Teilhard
de Chardin - 2
Para Teilhard a biogênese confunde-se com
a citogênese. A célula é a realidade viva fundamental. Nela podem ser
observados os fenômenos essenciais que caracterizam a vida. É, portanto, na
história e nos processos de sua gênese que se ocultam as respostas para as
peculiaridades e a própria natureza da vida.
É fantástico o que se pesquisou e o que já se descobriu sobre a estrutura,
composição, funcionamento e funções, como se processa a divisão, qual a relação
com a hereditariedade, com o equilíbrio funcional do organismo. O aprimoramento
dos métodos e tecnologias cada vez mais refinadas, permite penetrar sempre mais fundo
nas entranhas misteriosas da célula. Cada dia que passa novas e
inesperadas revelações surpreendem os pesquisadores. Passo a passo identificam-se nesse micro-universo as trilhas que levam a
desvendar processos que permitem
decifrar o que acontece nas raízes mais
profundas do fenômeno da vida. Conhecimentos consolidados, métodos confiáveis e
tecnologias seguras permitem com êxito
crescente, a sua utilização na medicina,
na esfera legal, no plano da saúde e em muitos outros campos práticos. Está aí
para prová-lo o mapeamento dos códigos genéticos, o desenvolvimento de
transgênicos, a identificação pelo DNA,
a esperança já em vias de se tornar realidade do tratamento de doenças
hereditárias ou de predisposição hereditária. O ritmo e a profundidade da
investigação no âmago da célula, melhor talvez, nos arcanos da vida, promete
incontáveis e insuspeitadas surpresas.
Milhares, dezenas de milhares, centenas de
milhares, milhões de páginas escritas contam a história das incursões dos
cientistas, nesta fantástica e promissora fronteira de exploração que é a
célula.
A essa altura Teilhard de Chardin
recomenda uma pausa, uma parada para a reflexão. Não se trata de um convite
para frear o entusiasmo e o ritmo da pesquisa ou, quem sabe, uma atitude “estraga prazer”. Cientista como
foi e como filósofo e teólogo que também
foi, deixou seguinte reflexão:
Escreveram-se já volumes e
volumes sobre a célula. Bibliotecas
inteiras já não são suficientes para
conter as observações minuciosamente acumuladas sobre a sua textura, sobre as
funções relativas do seu “citoplasma” e
do seu núcleo, sobre o mecanismo da sua divisão, sobre as relações com a hereditariedade. E, no entanto,
considerada em si mesma, ela continua aos
nossos olhos exatamente tão enigmática, tão fechada como sempre. É como
se, tendo chegado a uma certa profundidade de explicação, girássemos, sem
avançar mais, em torno de algum impenetrável reduto.
Não seria que os métodos histológicos e
fisiológicos de análise já nos deram o que deles podíamos esperar,
devendo o ataque agora, para progredir,
ser retomado sob um novo ângulo?
De fato, e por razões óbvias, até
aqui, a Citologia construiu-se quase
inteiramente, a partir de um ponto de vista biológico: sendo a célula
considerada como um micro-organismo ou um proto-vivo que cumpria interpretar em
relação às suas formas e às suas associações mais elevadas.
Ora, assim procedendo, deixamos pura e simplesmente na sombra a metade do problema. Como um
planeta no seu crescente, o objeto de nossa pesquisa iluminou-se na face
voltada para os cumes da vida. Mas, nas camadas inferiores do que chamamos a
Pré-Vida, ele continua a flutuar na noite. Eis provavelmente o que, cientificamente falando, prolonga indevidamente para nós o mistério. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 84-85)
De fato o que a Ciência conseguiu realizar nos pouco mais de 50 anos que se
seguiram à morte de Teilhard de Chardin, foi penetrar fundo “na metade do
problema”. Isto é a célula foi e está sendo vasculhada até nos seus componentes
estruturais mais ínfimos, nas funções de cada um deles, nas relações mútuas e
no significado de cada um deles em particular e no seu todo. A composição do
citoplasma, dos mitocôndrios com suas respectivas funções são do conhecimento
da Ciência. O mesmo pode afirmar-se dos cromossomas. Sua composição, estrutura
e funcionamento já não são mistério. Tanto assim que o mapeamento do genoma
humano e de uma outra série de animais, plantas e micro organismos, já foi
concluído. E com este importante passo franquearam-se as portas para interferir
nas micro estruturas e manipular e controlar as suas funções. De momento não há como avaliar o tamanho do caminho a
ser percorrido ainda, até que neste plano tudo esteja esclarecido. Entretanto,
o ritmo em que as investigações avançam, permite prever não só a possibilidade
de chegar até lá, como não deixar mais dúvidas
sobre a natureza biológica da célula como a sede da vida.
Acontece que no momento em que a Ciência
estiver em condições de anunciar mais essa façanha: “a metade do problema”
estará solucionado. A “outra metade” a
que Teilhard se reporta, vem a ser muito mais complexa e muito mais problemática
para ser resolvida. Até aqui a célula foi dissecada, seus mecanismos de
funcionamento identificados e, até certo ponto, postos sob controle. Mas,
conforme Teilhard
Como qualquer outra coisa no mundo, a célula por mais maravilhosa que
nos apareça no seu isolamento entre outras construções da Matéria, não poderia
ser compreendida (isto é, incorporada
num sistema coerente do Universo) senão recolocada entre um Futuro e um
Passado, numa linha de evolução. (Teilhard de Chardin. 1986, p. 85)
Situar a célula na sua devida dimensão
entre um Passado e um Futuro, significa passar a iluminar e começar a entender
a “outra metade”. Esse passo implica em responder a duas questões, tão ou
mais cruciais, do que entender a composição, estrutura e funcionamento de um
lado e, do outro, procurar uma compreensão objetiva da sua gênese, do seu
fazer-se na perspectiva da evolução. Na verdade é neste plano que se interpõem
desafios de difícil enfrentamento. Teilhard resumiu nos seguintes termos a questão:
Em oposição ao que a Ciência nos ensina em todos os outros domínios,
habituamo-nos ou resignamo-nos demais a conceber a célula como um objeto sem
antecedentes. Procuramos ver o que ela vem a ser, se a olharmos e tratarmos,
devidamente, como uma coisa ao mesmo tempo longamente preparada e profundamente original, isto é,
como uma coisa nascida. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 85)
Na perspectiva da sua inserção no
Universo, a célula é uma realidade “longamente preparada”. Vista sob esse
prisma a célula situa-se, como realidade de transição, entre o plano das
macromoléculas e os protozoários e metazoários. O que importa à essa altura é vislumbrar e entender de alguma
forma, essa transição, essa superação de plano, de estágio, de etapa. Em outras
palavras, é o momento de acompanhar desde o nascedouro o acontecer desse elo
entre o orgânico e o vivo, entre o pré-vivo e a vida propriamente dita.
Nesse esforço para entender a ascensão evolutiva de tamanho significado,
duas incógnitas dificultam o caminho. A primeira relaciona-se com a cronologia
terrestre. Em primeiro lugar é preciso livrar-se da armadilha de pensar em
categorias cronológicas do nosso quotidiano, quando se trata de lidar com
durações que cobrem eras geológicas.
As evidências apontam para um fato que a cada
dia que passa, reúne um número crescente
de constatações científicas a seu favor. As passagens de um patamar de
complexidade química e ou biológica não
acontecem aos saltos. Só se dão no mais autêntico modelo e ritmo evolutivo. No
bojo de um determinado estágio, da macromolécula, por ex., estabelecem-se condições favoráveis para o
desencadear de uma complexificação em direção a um nível mais elevado. No
âmbito molecular e, a partir do seu próprio potencial, começa, por assim dizer,
um pulsar novo da matéria, que acelera a complexificação e, com o correr do
tempo, leva a um estágio mais elevado e mais adiantado. No nosso caso do
estágio macromolecular, não é ele no seu todo que ascende a um novo patamar,
mas uma parte ativada por um novo impulso evolutivo, gerado no seu interior. Em
outras palavras, o patamar do universo macromolecular continua existindo. O que
aconteceu é que em suas entranhas gestou-se o gérmen de uma nova dinâmica. Pela
complexificação acelerada e ascendente, resultou um novo patamar, o Celular. Se
essa mudança implicou numa transformação de natureza no sentido filosófico, é
uma questão a ser analisada mais adiante.
Constata-se nesse processo que as raízes de um patamar de complexidade da
natureza mergulham, a perder de vista, no anterior. Ao mesmo tempo, em algum
momento e, em condições a serem identificadas, desencadeia-se um novo fermentar em busca de um novo patamar mais
acima e mais além: da macromolécula à célula, da célula ao protozoário, do
protozoário ao vegetal e animal, do animal ao mamífero, do mamífero ao
antropóide e, finalmente, do antropóide ao homem. Teilhard comentando essa
dinâmica, assim se expressou:
Sem exagero, tal como o homem se funda, anatomicamente, aos olhos dos paleontólogos, na massa dos
mamíferos que o precederam, assim também, no sentido descendente, a célula se
afunda, qualitativamente e quantitativamente, no mundo dos edifícios químicos.
Prolongada imediatamente atrás de sim mesma, converge visivelmente para a
molécula. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 86)
Uma série de evidências objetivas reforçam
a convicção de que as raízes da célula descem, até as profundezas dos patamares
de complexificação ascendente e que neles devem procurar-se os dados para
explicá-la. Em outras palavras. Tomando como referência o nível atual dos
conhecimentos empíricos, a célula, quanto à sua estrutura e funcionamento, não
é uma realidade insólita. Não entrou em cena sem se anunciar, sem ser preparada
durante longas eras. Não é um “deus ex machina” que, num passe de mágica
preencheu mais uma lacuna na lógica que
comandou e comanda ainda os processos evolutivos da natureza. Não se trata
também de mais um momento em que a solução
dever ser buscada no “design inteligente”. Há evidências
suficientes para afirmar com relativa
margem de segurança de que os fundamentos, as pedras de construção do edifício
celular, devem ser procurados no
universo da química inorgânica e orgânica. Em algum momento num passado
telúrico distante e nebuloso, o processo da complexificação envolveu na sua dinâmica, parte dessa matéria
prima. É exatamente assim que Teilhard entendeu este “novum” surpreendente:
Com esta expressão significarei, precisamente, a “combinação”; ou seja
essa forma particular e superior de agrupamento cuja missão é ligar a si mesmo
um certo número fixo de elementos
(poucos ou muitos não importa), com ou sem o contributo auxiliar da agregação
ou da repetição, num conjunto fechado,
com raio determinado: o átomo, a molécula, a célula, o metazoário, etc.”
(Teilhard de Chardin. 1956, p. 28)
A lógica da complexificação ascendente
interrompida por Teilhard na altura do “metazoário”, permite completar o
esquema com os vegetais e suas
ramificações, os animais e seus desdobramentos, os símios e suas ramificações,
os símios antropóides e, finalmente, o homem. Refletindo sobre essa questão
persiste, como pano de fundo, uma pergunta insistente: Em que momento e, antes
de mais nada, o que causou o desencadear da “complexificação” da matéria,
envolvendo um número fixo de elementos, a terminar num conjunto fechado? Uma
tentativa de resposta fica para mais adiante.
Depois de constatar, amparado em
experiências científicas objetivas, chegou o momento de identificar e alinhar
no tempo a sequência dos elos dessa cadeia. É neste esforço que os cientistas
se deparam com obstáculos no momento pelo menos insuperáveis.
O primeiro relaciona-se com a noção do tempo. As referências das quais nos
costumamos valer para ordenarmos a vida no seu quotidiano, ou dividirmos a
história do homem, em nada nos podem ser úteis. A complexificação da matéria, a
começar pelo átomo, passando pela molécula e a macromolécula e terminando na célula, consumiu um espaço de tempo
gigantesco. Se já é difícil a percepção
real da duração de um século ou milênio, o que dizer de um, dez ou cem
milhões de anos? E, quando as cifras passam de um bilhão de anos, a capacidade
de a mente humana de lidar com tamanho espaço de tempo, reduz-se ao mínimo.
Acontece que a gênese da complexificação e o completar de cada etapa,
prolonga-se por inimagináveis dezenas e
centenas de milhões de anos. Um exemplo. A elevação da cordilheira do Andes
começou há 60 milhões de anos, a razão
de um milímetro por ano. Ora, 60 milhões de milímetros somam seis mil metros, o
que vem a coincidir com a média dos
segmentos mais altos da cordilheira. Temos aqui uma pálida noção da velocidade
das transformações em ritmo geológico. É óbvio que a velocidade das transformações que ocorreram no decorrer da complexificação
químico-biológica, só têm valor como analogia pois, são de natureza diferente.
Mas de qualquer forma servem para ilustrar a dificuldade para situar-se em
outras categorias temporais, daquelas em
que estamos acostumados a nos
movimentar. Cada passagem de um nível a outro nessa evolução por “complexificação” ascendente, consumiu
milhões, dezenas de milhões, centenas de milhões de anos. Fácil de registrar no
papel mas quase impossível de a mente e
a imaginação, acostumados a movimentar-se em ciclos mensais e anuais, formar
uma ideia, vaga do que seja ou do que
significa.
Os períodos de longuíssima duração vêm
acompanhados por um outro problema insolúvel. Simplesmente não foram conservados
registros materiais, como fósseis, que permitem uma reconstituição confiável de
como se deram os fatos. Restam, portanto, suposições, especulações, ilações,
conclusões, que deixam o cientista responsável e sério com as mãos atadas e
obrigado a resignar-se ao “ignoramus et ignorabimus”. Há também aqueles que não hesitam em pular essas
páginas em branco de centenas de milhões de anos da história da terra, como se
fossem de menos valia. Os milhões de anos apagaram inexoravelmente os arquivos
materiais que registravam aquela história. Recorrendo a uma analogia imagine-se o seguinte cenário. Se a
humanidade desaparecesse hoje do
planeta, o que se poderia esperar dos registros da sua história, daqui a um
milhão de anos? Muito pouco além de algum artefato de pedra ou metal não
oxidável ou alguma peça óssea petrificada. Tratando-se da história da transição do estado molecular
para o nível da célula, a própria natureza da matéria prima em jogo, faz da procura de provas materiais para
recuperá-la, “a priori” uma iniciativa
condenada ao insucesso.
Embora a história da “complexificação” que
precedeu a formação da célula e com ela introduziu o fenômeno da vida no cenário universal não tenha deixado
vestígios, as vias indiretas de aproximação são muito precárias. Entre elas a
simulação em laboratório talvez seja a mais promissora. Acontece que esse
“promissor” é novamente algo muito relativo. O nível em que se encontram os
métodos e as técnicas de pesquisa, não permite
vislumbrar uma forma de simular em laboratório o processo da
complexificação que levou milhões de anos. De qualquer forma, suponhamos que
essa possibilidade se concretize, a pergunta-chave fica ainda sem uma
resposta definitiva e convincente.
A complexificação acrescida ou não da
“agregação” e ou da “incorporação”, resultou, sem dúvida, numa forma de revolução na maneira “externa” de a
matéria organizar-se. Teilhard fala
nesta “revolução externa”:
De um ponto de vista exterior, perspectiva na qual se coloca
ordinariamente a biologia, a originalidade essencial da célula parece consistir
em ter encontrado uma massa maior de Matéria. Descoberta longamente preparada
sem dúvida, pelos tenteios de que saíram pouco a pouco as megamoléculas. Mas
descoberta brusca e revolucionária o
bastante para haver encontrado imediatamente na natureza um êxito prodigioso.
(Theilard de Chardin. 1986. p. 89)
Examinando mais de perto a citação, duas
observações caem em vista. “A originalidade da célula parece consistir em ter
encontrado um método novo de englobar utilitariamente um massa maior de
matéria”. O que vem a ser esse “método novo”, essa forma inédita de agir da
matéria organizada na complexa estrutura da célula? Fica faltando uma resposta conclusiva.
Percebe-se um esforço permanente da
parte de Teilhard, cientista que era, além de filósofo e teólogo, na procura
de respostas a nível científico, até o
ponto em que de alguma forma é possível. Já que a falta de dados empíricos objetivos não permite
conclusões seguras, valeu-se da
estratégia de insistir na evidência que
salta aos olhos e deixar sem identificar os processos que foram responsáveis
pelas evidências. Na condição de filósofo e teólogo, não se deixou levar pela
tentação de resignar-se com um cômodo “ignoramus et ignorabimus” e entregar a
responsabilidade da resposta a uma saída pelo “design inteligente” mais cômodo ainda, ou mandar procurar a
resposta no Gênesis. Na falta de uma resposta
a nível científico e frente às respostas pouco convincentes oferecidas pelo “design inteligente” ou as
Sagradas Escrituras, o melhor mesmo deixar a resposta em aberto. Mas Teilhard
não se contentou e não entregou os pontos. Arriscou imaginar como uma sucessão
de “tenteios”, “erros e acertos” terminou na estruturação das mega moléculas e
essas agrupando-se no formato de “sistemas, como dirá Bertalanffy, biólogo
contemporâneo de Teilhard, terminaram na célula. E na célula operou-se a “descoberta brusca e revolucioná ria o bastante para haver encontrado na
natureza um êxito prodigioso”.
O “êxito prodigioso” só pode ser a vida.
Simultaneamente com a gênese estrutural da célula, ou quando esta já se
completara, pouco importa, aconteceu a Biogênese, a travessia do “Rubicão” que
separa a não vida da vida. Na história do Universo registraram-se apenas outros
dois momentos de tamanho significado: a origem da Energia, a matéria prima de
tudo quanto existe e a Antropogênese. A pergunta pela origem da Energia, a
origem da vida (a biogênese) e a origem do homem (a antropogênese), carece de
uma resposta radical, definitiva e convincente.
Desafiam a Ciência, a Filosofia e a Teologia para oferecê-la. Pelo que
tudo indica nenhum dos campos do conhecimento está em condições de, “a priori”,
oferecer um resposta conclusiva. Tanto assim que o próprio Teilhard indica duas
vias explicativas possíveis para a questão na sua obra “O lugar do homem na
natureza”.
A primeira. Pela via “materialista” num automatismo sui generis de
seleção natural, impelindo a Matéria a enredar-se e a rolar cada vez mais
depressa, como uma bola de neve, pelas ravinas de uma complexidade sempre
crescente. A segunda. Pela via “espiritualista” procurá-la numa expansão de
consciência, tendendo à consciência, invencivelmente, a acabar-se até o fim, mas só o podendo conseguir na
condição de criativamente arrumar, ou seja, centrar cada vez mais a matéria à
sua volta? Nunca como na primeira
explicação, cada vez mais consciência no Mundo, porque cada vez mais
complexidade (fortuitamente realizada; mas cada vez mais complexidade
(preparada), porque cada vez mais consciência
(gradativamente emergida. (Teilhard de
Chardin. 1956. p. 43-44)
Como não podia deixar de ser, Teilhard
prepara o caminho para a solução do
impasse em direção à “via espiritualista”. Fique claro que ele, como não podia
deixar se ser, pois, aborda o problema como cientista, não se utiliza do
conceito teológico da criação, ou “causa suficiente”, por sua vez um conceito
filosófico, mas se vale de conceitos
compatíveis com a linguagem científica. A organização, a evolução da matéria a
partir dos estágios mais simples até os altamente estruturados e organizados, encontrou na
“complexificação” a sua explicação. As construções cada vez mais complexas que
terminaram na célula viva, não resultaram do encontro de um número crescente de
elementos que se somam e agregam. Contam
como dinâmica formadora da integração, da complementariedade, do interagir de
átomos, moléculas e macromoléculas. Anima o processo todo a “consciência” que
estimula a matéria em busca de uma complexificação crescente e esta, por sua vez,
permite que a consciência possa manifestar-se, também em plenitude sempre
maior: “Cada vez mais complexidade (preparada), porque cada vez mais
consciência (gradualmente emergida”).
Fica claro, portanto, que o caminho que culminou na célula e na vida, ou
possibilitou a vida na célula, coube à consciência que imprimiu ritmo e rumo à
matéria que compõe o Universo.
Já que o conceito “consciência” é de
tamanha importância para Teilhard, requer-se
uma compreensão clara do que ele fala. O tradutor e comentador de “O
Fenômeno Humano” José Luiz Archanjo, explica numa nota o conceito:
Consciência, enquanto fenômeno, isto é, enquanto manifestação evidente
da interioridade, de dentro, designa, para Teilhard, qualquer forma de
psiquismo, desde a mais diluída e elementar (os tatismos dos unicelulares, por
exemplo) até a mais concentrada e complexa (a reflexão humana); a consciência
reflexiva. O termo é, pois, voluntária e intencionalmente generalizado por
Teilhard. (Teilhard de Chardin. 1986. p.
67)
A justificativa, ou melhor a
compreensão do significado e a
importância do conceito de “consciência” torna-se por assim dizer, o
elemento-chave para entender o universo de Teilhard. A matéria que o compõe
caracteriza-se pela pluralidade, pela
unidade e pela energia.
Que o universo como um todo e as partes
que o compõem é plural, até a observação do homem comum percebe. Os minerais
são múltiplos, os biontes são múltiplos, os vegetais são múltiplos, múltiplos
são os animais e múltiplo é o próprio homem. Essa multiplicidade, entretanto,
na base do universo, agrega-se em
unidades cada vez maiores e mais complexas. Ficando com a conceituação
de Teilhard, pode-se imaginar essa arquitetura na escala ascendente em busca de
uma unidade superior, percorrendo o caminho da “complexificação”, complementada
pela “agregação” e a “incorporação”. Uma duna de areia é formada por bilhões de
grãos de areia que se acumulam por simples agregação, assim como uma pilha de
tijolos ou uma montanha de grãos de cereais. Um cristal cresce pela incorporação
na sua rede de sempre mais moléculas da mesma natureza química. O
desenvolvimento do organismo vivo dá-se por “complexificação. Não se exclui na
sua gênese, nem a agregação, nem a incorporação, mas como mecanismos
complementares e auxiliares. A agregação e a incorporação que foram suficientes
para entender a formação de uma duna de
areia, ou o “crescimento” de um cristal, já não o são para entender a natureza
do processo que deu origem à célula viva, à planta superior, o animal e, muito
menos o homem.
Para melhor entender a natureza do
processo da complexificação na natureza, faz-se necessário observar o que
acontece a nível atômico e mesmo subatômico. A clivagem da matéria até onde os
métodos empíricos de hoje o permitem, leva ao átomo com sua estrutura
submicroscópica. O mistério da sua estrutura
e dos seus potenciais energéticos parecem revelados pela ciência, ao
menos em linhas gerais. O observador apressado corre o risco de achar que não
está longe o dia em que já não haverá mais o que descobrir. E, com isso, o
homem terá em mãos a chave para
controlar e disciplinar em seu favor as forças básicas que regem o universo.
Não é esta a conclusão a que chega
Teilhard. O átomo ou as partículas subatômicas, por mais identificadas e
identificáveis que possam parecer, mostram uma outra dimensão. Sua identidade
física e química representa apenas a metade da verdade, a verdade mensurável, a
metade dissecável, a metade passível de clivagem. A outra metade aponta para o
que o átomo, a molécula tem algo de co extensivo ao menos potencialmente.
Teilhard fala em “estranha propriedade que reencontraremos mais adiante até na
molécula humana”. (Teilhard de Chardin.
1986. p. 42). E numa tentativa de tornar inteligível o seu raciocínio
propôs a saída, valendo-se do conceito de “unidade coletiva”, entendendo-a
como:
Os inumeráveis focos que partilham entre si um dado volume de matéria
nem por isso são independentes uns dos outros. Algo os religa mutuamente, algo que os torna solidários.
Longe de se comportar como um receptáculo inerte, o espaço preenchido por sua
multidão age sobre ela à maneira de um meio ativo de direção e transmissão, no
seio do qual sua pluralidade se organiza. Simplesmente adicionados ou
justapostos, os átomos não constituem ainda a Matéria. Engloba-os e cimenta-os
uma misteriosa identidade contra a qual o nosso espírito se choca sendo, porém,
finalmente forçado a ceder. A esfera acima dos centros e envolvimentos. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 42-43).
Em todos os passos ascendentes da evolução da Matéria, até culminar na Antropogênese e,
porque não, mais acima e além, essa propriedade misteriosa desafia a
curiosidade do observador. O que leva o encontro de átomos a formar uma molécula? A composição de moléculas uma
célula, um bionte unicelular? Protozoários formar metazoários, metazoários
animais e vegetais, animais símios?, símios em antropóides? e, finalmente,
antropóides em humanos? Orientando a questão numa outra direção e, recorrendo a
uma analogia, parece legítimo formular perguntas como: O que faz com que um
conjunto de solos, situações climáticas, microorganismos, ervas, arbustos e
árvores, formem uma floresta? O que há a mais numa sociedade de formigas e sua associação
simbiótica com acarídios ?. O que faz
com que uma unidade ecológica associe
plantas, insetos, pássaros, animais, solos e microorganismos, num sistema,
semelhante a um organismo? O princípio comum e inicial no qual é preciso
procurar as respostas para as perguntas formuladas acima é, segundo Teilhard, a
“Energia”.