Archive for setembro 2016

A Natureza como Síntese #5

A Natureza como Síntese
- 05 de 57-
A Relação Homem-Natureza -3
A relação simbiótica, a relação existencial do homem com a natureza, os simbolismos, as metáforas, os mitos, o imaginário, que povoam a história e a cultura do homem de todos os tempos e de todas regiões do planeta, como fruto dessa simbiose homem-natureza, compõem um campo fascinante pouco explorado. Edward O. Wilson, [1] um dos mais respeitados entomologistas definiu nos seguintes termos essa relação:
A atração gravitacional  da Natureza sobre a psique humana pode ser expressa em um único termo, mais contemporâneo: Biofilia, que defini, em 1984, como a tendência inata para se afiliar à vida e aos processos vitais. Desde a infância até a velhice, as pessoas de todas as partes  do mundo sentem atração pelas outras espécies. A novidade e a diversidade da vida são apreciadas. Hoje  em dia a palavra ”extraterrestre” evoca, melhor do que nenhuma outra, as incontáveis imagens da vida inexplorada, substituindo a antiga  palavra “exótico”, antes poderosa, que atraia os viajantes do passado para selvas remotas e ilhas ainda sem nome. Explorar a vida e filiar-se a ela, transformar criaturas vivas em metáforas carregadas de emoção, inseri-las na mitologia e na religião – eis os processos  fundamentais, facilmente reconhecíveis, da evolução cultural biofílica. Essa filiação tem uma consequência  moral: quanto mais compreendemos  outras formas de vida, mais o nosso aprendizado se expande, abrangendo  sua diversidade e maior é o valor que atribuímos a elas – e, inevitavelmente  a nós mesmos. (Wilson, 2008. p. 75)
Refletindo com mais atenção sobre esse depoimento da autoridade de peso  do prof. Edward Wilson, a Natureza e o Homem nela inserido, fazem intuir o universo que se oculta atrás desse binômio. De outra parte salta aos olhos a temeridade, para não falar presunção, de alguém, por maior especialista que seja, querer oferecer explicações conclusivas, sobre questões fundamentais, como a natureza do homem, a existência ou não de Deus, o sentido do universo e outros mais. O homem está inserido na natureza que se desdobra à sua frente, não só na condição de integrante passivo, mas como curioso que não se cansa em procurar um sentido para tudo que o rodeia e, principalmente, entender a razão da sua própria existência no universo ao qual está entregue o seu destino como espécie. Assim cada conquista tecnológica, cada avanço científico e cada incursão e aprofundamento na reflexão filosófica e, cada atualização das concepções religiosas, significam passos a mais em direção à compreensão do Homem e da Natureza. Acontece, entretanto, que  cada incógnita respondida, traz à tona outras tantas para desafiar os especialistas. A  busca do homem pela compreensão da Natureza e o seu sentido assemelha-se  ao desenrolar de um novelo que não tem fim. Cada passo nesse desenrolar revela mais surpresas e incógnitas  não esperadas, do que soluções e respostas dadas. Uma reposta definitiva  e conclusiva parece distanciar-se a cada passo que se avança. Tanto o cientista, quanto o filósofo e o teólogo flagram-se no esforço de se aproximar da  linha do horizonte que se afasta na mesma velocidade em que se tenta a aproximação.  A pior atitude nesta corrida é aquela em que o cientista afirma: “encontrei ou certamente encontrarei a explicação final para todas as coisas”; quando o filósofo conclui que “já não restam dúvidas diante das conclusões do seu raciocínio; quando o teólogo aponta “que divindades ou forças sobrenaturais  comandam, em última análise,  tudo”. Este tipo de postura leva fatalmente a posições fundamentalistas irredutíveis, tanto no plano religioso, quanto no filosófico e no científico. Infelizmente foi essa radicalização que impediu o diálogo entre a pesquisa científica, a filosofia e a teologia, durante o século dezenove e boa parte do século vinte. E, na medida em que o embate se acirrava, saíam prejudicados os avanços em todos os campos do conhecimento e a produção de novos conhecimentos encolheu de forma visível. Basta percorrer as estantes das bibliotecas com acervos significativos que guardam obras publicadas nos últimos cinco séculos. Salta aos olhos o volume e o alcance das produções que revolucionaram o pensamento e terminaram por imprimir as características da civilização moderna e contemporânea. Os autores e as obras reitoras  dessa revolução histórica de proporções planetárias, concentram-se no que às vezes se chama de “grande século XIX” – 1750-1914. Nele definiram-se as linhas filosóficas mestras do  Iluminismo,  do Racionalismo,  do Evolucionismo,  do  Materialismo,  do Socialismo, ao lado das correntes filosóficas da antiguidade e da Idade Média que nunca perderam a importância e o vigor. Paralelamente consolidaram-se as bases teóricas e metodológicas das Ciências Naturais e foram feitas algumas das descobertas cuja validade a moderna tecnologia científica comprova a cada dia que passa. Entre estas sobressaem os dois campos complementares que, por assim dizer,  representam a alma de muitos  dos mais importantes laboratórios espalhados pelo mundo, empenhados tanto  na pesquisa pura quanto na aplicada: as leis e processos que comandam a evolução da vida em geral e as leis e processos que comandam a herança biológica e a utilização desses conhecimentos para o desenvolvimento de biotecnologias.
As Ciências empíricas  ou experimentais consolidaram suas  bases metodológicas e teóricas e as novas correntes filosóficas conquistaram espaços sempre mais amplos. A Filosofia tradicional e, de modo especial, a Teologia tradicional, sofreram uma diminuição substancial na sua influência, tanto em extensão quanto em profundidade. Parece que em toda a primeira metade do século dezenove predominou o distanciamento entre o “moderno” e o “tradicional”. Não se observam maiores embates entre os protagonistas dos dois arraiais. Mas essa convivência mais ou menos civilizada cedeu, aos poucos, lugar a um clima de beligerância e, não raro, de guerra aberta. Dois fatos e dois momentos praticamente simultâneos levaram a essa situação. O “Manifesto Comunista” de Karl Marx em 1848 e “ Origem das Espécies” de Charles Darwin em 1859. Essas duas obras provocaram um autêntico terremoto pelo que significaram em si e, de modo especial, pelo potencial de munição que uma ofereceu à outra. Em outras palavras.  O princípio da evolução que para Lamarck[2] e Darwin explicava a origem e o surgimento de novas espécies, não demorou em ser emprestado pelos sociólogos, cientistas políticos, economistas, historiadores, estudiosos das religiões, para explicar a gênese e a dinâmica que ocorre nesses campos. Como se pode perceber e prever, o confronto direto com a Filosofia e a Teologia tradicionais, era apenas uma questão de tempo e de ocasião. O Concílio Vaticano I marcou talvez o momento culminante deste embate. Sua convocação por Pio IX[3] teve como motivação central definir a posição da Igreja Católica diante da situação criada pelas Ciências Naturais e pelas correntes filosóficas responsáveis pela assim chamada Modernidade. Seria longo demais enumerar as principais decisões tomadas durante a realização do Concílio. Só para sentir o clima que motivava os debates, basta lembrar que o evolucionismo estava na pauta de ser declarado como heresia. Felizmente a guerra Franco-Alemã interrompeu-o definitivamente. Do lado oposto o radicalismo não foi menor, expresso nos escritos e manifestações de Ernest Haeckel[4] e adeptos.



[1] Os dados biográficos de Edward Wilson na introdução do capítulo abaixo que analisa sua concepção da natureza.
[2] Lamarck, Jean Baptist Antoine de Monet, nasc eu em 1. de agosto de 1744, Bezantin, França e faleceu em 18 de dezembro de 1829 em Paris. Em resumo sua teoria é a seguinte. Os seres vivos evoluíram a partir de micro organismos. O mecanismo básico de complexificação  e diversificação é o “uso e o desuso” dos órgãos. O desuso atrofia e o uso aperfeiçoa e desenvolve os órgãos. O desenvolvimento e aperfeiçoamento transmite-se pela hereditariedade aos descendentes.
[3] Pio IX – Giovanni Maria Mastai – Ferreti, nasceu em Senigalia – Itália em 13 de mio de 1792 e faleceu  em 7 de fevereiro de 1878, coroado papa em 21 de junho de 1846.  Combateu o que denominou de “falso liberaliso” e na famosa encíclica “Quanta Cura” de 1864, condenou a teses que contrariavam a doutrina católica da época. Como completo da encíclica  veio também o famoso “Syllabus errorum”, que enumerava e condenava os principais erros na visão de Pio IX: o panteísmo, naturalismo, racionalismo, socialismo, comunismo e outras doutrinas.  Convocou o Concílio Vaticano I em 29 de junho de 1869. Na quarta sessão do concílio a infalibilidade do papa foi declarada dogma de fé. Durante o seu pontificado ocorreu a unificação da Itália e  a extinção dos estados pontifícios e sua incorporação na nova República da Itália. O papa considerava-se um prisioneiro no vaticano, situação que perdurou até 1927 conhecida como “Questão Romana com a assinatura do Tratado do Latrão entre Benito Mussolini e o papa Pio XI.
[4] Ernst Heinrich Pfilipp August Haeckel nasceu em 16 de fevereiro de 1834 e faleceu em Jena em 9 de agosto. de 1919. Naturalista, médico e filósofo fi um dos convictos  divulgadores da teoria da evolução de Darwin. Levou  a evolução até as últimas consequências fundamentando sobre ela o Monismo Materialista que teve  adeptos até no sul do Brasil sob a liderança de Karl von Koseritz. Haecke é o autor da famosa  “Lei Biogenética Fundamental” ou “Lei da Recapitulação, que ensina que a evolução do embrião é uma repetição da evolução geral dos seres vivos

A Natureza como Síntese #4

A Natureza como Síntese
- 04  de 57-
A Relação Homem-Natureza  - 2
A relação  diuturna, íntima, existencial entre o homem e a natureza, não pôde deixar de despertar a curiosidade para entender os processos naturais. Acontece que ele não foi um mero espectador dos acontecimentos que movimentavam o mundo ambiente em que vivia. Em sintonia com ela elaborou  a sua cultura e construiu a sua história. Ele próprio foi um dos protagonistas, um dos atores em meio a essa dinâmica. Sua inserção nela se deu em todas as dimensões existenciais: no plano físico, biológico, instintivo, racional e espiritual. Pelo físico, como se apontou mais acima,  situa-se numa dimensão que o nivela com a natureza mineral, no biológico com a vegetal e animal, no instintivo com o animal e pelo racional e espiritual, supera e distancia-se dos demais níveis. Teilhard de Chardin diria que o homem insere-se existencialmente na “litosfera” e na “biosfera”, mas supera essas duas dimensões porque, pela inteligência reflexa, dando existência à “noosfera”. Mas em todos os níveis, num mais noutro menos e, à sua maneira, as circunstâncias naturais deixam suas marcas indeléveis. Afinal o homem encontra-se existencialmente inserido no contexto natural. Não é aqui o lugar para examinarmos como aconteceu e como nesta relação simbiótica as coisas se deram no plano material e instintivo da vida do homem e da sua cultura. Deixamos esta análise para os estudiosos da biologia humana, para os etnógrafos, os etnólogos e os historiadores da cultura.
Tomando como base a publicação das fontes referentes à história ambiental, para que as presentes reflexões  devem servir de introdução, o interesse em primeiro lugar concentra-se no que eles tem a oferecer e a sugerir em termos de uma cosmovisão ambiental.

A inserção existencial do homem no universo natural ou, repetindo mais uma vez, a relação simbiótica existente na sua raiz, fica evidente nos traços mais diversificados, mais discretos e nas aparências até mais insignificantes.
Basta um olhar um pouco mais atento para nos convencermos do acerto desta afirmação. Entre os povos agricultores, por exemplo, o sol e a lua, a alternância mensal das suas fases e da sucessão das estações do ano, fez com que  construíssem o seu mundo simbólico, com todo um universo de costumes, hábitos, valores,  crenças, cultos e rituais. O sol definia os ciclos anuais e, pela alternância das estações comandava a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, crescimento, o florescimento, a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio ao fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer, fenômenos  pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos, climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade dos povos e culturas.. A primavera passou a simbolizar o germinar da vida, a infância, a juventude; o verão o vigor e a plenitude adulta; o outono  a colheita dos bons ou maus resultados; o inverno o declínio e, finalmente a morte para, em seguida, germinar nova  vida e recomeçar o eterno vir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e os ciclos da vida confundem-se simbolicamente numa única e mesma dinâmica. Fala-se então em primavera da vida, outono da vida, inverno da vida. Pela mesma importância em não poucas culturas o sol e a lua são cultuados como divindades.
No mesmo sentido vai toda uma compreensão de outras realidades naturais. Cito apenas algumas mais. A água como elemento indispensável à vida, figura como objeto de veneração na história de inúmeros povos. Água e vida  tornaram-se sinônimos. Como a água que dá vida é, por excelência, aquela que se bebe nas fontes, brotando da rocha ou das entranhas da terra, atribuem-se às próprias fontes  propriedades curativas especiais, efeitos mágicos, milagrosos ou afrodisíacos. Combinada com outras realidades, mereceu ser cultuada em não poucas culturas. Assim, por exemplo, prometia-se em não poucas tradições vida longa e saudável para   quem se banhasse no primeiro dia do novo ano numa fonte, brotando diretamente da terra ou da rocha.
Não é por nada que a água, pela importância vital para o equilíbrio da natureza como um todo e pela dependência dela para a vida e a morte da vida na terra,  foi explorada com finalidades terapêuticas na bases de suas propriedades naturais e as atribuídas pelo homem nas suas tradições culturais. Não é aqui  o momento para explorarmos em profundidade essa importante questão. Cabe, entretanto, um exemplo para ilustrar a importância e a popularidade que método da cura pela água assumiu no final do século XIX e começos do século XX. O exemplo mais emblemático no recurso à água como terapia para curar praticamente todas formas de problemas de saúde, foi o método aperfeiçoado por Sebastian Kneipp, um simples pároco da cidadezinha de Woerishofen na Baviera. Inspirado no livro dos Reis 4 capítulo 5, vers. 10: “vai e lava-te sete vezes no Jordão e tua carne recupera a saúde e tu a pureza”, elaborou o método: “Minha Cura pela Água – A cura pela água e a preservação da saúde”. Na condição de pároco no interior da Baviera, sul da Alemanha, entrou em contato com inúmeros casos de doentes e doenças as mais variadas por parte de pessoas pobres simples que não tinham acesso aos médicos e medicamentos convencionais. Para estes ele ofereceu seu método experimentado por anos, com resultados extraordinários. Na introdução para a primeira edição 1886, chamou a atenção para a intenção que o levou a se interessar pelo problema da “saúde do corpo ao mesmo tempo que cuidava da saúde da alma”.
Dediquei-me com especial atenção e amor às classes mais pobres e sem acesso à medicina convencional. A eles dedico em primeiro lugar o meu livrinho. Por isso seu estilo é simples, despido sem recurso ao linguajar técnico, em forma coloquial. (...) De forma nenhuma tenho a intenção de polemizar com qualquer orientação da medicina formal. Tenho a impressão que a publicação tem o seu valor no fato de que um leigo no assunto se ocupe com uma questão tão importante e contribua com sua experiência diária com o povo. Recebo com gratidão sugestões e críticas. (cf. Kneipp, 1886, p. III-IV). A aceitação do Método Kneipp foi de tal ordem que entre 1886 e 1891 foram publicadas nada menos do 33 edições. Fundamenta-se no pressuposto de que todas doenças que de alguma forma são passíveis de cura, encontram solução com a utilização da água pois, tem como objetivo atacar a raiz de todos os males. Em resumo são os seguintes: 1. Dissolver  no sangue os agentes das enfermidades; 2. Eliminar os causadores das doenças diluídas no sangue; 3. Fazer com que o sangue purificado circule normalmente; 4. Por fim restabelecer as resistências debilitadas do organismo.
Seu colega de estudos Mathias Pfluger, desenganado pelos médicos, submeteu-se ao método Kneipp. Recuperou-se completamente, ordenou-se sacerdote e, depois de entrar na Companhia de Jesus, foi enviado pelos superiores da Alemanha para trabalhar na Missão dos Jesuítas no Sul do Brasil. Fundou e consolidou a Paróquia de Tupandi, hoje município com o mesmo nome, onde faleceu em 1905 com 77 anos. Na época, segunda metade do século XIX, atendimento médico formal e consultórios de médicos diplomados, só em Porto Alegre. Essas circunstâncias fizeram com que o Pe. Pfluger popularizasse entre seus paroquianos e comunidades vizinhas o Método Kneipp. Ainda hoje, mais de 100 anos depois da morte do pároco, mesmo com assistência medica acessível  nos rincões mais remotos, o recurso à práticas de cura pela água ainda são frequentes especialmente em casos nas gripes tão comuns em certas estações do ano.
Tão populares como o Método Kneipp as clínicas de hidroterapia, sob a responsabilidade de médicos e profissionais da saúde credenciados, atendiam em centros urbanos, em sítios de águas termais,  oferecendo uma infraestrutura completa e credenciada pelas autoridades sanitárias.
Pelo mistério que costumam envolver montanhas, vulcões, lagos e os próprios mares e oceanos, terminaram por personificar figuras mitológicas ou representar lugares sagrados, que passaram para o imaginário dos povos na forma de crenças, mitos e tabus. Os deuses e deusas do monte Olimpo, distantes dos homens, entregavam-se às suas intrigas e pouco se importavam com o que acontecia no quotidiano dos mortais. A atitude olímpica tornou-se sinônimo de uma postura  sobranceira, distante, alienada e desprezadora da realidade, por assim dizer, acima do bem e do mal.. O vulcão Fuji simboliza a própria história do povo japonês. Espíritos que não toleravam a presença do homem povoavam lagos como o de Lhangue no Chile, fazendo com que suas proximidades permanecessem despovoadas até a chegada dos imigrantes alemães em meados do século XIX. 

A Natureza como Síntese #3

A Natureza como Síntese
- 03  de 57-
A Relação Homem-Natureza
A relação homem-natureza implica, antes de mais nada, na intrincada relação de causa e efeito entre homem e o ambiente natural em que vive. E não se trata obviamente de uma mera relação conjuntural, mas de uma inserção existencial do homem no mundo ambiente que o cerca mediata e imediatamente.
Essa relação homem-natureza torna-se evidente, como foi apontado na introdução, quando se presta atenção a alguns fatos que, de tão presentes no quotidiano e de tão “corriqueiros”, escapam à percepção do dia a dia. Começa por aí que o corpo material do homem busca os componentes  estruturais entre os elementos encontráveis na natureza: oxigênio, nitrogênio,  gás carbônico, sais minerais, enzimas, vitaminas, e um número indefinido de outros. Trata-se, portanto, dos mesmos componentes  que entram na composição dos minerais e dos seres vivos em todos os níveis da escala botânica e zoológica. Dessa forma a existência biológica do homem é impensável se desenraizada do chão desse fundamento natural. Mais. Essa relação só se sustenta porque busca permanentemente no ambiente natural, a reposição das matérias primas exigidas pelos processos vitais.
A mesma constatação aparentemente simples e óbvia, leva-nos a dar um passo adiante na nossa reflexão. O homem ao alimentar-se e ao respirar, busca a matéria prima no meio ambiente.  Entre os animais e vegetais o alimentar-se e o respirar, resume-se em atos e fatos naturais, espontâneos, instintivos, reflexos, destinados à garantia da sobrevivência e o bem-estar ao nível elementar da sobrevivência física do indivíduo e da espécie.
Desde que o homem despontou no cenário deste planeta, não importa há quantos milhares ou milhões de anos, nem em que continente ou em que circunstâncias ambientais e climáticas, já faiscava  em seu cérebro a centelha da inteligência reflexa. Pouco importa também se ostentava uma fisionomia mais ou menos teromorfa ou humana, de acordo com os critérios utilizados na etnografia e etnologia clássicas. Perambulava pelas florestas, pelas estepes, pelas savanas, pelas montanhas e planícies, com olhar curioso e inquiridor. Observava, experimentava e selecionava aquilo que a natureza oferecia em alimentos, vestuário, abrigo e matérias primas para a confecção dos seus artefatos de sobrevivência, armas de caça e  defesa.
Guiado pelo instinto de sobrevivência foi buscar no meio ambiente os alimentos de que necessitava, meios para proteger-se contra as intempéries e construir abrigos ou instalar-se  em cavernas. Todos esses procedimentos ultrapassaram, desde o começo, o simples ato instintivo, compulsório, para fazê-los acompanhar de rituais, cerimônias ou tabus,  de natureza cultural. O ato de alimentar-se assumiu entre muitos povos as características de um ritual mágico ou religioso. E não somente o ato de alimentar-se, como os próprios alimentos passaram a fazer parte das culturas, revestidos de sacralidade, dotados de poderes mágicos, de efeitos afrodisíacos, ou de forças milagrosas. O mesmo se pode afirmar do vestuário e da habitação.
A convivência e, mais ainda, a parceria  do homem com a natureza,  ensinou-lhe caminhos e formas de como consolidar melhor uma parceria  com ela, de como viver e sobreviver nela e de como transformá-la numa aliada sempre presente e numa parceira indispensável na construção das suas culturas e histórias. E desta parceria do homem com a natureza resultou uma autêntica relação simbiótica entre os elementos e os processos que integram a História Natural e a História Cultural.
E nesse esforço, uma tríplice  gama de  desafios estimulou a criatividade do homem. Em primeiro lugar, foi o desafio de encontrar na natureza o alimento e o abrigo, garantindo a sobrevivência biológica. O segundo desafio consistiu em desenvolver tecnologias cada vez mais eficientes para, gradativamente,  tornar mais fácil e mais eficiente a obtenção dos alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. O terceiro e o maior de todos os desafios foi o esforço de penetrar nos mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo, desvendar as incógnitas da própria existência e tentar formular sínteses compreensivas e compreensíveis sobre si mesmo e o universo em que vive.

O convívio imediato, íntimo, diuturno, existencial com a natureza, despertou no homem a percepção inequívoca de fazer parte integrante dela. Além de depender dela para a vida e a morte, o ritmo da sua vida seguia na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E, neste conviver simbiótico, foi construindo a sua história, as suas culturas, os seus imaginários, as suas simbologias, as suas mitologias, os seus rituais, os seus sistemas éticos, enfim, as suas cosmovisões. Tudo que o rodeava, por assim dizer, animava-se e personalizava-se de acordo com o significado material, mágico, simbólico ou religioso de que vinha acompanhado. As realidades  e fenômenos naturais assumiam vida e importância pelo que sugeriam à imaginação e pelo que representavam no quotidiano. Acontece que, desta maneira, um espelhar-se recíproco entre o homem e os fenômenos e realidades naturais e, em meio a esse processo de inter-relacionamento, a cultura foi desenhando seus contornos e a história definindo o seu rumo.

A Natureza como Síntese #2

A Natureza como Síntese
- 02  de  57-
Introdução
Ninguém de sã razão põe em dúvida  que entre o homem e a natureza que o cerca, há uma relação profunda. Os fatos estão aí e dispensam argumentos científicos e raciocínios complicados. As evidências começam pelo fato de a matéria prima que entra nas estruturas físico-químicas do organismo humano, são as mesmas que se encontram em a natureza mineral. Provam-no os resíduos que sobram da cremação de  um corpo. Para lá de dois terços do peso foi água e evaporou, do que sobrou mais de noventa  por cento foram compostos de carbono. Na caixinha de cinzas podem ser identificados em torno de duas dúzias de minerais, todos constantes na tábua periódica dos elementos, encontráveis todos na composição da natureza inorgânica e orgânica. Além disso entram na composição de todos os seres vivos, desde os unicelulares mais simples até os vertebrados mais complexos. Nada mais acertado do que afirmar que o homem, quanto ao seu organismo biológico é feito do mesmo “pó da terra”,  que  o do mundo mineral, orgânico e vivo, com quem divide o cenário natural em que passa a sua existência.
Passando agora para o plano do funcionamento do organismo, percebe-se outro dado que faz pensar. Os processos fisiológicos que garantem a sobrevivência dos indivíduos e da espécie humana são, na sua natureza, os mesmos que asseguram o bom andamento das funções vitais de uma ameba ou de um tripanosoma. Desde aqueles seres vivos, aparentemente tão sem importância, passando por todos os estágios intermediários da ascensão biológica, para culminar no auge da complexidade dos animais superiores e do homem, os processos fisiológicos são comandados pelo genoma de cada uma. A engenhosidade desse código, ao mesmo tempo complexo e simples, capaz de se autoduplicar indefinidamente, suscetível a modificações induzidas pela variação das condições ambientais, explica, de um lado, a sobrevivência dos indivíduos e a continuidade da espécie e, do outro,  sua transformação e, consequentemente, sua evolução. Por essas suas características, o código genético confere à natureza viva, em grandes linhas, uma grande unidade pela base, ao mesmo tempo em que permite a sua manifestação numa incontável variedade de formas, tamanhos e cores, e ninguém de sã razão, hesita em incluir a espécie humana nessa dinâmica universal.

Acontece, porém que, em se tratando do homem, lidamos com uma espécie que transcende radicalmente o nível biológico que marca as fronteiras entre as demais. Dotado de inteligência reflexa faz com que estabeleça uma relação com o meio ambiente que supera essencialmente aquela ditada pelo instinto. Embora haja  muito de instintivo no comportamento humano na relação com o meio, não se pode perder de vista que isso prova que o homem continua com as raízes biológicas fincadas fundo no entorno físico, químico, orgânico e vivo. Os estímulos oriundos dessa realidade, são o ponto de partida para as respostas que induzem da parte da inteligência racional, as respostas que já não são instintivas.