser
deduzido da sua obra até aqui, que para ele a Natureza, a Biosfera
representa “A Criação”. Por esse
conceito entende a Natureza como “um fato objetivo”, não um aglomerado,
resultado da soma de milhões de espécies
vivas de todos os tamanhos desde as arqueo-bactérias sub-microscópicas até gigantes como a baleia ou uma araucária
várias vezes secular. O conceito de “Fato objetivo” na compreensão do autor
coincide na essência com o “Weldbild – Cosmovisão” de Erich Wassmann, a
concepção unitária do Universo de Teilhard de Chardin, “Organismo” ou
“Sistema”, de Bertalanffy, “Fisonomia de Balduino Rambo, “Biologos” de Francis
Collins. Expressa também o que entendemos quando falamos em “Natureza como
Síntese”. Wilson deixa claro que ele observa o “fato objetivo” que é a Natureza,
como ele prefere chamá-la, da perspectiva do “secularismo” fundamentado na
ciência. Obviamente a concepção da natureza do pastor a quem se destinam suas reflexões,
interpreta-a do ponto de vista da
religião. As duas aproximações, aparentemente irreconciliáveis, encontram-se
nesse território comum. A ciência consegue, de um lado, identificar o primeiro
elo da corrente que representa biosfera e do outro o último, isto é, da
simplicidade das arqueo-bactérias até
extrema complexidade dos vegetais e animais no topo da corrente. A ciência, por
sua vez, conseguiu também decifrar pelas
leis naturais o “como”, o gigantesco sistema, a Biosfera foi arquitetada,
terminando por configurá-lo como um “fato objetivo”, em ouras palavras, um ente
com personalidade própria, que vai além da simples soma dos elementos que
entram na sua gênese, mas uma grande “Síntese”.
Se
da perspectiva da “Ciência secular” foi possível chegar até essa profundeza da
compreensão do universo e da natureza, fica esclarecido um dos lados da questão,
isto é, aquela que responde ao “como” a natureza é arquitetada e como funciona.
O outro lado da questão pede respostas confiáveis para o “donde”, a explicação
da causa que explica a origem da “energia!” que deu origem a tudo e para o
“onde” que dá sentido a tudo. Evidentemente esse tipo de interrogações não é
posta, nem interessa ao cientista que aposta todas as fichas nos resultados dos
seus métodos. Outro tanto também incomoda ao intérprete literal do Gênesis.
Acontece que a natureza como Wilson a
entende oferece o cenário no qual os dois lados encontram condições para que
“as poderosas forças da religião e da ciência possam se unir. E o melhor lugar
para começar é na tarefa de zelar pela
vida” (A Criação, p. 185). Em seguida chama a atenção para o fato de que nem a
ciência é capaz de dar a resposta final
ao enigma que faz com que “A Criação” se configure numa grande “síntese”, se
preferirmos um grande “sistema”. Continuando na reflexão chama a atenção que aspectos da biologia e da educação apontam o território
comum onde um diálogo e um entendimento
entre os dois campos é possível, sem que um deles tenha que abdicar das suas
convicções. E continuando identifica as questões inegociáveis entre a ciência e
a religião.
Nesse processo não tentei diluir, de forma alguma, a diferença
fundamental entre a ciência e as religiões tradicionais com respeito à origem da vida. Deus fez a
Criação, é que o senhor diz. Essa verdade está claramente expressa nas Sagradas
Escrituras. Vinte e cinco séculos de teologia e boa parte da civilização
ocidental foram construídos com base nessa convicção. Mas não é assim, digo eu,
a vida se fez a si mesma, por meio de mutações aleatórias e da seleção natural
das moléculas codificadoras. Por mais radical
que pareça tal explicação, ela tem um imenso volume de provas
interconectadas. Talvez ainda se chegue a demonstrar que essa teoria está
errada; no entanto, a cada ano isso parece menos provável. (Wilson, 2008, p. 185-186).
Para
encerrar o diálogo imaginado com o pastor fundamentalista propõe não levar em
conta as diferenças fundamentais entre os dois, ou se preferirmos, entre a Ciência
e a Religião, no diálogo que propõe. Aponta como terreno no qual esse diálogo
apresenta perspectivas reais de chegar a um consenso.
Tanto o senhor
como eu somos humanistas no sentido mais amplo: o bem-estar da
humanidade está no centro dos nossos pensamentos. Mas a diferença entre o
humanismo baseado na religião e o humanismo baseado na ciência se irradia por
toda a filosofai, e até pelo sentido que atribuímos a nós como espécie. Essa
diferença afeta a maneira como cada um de nós valida a nossa ética, nosso
patriotismo, nossa estrutura social, nossa dignidade pessoa.
O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu.
Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem,
nossas diferenças metafísicas têm um efeito notavelmente pequeno sobre a
conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é que somos ambos pessoas
éticas, patrióticas e altruístas mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de
uma civilização que surgiu não só da
religião como igualmente do Iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade
nós dois serviríamos no mesmo júri. lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos
com a mesma intensidade, a santificar vida humana. E, com certeza- compartilhamos
o amor à Criação. (Wilson, 2008, p.
187-188).
Wilson
não informa se o convite que ao pastor fundamentalista teve algum retorno. Pelo
que parece, o pastor a quem se dirige é um representante, um personagem
protótipo à testa de uma denominação cristã fundamentalista. Acontece que tendo
ou não relação com o apelo do cientista,
veio à público a “Encíclica Verde” do
papa Francisco. A cada dia que passa o pontífice abre mais uma janela para o
grande mundo do qual a Igreja que
pastoreia faz parte significativa. Convida para um diálogo sincero e
despido de artimanhas e subterfúgios,
para um diálogo sério e descomprometido com todas denominações cristãs, com muçulmanos, judeus, budistas, agnósticos,
ateus, cientistas crentes ou não, enfim qualquer pessoa interessada num
entendimento fraterno entre os homens num terreno de interesse comum. Os
convites e apelos para diálogo são
repetidos pelo papa nas mais diversas circunstâncias e pelos meios de
comunicação de que dispõe. Não é de se admirar que fizesse sua também a causa em favor da
“salvação da Criação”, assim como a entende o professor Edward Wilson.
Valendo-se de uma Encíclica, o documento mais importante disponível, ofereceu
ao público, sem distinção de credo, raça e classe social a monumental encíclica
“Laudato si”, “Louvado seja”, apelando pela urgência de estancar a degradação
da nossa “mãe e pátria”, no entender do irmão seu de ordem Balduino Rambo. Do
alto dos seus 86 anos Wilson dedicados a entender “A Criação”, finalmente
poderá sentir-se recompensado que ele um
“humanista secular” baseado na ciência e Francisco, representante máximo do
“humanismo cristão”, encontram-se em terreno comum na batalha pela salvação da
vida na terra.