Teilhard de Cahrdin
-3
A Biogênese
No esquema
Teilhardiano a “Energia” é a terceira
face da Matéria. A Matéria mostra uma dimensão plural, uma dimensão de “unidade homogênea” e uma dimensão de energia.
Para a física a Energia consiste na capacidade de ação ou interação. Ela
representa, portanto, o fluxo entre um átomo e outro, no decorrer do processo
de intercâmbio entre eles. Cabe-lhe a função de interligar e, ao mesmo tempo,
como nesse fluxo o átomo, de um lado se empobrece e, do outro, é enriquecido,
cabe-lhe também a função de construção. E o resultado desse processo de
construção, cujo motor vem a ser a energia, em que à complexificação cabe a
responsabilidade principal e à agregação e a incorporação o papel complementar,
sucedem-se os passos do átomo à molécula, da molécula a macro-molécula, da
macro-molécula a megamolécula, da megamolécula a célula. E chegado a este nível da evolução ou da
complexificação da matéria, aconteceu “o
passo da vida”, o passo do inanimado para o animado, do orgânico para o vivo.
Materialmente, olhando de fora, o melhor que
podemos dizer neste momento é que a vida
propriamente começa na célula. Quanto mais a ciência concentra, desde há
já um século, seus esforços sobre essa unidade, quimicamente e estruturalmente
ultra-complexa, mais evidente se torna que nela se dissimula o segredo cujo conhecimento estabeleceria a ligação,
pressentida mas não realizada ainda, entre os dois mundos da Física e da
Biologia. A célula, grão natural da vida,
assim como o átomo é o grão natural da Matéria inorganizada. É certamente a
célula que temos de tentar compreender se quisermos avaliar em que consiste
especificamente o Passo da Vida. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 84).
É neste ponto que
a ciência se vê às voltas com o mesmo desafio, quem sabe bem maior ainda
daquele que lhe é posto pela pergunta: Como se originou a Energia,
presumidamente a realidade que explica a
existência do universo e dos processos
que lhe deram forma. Os estudos sobre a célula renderam até o momento um volume
enorme de publicações em todos os níveis.
Bibliotecas especializadas inteiras já não são
suficientes para conter as observações acumuladas sobre a sua textura, sobre as
funções relativas do seu “citoplasma” e do seu núcleo, sobre o mecanismo da sua
divisão, sobre as suas relações com a hereditariedade. E, no entanto,
considerada em si mesma, ela continua aos nossos olhos exatamente tão
enigmática, exatamente tão fechada como sempre. É como se, tendo chegado a
certa profundidade de explicação, girássemos, sem avançar mais, em torno de
algum impenetrável reduto. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 84-85)
Nos mais de sessenta anos que se passaram
desde o momento em que Teilhard de Chardin escreveu essa observação, a incursão
para dentro do âmago da célula avançaram de modo significativo. Os
conhecimentos sobre os componentes químicos que formam a célula, os processos e
as inter-relações que neles acontecem,
ampliaram em muito o conhecimento sobre a sua morfologia, sua química e funcionamento. Lembramos apenas até que ponto
avançaram os conhecimentos consolidados no campo da genética. O genoma, o
centro do interesse nessas pesquisas, parece esconder pouco da sua natureza
físico-química e do papel que lhe cabe no complexo campo da hereditariedade. Um
a um os genomas das mais diferentes espécies vão sendo mapeados, permitindo a
intromissão e interferência no comportamento e na transmissão de caracteres,
tanto desejáveis quanto indesejáveis. O mapa genético do homem disponível há
vários anos, abriu as portas para o controle ou
cura de males hereditários, para prevenir a propagação de caracteres
negativos e favorecer positivos. Por mais que se possa sonhar em penetrar nos
recessos últimos da célula, uma coisa parece certa. Para os métodos e meios da ciência empírica há um limite. E
mesmo olhando do viés das Ciências,
teremos dado conta apenas da metade do problema. Na busca de uma
compreensão do que de fato conta no estudo da célula encontra-se na resposta à
pergunta: de que natureza é o algo a mais que distingue uma célula de uma
megamolécula? Parece difícil que a resposta nos possa ser dada pelo desvendar
nos últimos recessos da sua estrutura e do seu funcionamento. E o que fazer então quando os métodos histológicos e fisiológicos de
análise já nos tiverem dado o que
podiam? A esta altura é importante não
perder de vista que a abordagem da
célula até aqui tentada, ateve-se ao viés biológico. A célula costuma ser vista como um “micro-organismo”
ou um “broto-vivo” que importava ser entendido a partir de suas “formas e
associações mais elevadas”.
Ora, assim procedendo, deixamos pura e simplesmente na sombra a metade
do problema. Como um planeta no seu quarto-crescente, o objeto de nossas
pesquisa iluminou-se na face voltada para os cumes da vida. Mas, nas camadas
inferiores do que chamamos Pré-Vida, ele continua a flutuar na noite. Eis
provavelmente o que, cientificamente
falando, prolonga indevidamente para nós
o seu mistério. Exatamente como qualquer
outra coisa no Mundo, a célula, por mais maravilhosa que nos pareça em seu
isolamento entre outras construções da Matéria, não poderia ser “compreendida” (isto é, incorporada num
sistema coerente do Universo) senão
recolocada entre um Futuro e um Passado, numa linha de evolução.
Ocupamo-nos demais de suas diferenciações, de seu desenvolvimento. É
sobre as suas origens, isto é, sobre as
raízes que ela mergulha no inorganizado, que convém agora fazer convergir
nossas pesquisas, se quisermos atingir a verdadeira essência de sua novidade
Em oposição o que a experiência nos ensina em todos os outros domínios,
habituamo-nos ou resignamo-nos demais a conceber a célula como um objeto sem
antecedentes. Procuremos ver o que ela vem a ser, se a olharmos e a tratarmos,
devidamente, como um coisa ao mesmo
tempo longamente preparada e profundamente
original, isto é, como uma coisa nascida. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 85)
Em seguida Teilhard procura explicar “o longamente preparado e o
profundamente original, isto é, a coisa
nascida”. Os dados obtidos pelas pesquisas nos diversos campos da História
Natural, deixam claro que há uma combinação orgânica entre as dimensões de
tempo e espaço. A dispersão no
espaço tem uma relação direta com a
duração temporal. Em outras palavras. Toda a dispersão espacial acontece numa
duração temporal compatível. O mesmo se pode afirmar da diversificação
morfológica. Quanto mais diversificada e mais profunda ela for tanto mais tempo
se requer. E no caso da célula não há o que discutir sobre a profundidade e a extensão da
“complexificação” que precedeu e acompanhou a sua gênese. Colocando o processo
numa perspectiva evolucionista, conclui-se que o tempo necessário no caso da
célula, cobre centenas de milhões para não dizer bilhões de anos. Convém
lembrar mais uma vez que em espaços de tempo tão descomunais, que desafiam
seriamente a nossa capacidade de avaliá-los no seu significado, os passos
sucessivos que levaram a “complexificação” a resultar na célula, apagaram-se
sem deixar vestígio. Sobra-nos avaliá-los ou imaginá-los, ou por analogia com
que pode ser observado na natureza de hoje, ou tentar uma aproximação filosófica, examinando a pertinência de
introduzir na discussão questões e conceitos como “causalidade suficiente” e
outras mais.
Se de um lado o caminho percorrido pela
evolução cobre períodos e eras que escapam à nossa capacidade de apreensão do
tempo e, ao mesmo tempo, apagaram os vestígios materiais do processo, a célula
apresenta duas características notórias como resultado histórico do passado
ignoto e obscuro. A arquitetura da célula “é
complexa” e, ao mesmo tempo “é fixa”. A análise química da célula revela que na
sua estrutura entram albuminas, aminoácidos, lipídios, água, fósforo e sais
minerais, com destaque para o potássio, o sódio, magnésio e outros. Esse
conjunto de elementos forma a base do protoplasma. Nele a viscosidade, a
osmose, a catálise e outras forças agem e interagem, demonstrando que a matéria
alcançou um estágio superior de organização molecular. Mas a coisa não para por
aí. No âmago, no centro, destaca-se, na imensa maioria dos casos um núcleo que
encerra os cromossomos, os mitocôndrios e outras estruturas que vão sendo
identificadas na medida em que os microscópios e outros meios de observação
permitem penetrar cada vez nas entranhas da célula e suas subestruturas. Teilhard conclui suas observações sobre a complexidade
da célula com as palavras: “Um triunfo da multiplicidade organicamente
concentrada num mínimo de espaço”. (cfr. Teilhard de Chardin. 1986. p. 89).
A complexidade da célula vem complementada
pela fixidez. Uma observação menos
atenta corre o risco de não perceber que na imensa diversidade e pluralidade
das formas que a natureza oferece, na sua essência a natureza da célula sempre
permanece a mesma. Na sua complexidade e na sua fixidez a célula coloca o observador diante de um
dilema. Por analogia ela se enquadra no mundo dos seres vivos ou no mundo dos
não vivos. Ou quem sabe representa na
arquitetura terrestre um estágio específico, uma forma particular dentre as
outras? Diante dessa interrogação Teilhard faz
a seguinte reflexão:
Diante dela o nosso pensamento
hesita em lhe procurar analogias no mundo do “animado” ou no mundo do
“inanimado”. Não se parecem as
Células entre si como moléculas, mais do que como animais? ...
Consideramo-las legitimamente como as
primeiras das formas vivas. Mas não
seria também justamente verdadeiro considerá-las como representando um outro estado da
Matéria: algo também tão original, em sua ordem, quanto o eletrônico, o
atômico, o cristalino ou o polímero. Um tipo de material, para um novo
andar do Universo? A célula,
simultaneamente, tão una, tão uniforme e tão complicada, é em suma o Estofo do
Universo que reaparece com todos os seus caracteres, - mas desta vez elevado a
um escalão ulterior de complexidade e, por conseguinte, ao mesmo tempo (se é
válida a hipótese que nos guia ao longo destas páginas), a um grau superior
de interioridade, quer dizer de
consciência. (Teilhard de Chardin. 1986 p. 89-90)
A interioridade ou a consciência no
sentido mais genérico de Teilhard, intensifica-se, torna-se mais consistente e,
por isso mesmo aperfeiçoa-se na razão direta da complexificação das estruturas.
Cada passo adiante na complexificação vem acompanhado de uma interioridade ou
consciência mais apurada. Na medida em que a interioridade por assim dizer se
condensa e, consequentemente a consciência se apura, potencialidades novas e
qualitativamente superiores se manifestam. E acontecem momentos nesse processo
em que a complexificação resulta em saltos que chegam a desafiar a lógica dos
acontecimentos rotineiros. O primeiro desses momentos situa-se exatamente no
“marco zero” do universo. O consenso admite que a matéria prima do
universo é a energia. Parte-se assim de
uma realidade dada. A ciência foi capaz de identificar, catalogar, calcular e
descrever os potenciais da energia e, a partir desses dados objetivos propor
explicações para a estrutura e o funcionamento do universo. O que fica em
aberto é uma resposta convincente sobre a origem da energia. Supondo que a
ciência localize dados objetivos que, na verdade, se trata de um estágio mais
avançado de alguma realidade material ainda desconhecida, nada mais acontece do
que deslocar a resposta para um outro nível e um outro momento cronológico. De
qualquer forma ficamos à espera de uma resposta convincente que até agora não
foi dada.
A compreensão da natureza íntima da célula
coloca-nos frente a um desafio semelhante ao da energia do qual nos acabamos de
ocupar. Os elementos químicos, o arranjo
estrutural, as múltiplas funções e as leis que comandam os processos
intracelulares, são em grande parte do domínio da ciência. A questão realmente
de fundo permanece na sombra e desafia os cientistas que se ocupam com
seriedade em elucidá-la. Neste particular a pergunta-chave é: Se a célula é de
fato um ser vivo, o que vem a ser a Vida?. Teilhard de Chardin faz um esforço
enorme como cientista para aproximar-se da resposta pelo lado da ciência. Para
ele o aparecimento da célula é algo de novo, de muito novo quando começou a fazer parte do cenário da terra em evolução.
É com os inícios da Vida organizada, ou seja, com o aparecimento da
Célula, que concordamos habitualmente em
fazer “começar” a vida psíquica no Mundo. Coincide, pois, aqui com as
perspectivas e maneira de falar usuais,
ao situar nesse estádio particular da Evolução um passo decisivo nos progressos
da Consciência sobre a Terra. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 90)
Teilhard
faz um grande esforço para aproximar-se da explicação do que, em última
análise, vem a ser aquele “Novum”, que chamamos de vida, que começou a manifestar-se quando a “complexiificação
ultrapassou o nível megamolecular. Partiu da constatação que ocorreu uma
“revolução externa” responsável pela construção do edifício molecular. Essa
revolução externa conta na sua base com os elementos químicos que entram na
edificação do edifício da natureza, tanto inorgânica quanto orgânica: oxigênio,
nitrogênio, hidrogênio e carbono, somados a outros vinte e tantos elementos
como cálcio, ferro, fósforo, iodo, cobalto, potássio, sódio, magnésio, metais
diversos, etc., de alguma forma
participantes nos diversos processos e funções celulares específicas.
Combinações e recombinações desses elementos, levam pela “complexificação”
ascendente, à formação de moléculas inorgânicas, mais adiante orgânicas mais simples, para passar
pelas macromoléculas, megamoléculas e, finalmente, a célula.
Morfologicamente falando a célula
apresenta duas partes distintas: o citoplasma e o núcleo. Na sua composição
entram aminoácidos de enormes pesos moleculares, lipídios, carboidratos, sais
minerais, ... Tudo forma o protoplasma com aparência esponjosa. Nele atuam os
processos de osmose, viscosidade, de catalise e de outras mais. E no interior
destaca-se o núcleo contendo os cromossomos
que por sua vez abrigam o genoma. Resumindo pode-se afirmar com Teilhard: “Um
triunfo da multiplicidade organicamente concentrada num mínimo de espaço”.
(Teilhard de Chardin. 1986. p. 89)
“A revolução interna” que levou a matéria
a combinar-se e a recombinar-se dando
origem à célula não chegou a lançar dúvidas sobre a “fixidez” que constitui o elemento chave que
garante a unidade da natureza. Os
elementos químicos universais, aos quais
se fez referência mais acima, continuam formando a base do anorgânico,
orgânico não vivo e do orgânico vivo, exatamente com se ensinou desde os
primórdios da química como ciência sistematizada. De outra parte as células são
essencialmente idênticas entre si, estrutural e funcionalmente, entre os protozoários e os metazoários em
qualquer organismo, independente da complexidade anatômica e estrutural. A identidade celular, que aqui chamamos de
“fixidez” é, ao mesmo tempo, estrutural e funcional. Tanto faz se observamos a
célula que forma o protozoário ou alguma célula fazendo parte de um órgão, de
algum animal superior. Em ambos os casos as funções vitais, o processamento dos
nutrientes, a sua assimilação, incorporação, oxidação e a eliminação dos
resíduos é igual. Qualquer célula, em qualquer situação é idêntica a todas as
demais e a si mesma, na estrutura, nas funções que nela acontecem, na condição
de funcionar como um sistema de equilíbrio instável. E o espetacular é que
todas de alguma maneira manifestam “vida”, à sua maneira em cada nível. Nos
protozoários todas funções vitais acontecem numa e na mesma célula. Nos
metazoários as funções específicas acontecem em células especializadas e em
tecidos e órgãos também específicos. Mas é importante não esquecer que o mais
complexo dos organismos vivos ou teve, ou tem o seu ponto de partida numa única
célula embrionária que naquele estágio inicial se encarrega de todas as funções
exatamente como acontece no protozoário. E não se esqueça ainda de que os
estudos sobre as células-tronco já nos permitem afirmar que qualquer célula
adulta, não perdeu o potencial da
embrionária que possibilitou indiretamente a sua origem dentro de organismo
superior.
A “revolução externa” pela
“complexificação” e pela “fixidez” constituiu-se, sem dúvida, no pressuposto
material e estrutural para que o outro processo, o da “revolução interna”,
pudesse acontecer. Firmou-se o consenso entre os cientistas de que a vida
manifestou-se pela primeira vez na história da terra numa célula, como há
consenso também que a vida em todos os níveis tem a sua base nas células. Nelas
acontecem os processos de natureza físico-química que permitem a manifestação
da vida, ou concentrados numa única célula como nos protozoários ou
seletivamente nos órgãos especializados dos metazoários. A questão de fundo que a essa altura se
coloca, é: De que natureza foi, em última análise, essa “revolução interna?”
Teilhard esforça-se por manter-se coerente com a sua visão unitária do universo
e da natureza. Tudo começou num ponto de partida – o Alfa. A partir dele por
processos conhecidos e, principalmente, ignorados até agora, formaram-se os
elementos estruturais da natureza constantes na “tábua periódica” e,
provavelmente, outros ainda por descobrir. A “complexificação” ascendente
completada com o contributo auxiliar ou
não da “agregação e ou repetição, prepara o cenário, no qual vão-se definindo,
de forma progressiva e cada vez mais nítida, evidências de algo imanente no
interior da matéria na medida em que ela se
complexifica. A imanência que se
refere a uma “interioridade”, a uma “consciência” em vias de explicitação, que se torna mais evidente na razão direta em
que a matéria evolui para patamares cada vez mais complexos, coloca o cientista
e, porque não o filósofo, diante de um desafio de bom tamanho. Definir a
relação causal entre esse “algo imanente” e a maior ou menor complexidade
estrutural na qual se manifesta. Teilhard dimensionou o desafio quando
escreveu:
Nesse ponto, confesso, é difícil ser claro. Mais adiante, no caso do Pensamento, uma
definição psíquica do “ponto critico
humano” revelar-se-á de pronto possível, porque o Passo da Reflexão carrega em
si algo de definitivo, e também porque, para avaliá-lo, temos senão que ler no
fundo de nós mesmos. No caso da célula, pelo contrário, comparada aos seres que a precedem, a introspecção só
pode nos guiar por analogias repetidas e longínquas. Que sabemos nós da “alma” dos
animais, mesmo dos mais próximos de nós? A tais distâncias para trás, temos que
nos resignar com o vago em nossas especulações.
Nessas condições de obscuridade e nessa margem de aproximação, três
constatações são ao menos
possíveis, - suficientes para fixar de um modo útil e coerente a posição do
“despertar da célula” na série de transformações psíquicas que preparam sobre a terra o
aparecimento do fenômeno humano. “Mesmo” e, acrescentarei “sobretudo” nas
perspectivas aqui admitidas, a saber que
uma espécie de consciência sobretudo precede a eclosão da Vida, um tal
despertar ou salto 1) pode , - ou melhor
2) deve ter-se produzido; e assim 3) acha-se parcialmente explicada uma das mais extraordinárias
renovações historicamente experimentadas
pela face da terra. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 90)
Nas entrelinhas do texto citado fica claro
que Teilhard faz um esforço fora do comum para encontrar uma resposta coerente
e aceitável à pergunta que formulamos, a respeito da relação causal entre a
complexidade estrutural da célula e a gênese da imanência, da interioridade, da
consciência. Sua intenção e seu esforço em aproximar-se da explicação pelo viés
científico não deixa dúvidas. Aliás essa opção é coerente com a opção
metodológica que orienta as abordagens do “Fenômeno Humano” em toda a sua
extensão. De outra parte não consegue mascarar de todo a sua condição de
filósofo, teólogo e jesuíta que, com certeza, o lembram consciente ou
inconscientemente dos compromissos com a fé, a doutrina e os princípios
filosóficos que pautaram a sua vida como religioso. Essa situação faz com
que se esforce e se demore na
apresentação de dados, invocar processos,
tirar conclusões e, principalmente, criar um corpo conceitual muito seu
para dar coerência, solidez e confiabilidade à sua cosmovisão. Às voltas com a
dificuldade de formular uma resposta pelo caminho da ciência sobre a verdadeira
natureza do passo que aconteceu na
transição do não vivo para o vivo, ele se pergunta:
E agora consideremos novamente, à luz destes princípios, o assombroso
espetáculo apresentado pela eclosão
definitiva da Vida na superfície da Terra Juvenil. Esse ímpeto para
frente na espontaneidade. Esse luxuriante desencadeamento de criações
fantasistas. Essa expansão desenfreada.
Esse salto no improvável ... Não está exatamente aí o acontecimento que a
teoria nos permite esperar? A explosão de energia interna consecutiva e
proporcionada a uma super-organização fundamental da Matéria? (Teilhard de
Chardin. 1986. p. 91)
Continuando, formula a resposta para a manifestação da Vida na “super-organização
fundamental da Matéria, a qual, entretanto, deixou em aberto a questão crucial:
qual a causa última responsável pelo surgimento
da vida na célula? “( ... ) Por essa dupla e radical metamorfose podemos razoavelmente definir, naquilo que ela tem de
especificamente original, a passagem da
Molécula para a Célula, - o Passo da Vida”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 91).
A explicação que lança uma luz sobre a
aparente resistência em formular a resposta à pergunta que vai-se se tornando
cada vez mais insistente na medida em que se avança no exame tanto do “Fenômeno
Humano” quanto no “O Lugar do Homem na Natureza”, data de um documento escrito
em Pequim em fevereiro de 1942.
1. “Como foi explicado no Prefácio, este trabalho não é um livro de religião,
nem mesmo de filosofia. Rigorosamente escrito como uma memória de geologia ou de paleontologia, ele
representa, no meu pensamento, uma contribuição científica para o uso da
Ciência: um esforço para ordenar melhor o nosso conhecimento físico do Mundo,
abrindo ao Homem um lugar coerente até o fim, na Biologia.
2. Por conseguinte, que ninguém se espante se nestas páginas, limitadas
(é sua força) ao estudo de um “fenômeno”, não aparecem quaisquer considerações
sobre a natureza ontológica do espírito e da matéria, nem qualquer menção das
verdades reveladas (Queda, Encarnação, Criação) ...,) Essas verdades não são
nem negadas nem esquecidas, não teriam o seu lugar nem lógico, nem psicológico.
3. Essa omissão, ademais, é só aparente. Se (em conformidade aos
ensinamentos do concílio do Vaticano) eu chego, seguindo o caminho racional e
científico, apenas a uma “demonstração” aproximada da existência de um Deus
pessoal, tenho pelo menos uma certa confiança que as perspectivas desenvolvidas
no livro formam um quadro e transmitem uma atmosfera favoráveis que predispõem
os espíritos a esperar e reconhecer uma Revelação. (Teilhard de Chardin.
1986. p. 376)