Archive for outubro 2016

A Natureza como Síntese #13

Teilhard de Cahrdin  -3
A Biogênese 

No esquema Teilhardiano a “Energia” é a terceira  face da Matéria. A Matéria mostra uma dimensão plural, uma dimensão  de “unidade homogênea” e uma dimensão de energia. Para a física a Energia consiste na capacidade de ação ou interação. Ela representa, portanto, o fluxo entre um átomo e outro, no decorrer do processo de intercâmbio entre eles. Cabe-lhe a função de interligar e, ao mesmo tempo, como nesse fluxo o átomo, de um lado se empobrece e, do outro, é enriquecido, cabe-lhe também a função de construção. E o resultado desse processo de construção, cujo motor vem a ser a energia, em que à complexificação cabe a responsabilidade principal e à agregação e a incorporação o papel complementar, sucedem-se os passos do átomo à molécula, da molécula a macro-molécula, da macro-molécula a megamolécula, da megamolécula a célula.  E chegado a este nível da evolução ou da complexificação da matéria,  aconteceu “o passo da vida”, o passo do inanimado para o animado, do orgânico para o vivo.
Materialmente, olhando de fora, o melhor que podemos dizer neste momento é que a vida  propriamente começa na célula. Quanto mais a ciência concentra, desde há já um século, seus esforços sobre essa unidade, quimicamente e estruturalmente ultra-complexa, mais evidente se torna que nela se dissimula o segredo  cujo conhecimento estabeleceria a ligação, pressentida mas não realizada ainda, entre os dois mundos da Física e da Biologia. A célula, grão natural da vida, assim como o átomo é o grão natural da Matéria inorganizada. É certamente a célula que temos de tentar compreender se quisermos avaliar em que consiste especificamente o Passo da Vida. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 84).
É neste ponto que a ciência se vê às voltas com o mesmo desafio, quem sabe bem maior ainda daquele que lhe é posto pela pergunta: Como se originou a Energia, presumidamente a realidade que explica  a existência  do universo e dos processos que lhe deram forma. Os estudos sobre a célula renderam até o momento um volume enorme de publicações em todos os níveis.
Bibliotecas especializadas inteiras já não são suficientes para conter as observações acumuladas sobre a sua textura, sobre as funções relativas do seu “citoplasma” e do seu núcleo, sobre o mecanismo da sua divisão, sobre as suas relações com a hereditariedade. E, no entanto, considerada em si mesma, ela continua aos nossos olhos exatamente tão enigmática, exatamente tão fechada como sempre. É como se, tendo chegado a certa profundidade de explicação, girássemos, sem avançar mais, em torno de algum impenetrável reduto. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 84-85)
Nos mais de sessenta anos que se passaram desde o momento em que Teilhard de Chardin escreveu essa observação, a incursão para dentro do âmago da célula avançaram de modo significativo. Os conhecimentos sobre os componentes químicos que formam a célula, os processos e as inter-relações  que neles acontecem, ampliaram em muito o conhecimento sobre a sua morfologia, sua química e  funcionamento. Lembramos apenas até que ponto avançaram os conhecimentos consolidados no campo da genética. O genoma, o centro do interesse nessas pesquisas, parece esconder pouco da sua natureza físico-química e do papel que lhe cabe no complexo campo da hereditariedade. Um a um os genomas das mais diferentes espécies vão sendo mapeados, permitindo a intromissão e interferência no comportamento e na transmissão de caracteres, tanto desejáveis quanto indesejáveis. O mapa genético do homem disponível há vários anos, abriu as portas para o controle ou  cura de males hereditários, para prevenir a propagação de caracteres negativos e favorecer positivos. Por mais que se possa sonhar em penetrar nos recessos últimos da célula, uma coisa parece certa. Para os métodos e  meios da ciência empírica há um limite. E mesmo olhando do viés das Ciências,  teremos dado conta apenas da metade do problema. Na busca de uma compreensão do que de fato conta no estudo da célula encontra-se na resposta à pergunta: de que natureza é o algo a mais que distingue uma célula de uma megamolécula? Parece difícil que a resposta nos possa ser dada pelo desvendar nos últimos recessos da sua estrutura e do seu funcionamento.  E o que fazer então quando os  métodos histológicos e fisiológicos de análise já nos  tiverem dado o que podiam?  A esta altura é importante não perder de vista  que a abordagem da célula até aqui tentada, ateve-se ao viés biológico.  A célula costuma ser vista como um “micro-organismo” ou um “broto-vivo” que importava ser entendido a partir de suas “formas e associações mais elevadas”.
Ora, assim procedendo, deixamos pura e simplesmente na sombra a metade do problema. Como um planeta no seu quarto-crescente, o objeto de nossas pesquisa iluminou-se na face voltada para os cumes da vida. Mas, nas camadas inferiores do que chamamos Pré-Vida, ele continua a flutuar na noite. Eis provavelmente  o que, cientificamente falando, prolonga  indevidamente para nós o seu mistério. Exatamente  como qualquer outra coisa no Mundo, a célula, por mais maravilhosa que nos pareça em seu isolamento entre outras construções da Matéria, não poderia  ser “compreendida” (isto é, incorporada num sistema coerente  do Universo) senão recolocada entre um Futuro e um Passado, numa linha de evolução.
Ocupamo-nos demais de suas diferenciações, de seu desenvolvimento. É sobre  as suas origens, isto é, sobre as raízes que ela mergulha no inorganizado, que convém agora fazer convergir nossas pesquisas, se quisermos atingir a verdadeira essência de sua novidade
Em oposição o que a experiência nos ensina em todos os outros domínios, habituamo-nos ou resignamo-nos demais a conceber a célula como um objeto sem antecedentes. Procuremos ver o que ela vem a ser, se a olharmos e a tratarmos, devidamente, como um coisa  ao mesmo tempo longamente preparada e profundamente  original, isto é, como uma coisa nascida.  (Teilhard de Chardin. 1986. p. 85)
Em seguida Teilhard  procura explicar “o longamente preparado e o profundamente  original, isto é, a coisa nascida”. Os dados obtidos pelas pesquisas nos diversos campos da História Natural, deixam claro que há uma combinação orgânica entre as dimensões de tempo e espaço.  A dispersão no espaço  tem uma relação direta com a duração temporal. Em outras palavras. Toda a dispersão espacial acontece numa duração temporal compatível. O mesmo se pode afirmar da diversificação morfológica. Quanto mais diversificada e mais profunda ela for tanto mais tempo se requer. E no caso da célula não há o que discutir sobre a  profundidade e a extensão da “complexificação” que precedeu e acompanhou a sua gênese. Colocando o processo numa perspectiva evolucionista, conclui-se que o tempo necessário no caso da célula, cobre centenas de milhões para não dizer bilhões de anos. Convém lembrar mais uma vez que em espaços de tempo tão descomunais, que desafiam seriamente a nossa capacidade de avaliá-los no seu significado, os passos sucessivos que levaram a “complexificação” a resultar na célula, apagaram-se sem deixar vestígio. Sobra-nos avaliá-los ou imaginá-los, ou por analogia com que pode ser observado na natureza de hoje, ou tentar uma aproximação  filosófica, examinando a pertinência de introduzir na discussão questões e conceitos como “causalidade suficiente” e outras mais.
Se de um lado o caminho percorrido pela evolução cobre períodos e eras que escapam à nossa capacidade de apreensão do tempo e, ao mesmo tempo, apagaram os vestígios materiais do processo, a célula apresenta duas características notórias como resultado histórico do passado ignoto e obscuro. A arquitetura da célula é complexa” e, ao mesmo tempo “é fixa”. A análise química da célula revela que na sua estrutura entram albuminas, aminoácidos, lipídios, água, fósforo e sais minerais, com destaque para o potássio, o sódio, magnésio e outros. Esse conjunto de elementos forma a base do protoplasma. Nele a viscosidade, a osmose, a catálise e outras forças agem e interagem, demonstrando que a matéria alcançou um estágio superior de organização molecular. Mas a coisa não para por aí. No âmago, no centro, destaca-se, na imensa maioria dos casos um núcleo que encerra os cromossomos, os mitocôndrios e outras estruturas que vão sendo identificadas na medida em que os microscópios e outros meios de observação permitem penetrar cada vez nas entranhas da célula e suas subestruturas. Teilhard  conclui suas observações sobre a complexidade da célula com as palavras: “Um triunfo da multiplicidade organicamente concentrada num mínimo de espaço”. (cfr. Teilhard de Chardin. 1986.  p. 89).
A complexidade da célula vem complementada pela fixidez. Uma observação menos atenta corre o risco de não perceber que na imensa diversidade e pluralidade das formas que a natureza oferece, na sua essência a natureza da célula sempre permanece a mesma. Na sua complexidade e na sua fixidez  a célula coloca o observador diante de um dilema. Por analogia ela se enquadra no mundo dos seres vivos ou no mundo dos não vivos. Ou quem sabe  representa na arquitetura terrestre um estágio específico, uma forma particular dentre as outras? Diante dessa interrogação Teilhard faz  a seguinte reflexão:
Diante dela o nosso pensamento  hesita em lhe procurar analogias no mundo do “animado” ou no mundo do “inanimado”. Não se parecem  as Células  entre si  como moléculas, mais do que como animais? ... Consideramo-las  legitimamente como as primeiras  das formas vivas. Mas não seria também  justamente  verdadeiro considerá-las  como representando um outro estado da Matéria: algo também tão original, em sua ordem, quanto o eletrônico, o atômico, o cristalino ou o polímero. Um tipo de material, para um novo andar  do Universo? A célula, simultaneamente, tão una, tão uniforme e tão complicada, é em suma o Estofo do Universo que reaparece com todos os seus caracteres, - mas desta vez elevado a um escalão ulterior de complexidade e, por conseguinte, ao mesmo tempo (se é válida a hipótese que nos guia ao longo destas páginas), a um grau superior de  interioridade, quer dizer de consciência. (Teilhard de Chardin. 1986 p. 89-90)
A interioridade ou a consciência no sentido mais genérico de Teilhard, intensifica-se, torna-se mais consistente e, por isso mesmo aperfeiçoa-se na razão direta da complexificação das estruturas. Cada passo adiante na complexificação vem acompanhado de uma interioridade ou consciência mais apurada. Na medida em que a interioridade por assim dizer se condensa e, consequentemente a consciência se apura, potencialidades novas e qualitativamente superiores se manifestam. E acontecem momentos nesse processo em que a complexificação resulta em saltos que chegam a desafiar a lógica dos acontecimentos rotineiros. O primeiro desses momentos situa-se exatamente no “marco zero” do universo. O consenso admite que a matéria prima do universo  é a energia. Parte-se assim de uma realidade dada. A ciência foi capaz de identificar, catalogar, calcular e descrever os potenciais da energia e, a partir desses dados objetivos propor explicações para a estrutura e o funcionamento do universo. O que fica em aberto é uma resposta convincente sobre a origem da energia. Supondo que a ciência localize dados objetivos que, na verdade, se trata de um estágio mais avançado de alguma realidade material ainda desconhecida, nada mais acontece do que deslocar a resposta para um outro nível e um outro momento cronológico. De qualquer forma ficamos à espera de uma resposta convincente que até agora não foi dada. 
A compreensão da natureza íntima da célula coloca-nos frente a um desafio semelhante ao da energia do qual nos acabamos de ocupar. Os  elementos químicos, o arranjo estrutural, as múltiplas funções e as leis que comandam os processos intracelulares, são em grande parte do domínio da ciência. A questão realmente de fundo permanece na sombra e desafia os cientistas que se ocupam com seriedade em elucidá-la. Neste particular a pergunta-chave é: Se a célula é de fato um ser vivo, o que vem a ser a Vida?. Teilhard de Chardin faz um esforço enorme como cientista para aproximar-se da resposta pelo lado da ciência. Para ele o aparecimento da célula é algo de novo, de muito novo quando começou a  fazer parte do cenário da terra em evolução.
É com os inícios da Vida organizada, ou seja, com o aparecimento da Célula, que concordamos  habitualmente em fazer “começar” a vida psíquica no Mundo. Coincide, pois, aqui com as perspectivas e  maneira de falar usuais, ao situar nesse estádio particular da Evolução um passo decisivo nos progressos da Consciência sobre a Terra. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 90)
Teilhard  faz um grande esforço para aproximar-se da explicação do que, em última análise, vem a ser aquele “Novum”, que chamamos de vida, que começou  a manifestar-se quando a “complexiificação ultrapassou o nível megamolecular. Partiu da constatação que ocorreu uma “revolução externa” responsável pela construção do edifício molecular. Essa revolução externa conta na sua base com os elementos químicos que entram na edificação do edifício da natureza, tanto inorgânica quanto orgânica: oxigênio, nitrogênio, hidrogênio e carbono, somados a outros vinte e tantos elementos como cálcio, ferro, fósforo, iodo, cobalto, potássio, sódio, magnésio, metais diversos, etc.,  de alguma forma participantes nos diversos processos e funções celulares específicas. Combinações e recombinações desses elementos, levam pela “complexificação” ascendente, à formação de moléculas inorgânicas, mais  adiante orgânicas mais simples, para passar pelas macromoléculas, megamoléculas e, finalmente, a célula. Morfologicamente  falando a célula apresenta duas partes distintas: o citoplasma e o núcleo. Na sua composição entram aminoácidos de enormes pesos moleculares, lipídios, carboidratos, sais minerais, ... Tudo forma o protoplasma com aparência esponjosa. Nele atuam os processos de osmose, viscosidade, de catalise e de outras mais. E no interior destaca-se o núcleo contendo  os cromossomos que por sua vez abrigam o genoma. Resumindo pode-se afirmar com Teilhard: “Um triunfo da multiplicidade organicamente concentrada num mínimo de espaço”. (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 89)
“A revolução interna” que levou a matéria a combinar-se  e a recombinar-se dando origem à célula não chegou a lançar dúvidas sobre a  “fixidez” que constitui o elemento chave que garante a unidade da natureza. Os  elementos químicos universais, aos quais  se fez referência mais acima, continuam formando a base do anorgânico, orgânico não vivo e do orgânico vivo, exatamente com se ensinou desde os primórdios da química como ciência sistematizada. De outra parte as células são essencialmente idênticas entre si, estrutural e funcionalmente,  entre os protozoários e os metazoários em qualquer organismo, independente da complexidade anatômica e estrutural.  A identidade celular, que aqui chamamos de “fixidez” é, ao mesmo tempo, estrutural e funcional. Tanto faz se observamos a célula que forma o protozoário ou alguma célula fazendo parte de um órgão, de algum animal superior. Em ambos os casos as funções vitais, o processamento dos nutrientes, a sua assimilação, incorporação, oxidação e a eliminação dos resíduos é igual. Qualquer célula, em qualquer situação é idêntica a todas as demais e a si mesma, na estrutura, nas funções que nela acontecem, na condição de funcionar como um sistema de equilíbrio instável. E o espetacular é que todas de alguma maneira manifestam “vida”, à sua maneira em cada nível. Nos protozoários todas funções vitais acontecem numa e na mesma célula. Nos metazoários as funções específicas acontecem em células especializadas e em tecidos e órgãos também específicos. Mas é importante não esquecer que o mais complexo dos organismos vivos ou teve, ou tem o seu ponto de partida numa única célula embrionária que naquele estágio inicial se encarrega de todas as funções exatamente como acontece no protozoário. E não se esqueça ainda de que os estudos sobre as células-tronco já nos permitem afirmar que qualquer célula adulta, não  perdeu o potencial da embrionária que possibilitou indiretamente a sua origem dentro de organismo superior.
A “revolução externa” pela “complexificação” e pela “fixidez” constituiu-se, sem dúvida, no pressuposto material e estrutural para que o outro processo, o da “revolução interna”, pudesse acontecer. Firmou-se o consenso entre os cientistas de que a vida manifestou-se pela primeira vez na história da terra numa célula, como há consenso também que a vida em todos os níveis tem a sua base nas células. Nelas acontecem os processos de natureza físico-química que permitem a manifestação da vida, ou concentrados numa única célula como nos protozoários ou seletivamente nos órgãos especializados dos metazoários.  A questão de fundo que a essa altura se coloca, é: De que natureza foi, em última análise, essa “revolução interna?” Teilhard esforça-se por manter-se coerente com a sua visão unitária do universo e da natureza. Tudo começou num ponto de partida – o Alfa. A partir dele por processos conhecidos e, principalmente, ignorados até agora, formaram-se os elementos estruturais da natureza constantes na “tábua periódica” e, provavelmente, outros ainda por descobrir. A “complexificação” ascendente completada com o contributo auxiliar  ou não da “agregação e ou repetição, prepara o cenário, no qual vão-se definindo, de forma progressiva e cada vez mais nítida, evidências de algo imanente no interior da matéria na medida em que ela se  complexifica.  A imanência que se refere a uma “interioridade”, a uma “consciência” em vias de explicitação,  que se torna mais evidente na razão direta em que a matéria evolui para patamares cada vez mais complexos, coloca o cientista e, porque não o filósofo, diante de um desafio de bom tamanho. Definir a relação causal entre esse “algo imanente” e a maior ou menor complexidade estrutural na qual se manifesta. Teilhard dimensionou o desafio quando escreveu:
Nesse ponto, confesso, é difícil ser claro.  Mais adiante, no caso do Pensamento, uma definição psíquica  do “ponto critico humano” revelar-se-á de pronto possível, porque o Passo da Reflexão carrega em si algo de definitivo, e também porque, para avaliá-lo, temos senão que ler no fundo de nós mesmos. No caso da célula, pelo contrário, comparada  aos seres que a precedem, a introspecção só pode nos guiar por analogias repetidas e longínquas. Que sabemos nós da “alma” dos animais, mesmo dos mais próximos de nós? A tais distâncias para trás, temos que nos resignar com o vago em nossas especulações.
Nessas condições de obscuridade e nessa margem de aproximação, três constatações  são ao menos possíveis,  - suficientes para  fixar de um modo útil e coerente a posição do “despertar da célula” na série de transformações  psíquicas que preparam sobre a terra o aparecimento do fenômeno humano. “Mesmo” e, acrescentarei “sobretudo” nas perspectivas aqui admitidas, a saber  que uma espécie de consciência sobretudo precede a eclosão da Vida, um tal despertar ou salto 1) pode ,  - ou melhor 2) deve ter-se produzido; e assim 3) acha-se parcialmente  explicada uma das mais extraordinárias renovações  historicamente experimentadas pela face da terra. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 90)
Nas entrelinhas do texto citado fica claro que Teilhard faz um esforço fora do comum para encontrar uma resposta coerente e aceitável à pergunta que formulamos, a respeito da relação causal entre a complexidade estrutural da célula e a gênese da imanência, da interioridade, da consciência. Sua intenção e seu esforço em aproximar-se da explicação pelo viés científico não deixa dúvidas. Aliás essa opção é coerente com a opção metodológica que orienta as abordagens do “Fenômeno Humano” em toda a sua extensão. De outra parte não consegue mascarar de todo a sua condição de filósofo, teólogo e jesuíta que, com certeza, o lembram consciente ou inconscientemente dos compromissos com a fé, a doutrina e os princípios filosóficos que pautaram a sua vida como religioso. Essa situação faz com que  se esforce e se demore na apresentação de dados, invocar processos,  tirar conclusões e, principalmente, criar um corpo conceitual muito seu para dar coerência, solidez e confiabilidade à sua cosmovisão. Às voltas com a dificuldade de formular uma resposta pelo caminho da ciência sobre a verdadeira natureza do passo  que aconteceu na transição do não vivo para o vivo, ele se pergunta:
E agora consideremos novamente, à luz destes princípios, o assombroso espetáculo apresentado pela eclosão  definitiva da Vida na superfície da Terra Juvenil. Esse ímpeto para frente na espontaneidade. Esse luxuriante desencadeamento de criações fantasistas. Essa  expansão desenfreada. Esse salto no improvável ... Não está exatamente aí o acontecimento que a teoria nos permite esperar? A explosão de energia interna consecutiva e proporcionada a uma super-organização fundamental da Matéria? (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 91)
Continuando, formula a resposta  para a manifestação da Vida na “super-organização fundamental da Matéria, a qual, entretanto, deixou em aberto a questão crucial: qual a causa última responsável  pelo surgimento da vida na célula? “( ... ) Por essa dupla e radical metamorfose  podemos razoavelmente  definir, naquilo que ela tem de especificamente original, a passagem  da Molécula para a Célula, - o Passo da Vida”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 91). A  explicação que lança uma luz sobre a aparente resistência em formular a resposta à pergunta que vai-se se tornando cada vez mais insistente na medida em que se avança no exame tanto do “Fenômeno Humano” quanto no “O Lugar do Homem na Natureza”, data de um documento escrito em Pequim em fevereiro de 1942.
1. “Como foi explicado no Prefácio, este trabalho não é um livro de religião, nem mesmo de filosofia. Rigorosamente escrito como uma memória  de geologia ou de paleontologia, ele representa, no meu pensamento, uma contribuição científica para o uso da Ciência: um esforço para ordenar melhor o nosso conhecimento físico do Mundo, abrindo ao Homem um lugar coerente até o fim, na Biologia.
2. Por conseguinte, que ninguém se espante se nestas páginas, limitadas (é sua força) ao estudo de um “fenômeno”, não aparecem quaisquer considerações sobre a natureza ontológica do espírito e da matéria, nem qualquer menção das verdades reveladas (Queda, Encarnação, Criação) ...,) Essas verdades não são nem negadas nem esquecidas, não teriam o seu lugar nem lógico, nem psicológico.
3. Essa omissão, ademais, é só aparente. Se (em conformidade aos ensinamentos do concílio do Vaticano) eu chego, seguindo o caminho racional e científico, apenas a uma “demonstração” aproximada da existência de um Deus pessoal, tenho pelo menos uma certa confiança que as perspectivas desenvolvidas no livro formam um quadro e transmitem uma atmosfera favoráveis que predispõem os espíritos a esperar e reconhecer uma Revelação. (Teilhard de Chardin. 1986.  p. 376)


A Natureza como Síntese #12

Teilhard de Chardin - 2

Para Teilhard a biogênese confunde-se com a citogênese. A célula é a realidade viva fundamental. Nela podem ser observados os fenômenos essenciais que caracterizam a vida. É, portanto, na história e nos processos de sua gênese que se ocultam as respostas para as peculiaridades e a própria natureza da vida.
É fantástico o que se pesquisou e o  que já se descobriu sobre a estrutura, composição, funcionamento e funções, como se processa a divisão, qual a relação com a hereditariedade, com o equilíbrio funcional do organismo. O aprimoramento dos métodos e tecnologias cada vez mais refinadas, permite penetrar sempre  mais fundo  nas entranhas misteriosas da célula. Cada dia que passa novas e inesperadas revelações surpreendem os pesquisadores. Passo a passo identificam-se  nesse micro-universo as trilhas que levam a desvendar processos  que permitem decifrar  o que acontece nas raízes mais profundas do fenômeno da vida. Conhecimentos consolidados, métodos confiáveis e tecnologias seguras  permitem com êxito crescente,  a sua utilização na medicina, na esfera legal, no plano da saúde e em muitos outros campos práticos. Está aí para prová-lo o mapeamento dos códigos genéticos, o desenvolvimento de transgênicos, a identificação pelo  DNA, a esperança já em vias de se tornar realidade do tratamento de doenças hereditárias ou de predisposição hereditária. O ritmo e a profundidade da investigação no âmago da célula, melhor talvez, nos arcanos da vida, promete incontáveis e insuspeitadas surpresas.
Milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares, milhões de páginas escritas contam a história das incursões dos cientistas, nesta fantástica e promissora fronteira de exploração que é a célula.
A essa altura Teilhard de Chardin recomenda uma pausa, uma parada para a reflexão. Não se trata de um convite para frear o entusiasmo e o ritmo da pesquisa ou, quem sabe,  uma atitude “estraga prazer”. Cientista como foi   e como filósofo e teólogo que também foi, deixou  seguinte reflexão:      
Escreveram-se  já volumes e volumes  sobre a célula. Bibliotecas inteiras já  não são suficientes para conter as observações minuciosamente acumuladas sobre a sua textura, sobre as funções relativas  do seu “citoplasma” e do seu núcleo, sobre o mecanismo da sua divisão, sobre as relações  com a hereditariedade. E, no entanto, considerada em si mesma, ela continua aos  nossos olhos exatamente tão enigmática, tão fechada como sempre. É como se, tendo chegado a uma certa profundidade de explicação, girássemos, sem avançar mais, em torno de algum impenetrável reduto.
Não seria que os métodos histológicos e  fisiológicos de análise já nos deram o que deles podíamos esperar, devendo o ataque  agora, para progredir, ser retomado sob um novo ângulo?
De fato, e por razões  óbvias, até aqui, a Citologia construiu-se quase  inteiramente, a partir de um ponto de vista biológico: sendo a célula considerada como um micro-organismo ou um proto-vivo que cumpria interpretar em relação às suas formas e às suas associações mais elevadas.
Ora, assim procedendo, deixamos pura e simplesmente  na sombra a metade do problema. Como um planeta no seu crescente, o objeto de nossa pesquisa iluminou-se na face voltada para os cumes da vida. Mas, nas camadas inferiores do que chamamos a Pré-Vida, ele continua a flutuar na noite. Eis provavelmente  o que, cientificamente falando, prolonga  indevidamente para nós o mistério.   (Teilhard de Chardin. 1986. p. 84-85)
De fato o que a Ciência conseguiu  realizar nos pouco mais de 50 anos que se seguiram à morte de Teilhard de Chardin, foi penetrar fundo “na metade do problema”. Isto é a célula foi e está sendo vasculhada até nos seus componentes estruturais mais ínfimos, nas funções de cada um deles, nas relações mútuas e no significado de cada um deles em particular e no seu todo. A composição do citoplasma, dos mitocôndrios com suas respectivas funções são do conhecimento da Ciência. O mesmo pode afirmar-se dos cromossomas. Sua composição, estrutura e funcionamento já não são mistério. Tanto assim que o mapeamento do genoma humano e de uma outra série de animais, plantas e micro organismos, já foi concluído. E com este importante passo franquearam-se as portas para interferir nas micro estruturas e manipular e controlar as suas funções. De momento  não há como avaliar o tamanho do caminho a ser percorrido ainda, até que neste plano tudo esteja esclarecido. Entretanto, o ritmo em que as investigações avançam, permite prever não só a possibilidade de chegar até lá, como não  deixar mais dúvidas sobre a natureza biológica da célula como a sede da vida.
Acontece que no momento em que a Ciência estiver em condições de anunciar mais essa façanha: “a metade do problema” estará solucionado. A  “outra metade” a que Teilhard se reporta, vem a ser muito mais complexa e muito mais problemática para ser resolvida. Até aqui a célula foi dissecada, seus mecanismos de funcionamento identificados e, até certo ponto, postos sob controle. Mas, conforme Teilhard
Como qualquer outra coisa no mundo, a célula por mais maravilhosa que nos apareça no seu isolamento entre outras construções da Matéria, não poderia ser compreendida  (isto é, incorporada num sistema coerente do Universo) senão recolocada entre um Futuro e um Passado, numa linha de evolução. (Teilhard de Chardin. 1986, p. 85)
Situar a célula na sua devida dimensão entre um Passado e um Futuro, significa passar a iluminar e começar a entender a “outra metade”. Esse passo implica em responder a duas questões, tão ou mais  cruciais, do que entender  a composição, estrutura e funcionamento de um lado e, do outro, procurar uma compreensão objetiva da sua gênese, do seu fazer-se na perspectiva da evolução. Na verdade é neste plano que se interpõem desafios de difícil enfrentamento. Teilhard resumiu nos seguintes termos  a questão:
Em oposição ao que a Ciência nos ensina em todos os outros domínios, habituamo-nos ou resignamo-nos demais a conceber a célula como um objeto sem antecedentes. Procuramos ver o que ela vem a ser, se a olharmos e tratarmos, devidamente, como uma coisa ao mesmo tempo longamente  preparada e profundamente original, isto é, como uma coisa nascida. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 85)
Na perspectiva da sua inserção no Universo, a célula é uma realidade “longamente preparada”. Vista sob esse prisma a célula situa-se, como realidade de transição, entre o plano das macromoléculas e os protozoários e metazoários. O que importa à essa  altura é vislumbrar e entender de alguma forma, essa transição, essa superação de plano, de estágio, de etapa. Em outras palavras, é o momento de acompanhar desde o nascedouro o acontecer desse elo entre o orgânico e o vivo, entre o pré-vivo e a vida propriamente dita.
Nesse esforço para entender  a ascensão evolutiva de tamanho significado, duas incógnitas dificultam o caminho. A primeira relaciona-se com a cronologia terrestre. Em primeiro lugar é preciso livrar-se da armadilha de pensar em categorias cronológicas do nosso quotidiano, quando se trata de lidar com durações que cobrem eras geológicas.
As evidências apontam para um fato  que a cada  dia que passa, reúne um número crescente  de constatações científicas a seu favor. As passagens de um patamar de complexidade química e ou biológica  não acontecem aos saltos. Só se dão no mais autêntico modelo e ritmo evolutivo. No bojo de um determinado estágio, da macromolécula, por ex.,  estabelecem-se condições favoráveis para o desencadear de uma complexificação em direção a um nível mais elevado. No âmbito molecular e, a partir do seu próprio potencial, começa, por assim dizer, um pulsar novo da matéria, que acelera a complexificação e, com o correr do tempo, leva a um estágio mais elevado e mais adiantado. No nosso caso do estágio macromolecular, não é ele no seu todo que ascende a um novo patamar, mas uma parte ativada por um novo impulso evolutivo, gerado no seu interior. Em outras palavras, o patamar do universo macromolecular continua existindo. O que aconteceu é que em suas entranhas gestou-se o gérmen de uma nova dinâmica. Pela complexificação acelerada e ascendente, resultou um novo patamar, o Celular. Se essa mudança implicou numa transformação de natureza no sentido filosófico, é uma questão a ser analisada  mais adiante. Constata-se nesse processo que as raízes de um patamar de complexidade da natureza mergulham, a perder de vista, no anterior. Ao mesmo tempo, em algum momento e, em condições a serem identificadas, desencadeia-se um novo  fermentar em busca de um novo patamar mais acima e mais além: da macromolécula à célula, da célula ao protozoário, do protozoário ao vegetal e animal, do animal ao mamífero, do mamífero ao antropóide e, finalmente, do antropóide ao homem. Teilhard comentando essa dinâmica, assim se expressou:
Sem exagero, tal como o homem se funda, anatomicamente,  aos olhos dos paleontólogos, na massa dos mamíferos que o precederam, assim também, no sentido descendente, a célula se afunda, qualitativamente e quantitativamente, no mundo dos edifícios químicos. Prolongada imediatamente atrás de sim mesma, converge visivelmente para a molécula. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 86)
Uma série de evidências objetivas reforçam a convicção de que as raízes da célula descem, até as profundezas dos patamares de complexificação ascendente e que neles devem procurar-se os dados para explicá-la. Em outras palavras. Tomando como referência o nível atual dos conhecimentos empíricos, a célula, quanto à sua estrutura e funcionamento, não é uma realidade insólita. Não entrou em cena sem se anunciar, sem ser preparada durante longas eras. Não é um “deus ex machina” que, num passe de mágica preencheu mais uma lacuna  na lógica que comandou e comanda ainda os processos evolutivos da natureza. Não se trata também de mais um momento em que a solução  dever ser buscada no “design inteligente”. Há evidências suficientes  para afirmar com relativa margem de segurança de que os fundamentos, as pedras de construção do edifício celular, devem ser procurados  no universo da química inorgânica e orgânica. Em algum momento num passado telúrico distante e nebuloso, o processo da complexificação  envolveu na sua dinâmica, parte dessa matéria prima. É exatamente assim que Teilhard entendeu este “novum” surpreendente:
Com esta expressão significarei, precisamente, a “combinação”; ou seja essa forma particular e superior de agrupamento cuja missão é ligar a si mesmo um certo número fixo de  elementos (poucos ou muitos não importa), com ou sem o contributo auxiliar da agregação ou da repetição, num conjunto fechado,  com raio determinado: o átomo, a molécula, a célula, o metazoário, etc.” (Teilhard de Chardin. 1956, p. 28)
A lógica da complexificação ascendente interrompida por Teilhard na altura do “metazoário”, permite completar o esquema  com os vegetais e suas ramificações, os animais e seus desdobramentos, os símios e suas ramificações, os símios antropóides e, finalmente, o homem. Refletindo sobre essa questão persiste, como pano de fundo, uma pergunta insistente: Em que momento e, antes de mais nada, o que causou o desencadear da “complexificação” da matéria, envolvendo um número fixo de elementos, a terminar num conjunto fechado? Uma tentativa de resposta fica para mais adiante.
Depois de constatar, amparado em experiências científicas objetivas, chegou o momento de identificar e alinhar no tempo a sequência dos elos dessa cadeia. É neste esforço que os cientistas se deparam com obstáculos no momento pelo menos insuperáveis.
O primeiro relaciona-se com a noção  do tempo. As referências das quais nos costumamos valer para ordenarmos a vida no seu quotidiano, ou dividirmos a história do homem, em nada nos podem ser úteis. A complexificação da matéria, a começar pelo átomo, passando pela molécula e a macromolécula e terminando  na célula, consumiu um espaço de tempo gigantesco. Se já é difícil a percepção  real da duração de um século ou milênio, o que dizer de um, dez ou cem milhões de anos? E, quando as cifras passam de um bilhão de anos, a capacidade de a mente humana de lidar com tamanho espaço de tempo, reduz-se ao mínimo. Acontece que a gênese da complexificação e o completar de cada etapa, prolonga-se por inimagináveis dezenas  e centenas de milhões de anos. Um exemplo. A elevação da cordilheira do Andes começou há 60 milhões  de anos, a razão de um milímetro por ano. Ora, 60 milhões de milímetros somam seis mil metros, o que vem a coincidir com a média  dos segmentos mais altos da cordilheira. Temos aqui uma pálida noção da velocidade das transformações em ritmo geológico. É óbvio que a velocidade  das transformações  que ocorreram no decorrer da complexificação químico-biológica, só têm valor como analogia pois, são de natureza diferente. Mas de qualquer forma servem para ilustrar a dificuldade para situar-se em outras  categorias temporais, daquelas em que estamos acostumados  a nos movimentar. Cada passagem de um nível a outro nessa evolução  por “complexificação” ascendente, consumiu milhões, dezenas de milhões, centenas de milhões de anos. Fácil de registrar no papel mas quase impossível de a mente  e a imaginação, acostumados a movimentar-se em ciclos mensais e anuais, formar uma ideia, vaga do que seja ou do que  significa.
Os períodos de longuíssima duração vêm acompanhados por um outro problema insolúvel. Simplesmente não foram conservados registros materiais, como fósseis, que permitem uma reconstituição confiável de como se deram os fatos. Restam, portanto, suposições, especulações, ilações, conclusões, que deixam o cientista responsável e sério com as mãos atadas e obrigado a resignar-se ao “ignoramus et ignorabimus”. Há também  aqueles que não hesitam em pular essas páginas em branco de centenas de milhões de anos da história da terra, como se fossem de menos valia. Os milhões de anos apagaram inexoravelmente os arquivos materiais que registravam aquela história. Recorrendo a uma analogia  imagine-se o seguinte cenário. Se a humanidade desaparecesse   hoje do planeta, o que se poderia esperar dos registros da sua história, daqui a um milhão de anos? Muito pouco além de algum artefato de pedra ou metal não oxidável ou alguma peça óssea petrificada. Tratando-se  da história da transição do estado molecular para o nível da célula, a própria natureza da matéria prima em jogo, faz da  procura de provas materiais para recuperá-la,  “a priori” uma iniciativa condenada ao insucesso.
Embora a história da “complexificação” que precedeu a formação da célula e com ela introduziu o fenômeno da vida  no cenário universal não tenha deixado vestígios, as vias indiretas de aproximação são muito precárias. Entre elas a simulação em laboratório talvez seja a mais promissora. Acontece que esse “promissor” é novamente algo muito relativo. O nível em que se encontram os métodos e as técnicas de pesquisa, não permite  vislumbrar uma forma de simular em laboratório o processo da complexificação que levou milhões de anos. De qualquer forma, suponhamos que essa possibilidade se concretize, a pergunta-chave fica ainda sem uma resposta  definitiva e convincente.
A complexificação acrescida ou não da “agregação” e ou da “incorporação”, resultou, sem dúvida, numa  forma de revolução na maneira “externa” de a matéria  organizar-se. Teilhard fala nesta “revolução externa”:
De um ponto de vista exterior, perspectiva na qual se coloca ordinariamente a biologia, a originalidade essencial da célula parece consistir em ter encontrado uma massa maior de Matéria. Descoberta longamente preparada sem dúvida, pelos tenteios de que saíram pouco a pouco as megamoléculas. Mas descoberta brusca  e revolucionária o bastante para haver encontrado imediatamente na natureza um êxito prodigioso. (Theilard de Chardin. 1986. p. 89)
Examinando mais de perto a citação, duas observações caem em vista. “A originalidade da célula parece consistir em ter encontrado um método novo de englobar utilitariamente um massa maior de matéria”. O que vem a ser esse “método novo”, essa forma inédita de agir da matéria organizada na complexa estrutura da célula?  Fica faltando uma resposta conclusiva. Percebe-se  um esforço permanente da parte de Teilhard, cientista que era, além de filósofo e teólogo, na procura de  respostas a nível científico, até o ponto em que de alguma forma é possível. Já que a falta  de dados empíricos objetivos não permite conclusões  seguras, valeu-se da estratégia de insistir na evidência  que salta aos olhos e deixar sem identificar os processos que foram responsáveis pelas evidências. Na condição de filósofo e teólogo, não se deixou levar pela tentação de resignar-se com um cômodo “ignoramus et ignorabimus” e entregar a responsabilidade da resposta a uma saída pelo “design inteligente”  mais cômodo ainda, ou mandar procurar a resposta no Gênesis. Na falta de uma resposta  a nível científico e frente às respostas pouco convincentes  oferecidas pelo “design inteligente” ou as Sagradas Escrituras, o melhor mesmo deixar a resposta em aberto. Mas Teilhard não se contentou e não entregou os pontos. Arriscou imaginar como uma sucessão de “tenteios”, “erros e acertos” terminou na estruturação das mega moléculas e essas agrupando-se no formato de “sistemas, como dirá Bertalanffy, biólogo contemporâneo de Teilhard, terminaram na célula. E na célula  operou-se a “descoberta brusca e revolucioná  ria o bastante para haver encontrado na natureza um êxito prodigioso”.
O “êxito prodigioso” só pode ser a vida. Simultaneamente com a gênese estrutural da célula, ou quando esta já se completara, pouco importa, aconteceu a Biogênese, a travessia do “Rubicão” que separa a não vida da vida. Na história do Universo registraram-se apenas outros dois momentos de tamanho significado: a origem da Energia, a matéria prima de tudo quanto existe e a Antropogênese. A pergunta pela origem da Energia, a origem da vida (a biogênese) e a origem do homem (a antropogênese), carece de uma resposta radical, definitiva e convincente.  Desafiam a Ciência, a Filosofia e a Teologia para oferecê-la. Pelo que tudo indica nenhum dos campos do conhecimento está em condições de, “a priori”, oferecer um resposta conclusiva. Tanto assim que o próprio Teilhard indica duas vias explicativas possíveis para a questão na sua obra “O lugar do homem na natureza”.
A primeira. Pela via “materialista” num automatismo sui generis de seleção natural, impelindo a Matéria a enredar-se e a rolar cada vez mais depressa, como uma bola de neve, pelas ravinas de uma complexidade sempre crescente. A segunda. Pela via “espiritualista” procurá-la numa expansão de consciência, tendendo à consciência, invencivelmente, a acabar-se  até o fim, mas só o podendo conseguir na condição de criativamente arrumar, ou seja, centrar cada vez mais a matéria à sua volta?  Nunca como na primeira explicação, cada vez mais consciência no Mundo, porque cada vez mais complexidade (fortuitamente realizada; mas cada vez mais complexidade (preparada), porque cada vez  mais consciência (gradativamente emergida.  (Teilhard de Chardin. 1956. p. 43-44)
Como não podia deixar de ser, Teilhard prepara o caminho  para a solução do impasse em direção à “via espiritualista”. Fique claro que ele, como não podia deixar se ser, pois, aborda o problema como cientista, não se utiliza do conceito teológico da criação, ou “causa suficiente”, por sua vez um conceito filosófico, mas se vale  de conceitos compatíveis com a linguagem científica. A organização, a evolução da matéria a partir dos estágios mais simples até os altamente  estruturados e organizados, encontrou na “complexificação” a sua explicação. As construções cada vez mais complexas que terminaram na célula viva, não resultaram do encontro de um número crescente de elementos  que se somam e agregam. Contam como dinâmica formadora da integração, da complementariedade, do interagir de átomos, moléculas e macromoléculas. Anima o processo todo a “consciência” que estimula a matéria em busca de uma complexificação crescente e esta, por sua vez, permite que a consciência possa manifestar-se, também em plenitude sempre maior: “Cada vez mais complexidade (preparada), porque cada vez mais consciência (gradualmente emergida”).  Fica claro, portanto, que o caminho que culminou na célula e na vida, ou possibilitou a vida na célula, coube à consciência que imprimiu ritmo e rumo à matéria que compõe o Universo.
Já que o conceito “consciência” é de tamanha importância para Teilhard, requer-se  uma compreensão clara do que ele fala. O tradutor e comentador de “O Fenômeno Humano” José Luiz Archanjo, explica numa nota o conceito:
Consciência, enquanto fenômeno, isto é, enquanto manifestação evidente da interioridade, de dentro, designa, para Teilhard, qualquer forma de psiquismo, desde a mais diluída e elementar (os tatismos dos unicelulares, por exemplo) até a mais concentrada e complexa (a reflexão humana); a consciência reflexiva. O termo é, pois, voluntária e intencionalmente generalizado por Teilhard. (Teilhard de Chardin.  1986. p. 67)
A justificativa, ou melhor a compreensão  do significado e a importância do conceito de “consciência” torna-se por assim dizer, o elemento-chave para entender o universo de Teilhard. A matéria que o compõe caracteriza-se  pela pluralidade, pela unidade e pela energia.
Que o universo como um todo e as partes que o compõem é plural, até a observação do homem comum percebe. Os minerais são múltiplos, os biontes são múltiplos, os vegetais são múltiplos, múltiplos são os animais e múltiplo é o próprio homem. Essa multiplicidade, entretanto, na base do universo, agrega-se em  unidades cada vez maiores e mais complexas. Ficando com a conceituação de Teilhard, pode-se imaginar essa arquitetura na escala ascendente em busca de uma unidade superior, percorrendo o caminho da “complexificação”, complementada pela “agregação” e a “incorporação”. Uma duna de areia é formada por bilhões de grãos de areia que se acumulam por simples agregação, assim como uma pilha de tijolos ou uma montanha de grãos de cereais. Um cristal cresce pela incorporação na sua rede de sempre mais moléculas da mesma natureza química. O desenvolvimento do organismo vivo     dá-se por “complexificação. Não se exclui na sua gênese, nem a agregação, nem a incorporação, mas como mecanismos complementares e auxiliares. A agregação e a incorporação que foram suficientes para entender  a formação de uma duna de areia, ou o “crescimento” de um cristal, já não o são para entender a natureza do processo que deu origem à célula viva, à planta superior, o animal e, muito menos o homem.
Para melhor entender a natureza do processo da complexificação na natureza, faz-se necessário observar o que acontece a nível atômico e mesmo subatômico. A clivagem da matéria até onde os métodos empíricos de hoje o permitem, leva ao átomo com sua estrutura submicroscópica. O mistério da sua estrutura  e dos seus potenciais energéticos parecem revelados pela ciência, ao menos em linhas gerais. O observador apressado corre o risco de achar que não está longe o dia em que já não haverá mais o que descobrir. E, com isso, o homem terá em mãos  a chave para controlar e disciplinar em seu favor as forças básicas que regem o universo.
Não é esta a conclusão a que chega Teilhard. O átomo ou as partículas subatômicas, por mais identificadas e identificáveis que possam parecer, mostram uma outra dimensão. Sua identidade física e química representa apenas a metade da verdade, a verdade mensurável, a metade dissecável, a metade passível de clivagem. A outra metade aponta para o que o átomo, a molécula tem algo de co extensivo ao menos potencialmente. Teilhard fala em “estranha propriedade que reencontraremos mais adiante até na molécula humana”. (Teilhard de Chardin.  1986. p. 42). E numa tentativa de tornar inteligível o seu raciocínio propôs a saída, valendo-se do conceito de “unidade coletiva”, entendendo-a como:
Os inumeráveis focos que partilham entre si um dado volume de matéria nem por isso são independentes uns dos outros. Algo os religa  mutuamente, algo que os torna solidários. Longe de se comportar como um receptáculo inerte, o espaço preenchido por sua multidão age sobre ela à maneira de um meio ativo de direção e transmissão, no seio do qual sua pluralidade se organiza. Simplesmente adicionados ou justapostos, os átomos não constituem ainda a Matéria. Engloba-os e cimenta-os uma misteriosa identidade contra a qual o nosso espírito se choca sendo, porém, finalmente forçado a ceder. A esfera acima dos centros e envolvimentos.  (Teilhard de Chardin. 1986. p. 42-43).

Em todos os passos ascendentes da evolução  da Matéria, até culminar na Antropogênese e, porque não, mais acima e além, essa propriedade misteriosa desafia a curiosidade do observador. O que leva o encontro de átomos a formar  uma molécula? A composição de moléculas uma célula, um bionte unicelular? Protozoários formar metazoários, metazoários animais e vegetais, animais símios?, símios em antropóides? e, finalmente, antropóides em humanos? Orientando a questão numa outra direção e, recorrendo a uma analogia, parece legítimo formular perguntas como: O que faz com que um conjunto de solos, situações climáticas, microorganismos, ervas, arbustos e árvores, formem uma floresta? O que há a mais numa sociedade de formigas e sua associação simbiótica com  acarídios ?. O que faz com que uma unidade ecológica  associe plantas, insetos, pássaros, animais, solos e microorganismos, num sistema, semelhante a um organismo? O princípio comum e inicial no qual é preciso procurar as respostas para as perguntas formuladas acima é, segundo Teilhard, a “Energia”.