Formação no Nível Médio
Depois de concluídos os 4 anos na escola comunitária do Morro da Manteiga todos os meus colegas e minhas colegas seguiram o caminho para vida oferecido aos filhos e filhas de colono da época. Dedicaram-se em tempo integral nas lides da agricultura familiar somado aos afazeres domésticos complementares. Eu fui o único que se decidiu a continuar os estudos. Acontece que na época a única forma de um filho ou filha de colono normal continuar os estudos limitava-se a entrar num seminário em princípio para entrar na vida religiosa num internato para a formação de religiosos e ou religiosas. Todas as escolas de ensino médio localizavam-se em Porto Alegre e nas cidades maiores como Santa Maria, Santa Cruz do Sul, Cachoeira, São Leopoldo, Caxias do Sul, Garibaldi e outras mais. A grande maioria eram particulares sob a direção de ordens e congregações religiosas masculinas e/ou femininas. Paralelamente seminários destinados à formação do clero ofereciam um ensino e educação de alto nível em São Leopoldo, Santa Maria, Cerro Largo, Gravataí, Salvador do Sul, todos sob a orientação dos jesuítas. Em outros centros maiores capuchinhos, franciscanos, josefinos, redentoristas, irmãos maristas e lassalistas mantinham as casas de formação no nível médio para os pretendentes à filiação às respetivas ordens ou congregações. Os jesuítas construíram o Colégio Santo Inácio, também conhecido como Escola Apostólica, em Salvador do Sul, admitindo exclusivamente candidatos que, em princípio, ingressariam na Ordem após concluído o ensino médio ou o ginásio. Os meninos e meninas egressas das escolas comunitárias desejosas de continuar os estudos encontravam nessas instituições a saída para suas pretensões de continuar os estudos. O argumento para obter a concordância dos pais para as meninas resumia-se na intenção de tornarem-se religiosas e meninos de ficarem padres ou irmãos. Aqui é o lugar para chamar atenção para o detalhe que o argumento dos filhos e filhas pretenderem entrar numa ordem religiosa ou optar por serem sacerdotes diocesanos ou seculares, dificilmente não convencia os pais. Encontramo-nos num período em que a religião e sua prática festejava, como valor dos valores, um florescimento fora do comum no interior colonial, inclusive nas cidades maiores como Porto Alegre, concentrando elites católicas de todas as classes sociais e organizações como a Ação Católica e as Congregações Marianas. A Ação Católica atuava em quatro níveis: a JUC – Juventude Universitária Católica; a JEC – Juventude Estudantil Católica; a JOC – Juventude Operária Católica; a JIC – Juventude Independente Católica; - JAC – Juventude Agrária Católica. As Congregações Marianas, instrumento de formação religiosa preferida pelos jesuítas, também congregava seus associados de acordo com o critério da formação, principalmente em Porto Alegre, com sede no Colégio Anchieta, então na rua Duque de Caxias, perto da catedral. Lá reuniam-se semanalmente os associados da Congregação dos Formados em nível universitário; da Congregação dos estudantes universitários, da Congregação dos estudantes do ensino médio. No interior colonial, tomando como referência as paróquias administradas por jesuítas, uma Congregação Mariana para rapazes solteiros e outra para as moças solteiras, as famosas “Filhas de Maria”, faziam parte obrigatória da atividade pastoral. Em não poucas comunidades dessas os rapazes costumavam ostentar a fita azul da congregação na cerimônia dos respetivos casamentos. Achei pertinente esse inciso para dar uma ideia de como a religiosidade permeava o quotidiano das comunidades coloniais onde as obrigações religiosas costumavam ser cumpridas com o máximo rigor. Nesse cenário a família com um seminarista, um irmão, um sacerdote ou uma religiosa, gozava de um prestígio todo especial. Entende-se assim que raramente um pai ou uma mãe fazia objeções ou impedia o filho de ir para o seminário para “ficar padre” ou “irmão” e uma filha para um colégio de religiosas para “ficar irmã”.
Envolto, por assim dizer, nessa atmosfera de religiosidade, que falei com meu pai e minha mãe da vontade que tinha de ir para o seminário e “ficar padre”. No percebi nenhum indício de alguma objeção ou tentativa de me demover do meu desejo. Com toda a honestidade, meus pais estavam acostumados a ouvir esse tipo de conversa com três irmãos e uma irmã mais velhos do que eu. Meu pai e minha mãe apenas deixaram claro que no dia em que eu fosse desistir, como tantos outros da nossa comunidade, poderia contar com seu apoio incondicional. Não tenho provas formais mas a intuição que não necessita de provas racionais me diz, que meus pais aceitaram mais esse sacrifício tendo em vista permitir ao mais novo dos filhos, mesmo ainda um menino de 11 anos, para embrenhar-se num universo do qual eles tinham apenas uma vaga ideia oferecida pelos jornais, almanaques e livros que costumavam ler nos fins de semana ou então à luz de uma lamparina de óleo de amendoim depois de um dia de trabalho duro. Aos meus pais rendo a minha homenagem e expresso a minha gratidão pela sabedoria e, principalmente pela abnegação e os sacrifícios adicionais, ao não colocarem nenhum obstáculo ao caminho pelo que eu havia optado. Já o haviam feito com o mesmo espírito no momento em que outros 3 filhos e uma das duas filhas trocaram a enxada pela carreira acadêmica entrando na vida religiosa. O Pe. Balduino seria convidado naquele remoto ano de 1942 para ocupar como fundador a cátedra de Etnografia e Etnologia na recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então Universidade do Rio Grande do Sul, mais tarde Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O Roberto cumpria seu estágio de docência, obrigatório para os estudantes jesuítas depois de concluída a Filosofia, lecionando Física, Química e Matemática no Colégio Catarinense. A Tecla, depois de formada no ginásio Bom Conselho, encontrava-se no noviciado das irmãs franciscanas em São Leopoldo. O Bertoldo depois de concluir o ginásio no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul, decidiu ficar com os pais e assumir como professor a escola comunitária do Morro da Manteiga. Numa época em que cada filho significava um reforço e um suporte precioso para os pais já desgastados pelo duro trabalho na enxada, no arado, na foice e no machado, não opor nenhum obstáculo para que 4 filhos homens e uma filha seguissem a carreira acadêmica, a atitude dos meus pais, repito de novo, foi de uma rara sabedoria e, ao mesmo tempo, de fidelidade à tradição da família. Vale lembrar aqui que dois irmãos do meu pai ordenaram-se sacerdotes, um secular ou diocesano e outro jesuíta. Este último por sinal como pároco coordenou a construção da catedral de Santa Cruz do Sul e três irmãs entraram na congregação das irmãs Franciscanas em São Leopoldo. Da parte da minha mãe uma tia foi irmã franciscana em Santa Maria e o tio mais novo sacerdote diocesano, pároco em Santa Clara do Sul e, mais tarde, até o fim da vida, pároco em Mato Leitão.
Mas, voltemos à minha jornada. A decisão de me tornar jesuíta teve tudo a ver com o pároco jesuíta em Salvador (Tupandi) e o fato de dois dos meus irmãos pertencerem aquela Ordem. Essa lógica levou-me para o Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul, para a minha formação no nível médio que levaria 8 anos, de 1942-1949, portanto dos 12 aos 20 anos. Esse internato aceitava em princípio somente meninos vocacionados para entrarem futuramente na Ordem dos jesuítas. Aqueles que descobriam no decorrer do ginásio que não era bem essa a sua vocação, ou voltavam para casa dos pais para trabalhar como colonos ou, essa era maioria, continuariam os estudos numa outra instituição. Não tenho em mãos estatísticas dos que perseveraram até o final do ginásio e de fato entraram na Ordem. Avalio que somavam em torno de 30%. Não me lembro quantos “novatos” entraram comigo no seminário em fevereiro de 1942. Em 1950 entraram comigo 20 no noviciado em Pareci Novo, certamente um número considerável comparando com os que hoje optam por entrar numa ordem religiosa.
Se não me falha a memória foi no dia 18 de fevereiro de 1942 que o Bertoldo, meu irmão, acompanhou-me a cavalo até o seminário no “Kappesberg”, como era conhecido nas redondezas. Meus poucos pertences, basicamente roupas, foram acomodados num alforje carregado no cavalo montado por mim. Quase no alto de Salvador do Sul, virei-me na sela e olhei para trás. Lá longe destacava-se contra o céu sem nuvens o morro coberto de mata virgem ao pé do qual deixara a minha casa mas, sobretudo meus pais e minha irmã Ana com sérios problemas de locomoção, sequelas da paralisia infantil que a acometera numa época em que ainda não se dispunha de vacinas preventivas contra esse mal. Senti um enorme aperto no peito e por um nada não pedi ao Bertoldo para darmos meia volta e retornar para aquele paraíso que até aquela altura tinha sido o palco do meu mundo infantil com suas pessoas, seus espaços, caminhos e lugares únicos, o paraíso que jamais esqueci e esquecerei. Faltou pouco para chorar ao me dar conta que no futuro não passaria muito de um forasteiro que de quando em vez voltaria para, por alguns dias ou algumas horas, descansar na sombra do plátano gigante, embalado pelo farfalhar do vento em suas folhas e sonhar com a sinfonia das dezenas de pintassilgos na copa das araucárias plantadas por minha mãe. Controlei minhas emoções e em silêncio apeamos na frente do conjunto dos sólidos prédios do Colégio Santo Inácio. Na portaria esperava o encarregado de receber os “novatos”. No jargão do colégio era conhecido como “prefeito” da primeira divisão à qual eu seria integrado, “frater”, Urbano Müller (irmão no latim era nome dado aos jesuítas em formação antes de serem ordenados sacerdotes). Depois de deixar os meus poucos pertences em cima da minha cama no dormitório, descemos até a portaria, despedi-me do Bertoldo que montou no cavalo e, levando pela rédea o outro no qual eu viera, desceu o morro de volta para casa. Demorou um pouco para que a ficha caísse e me desse conta que naquela hora começava uma jornada, sem volta, a não ser que desistisse por conta própria, eventualidade que não estava nos meus planos e também não se concretizou. Para ser sincero, houve momentos em que faltou pouco para desistir e voltar para casa no saudoso Morro da Manteiga. As primeiras semanas foram muito sofridas. Chorava de saudades mas, meu “prefeito” Urbano Müller, embora fosse uma pessoa aparentemente séria e reservada foi de uma compreensão extraordinária nos momentos de saudade, uma saudade perto do limite suportável. Foi por ele que não desisti naquelas primeiras semanas e não voltei para casa para ser colono como meu pai e meus dois irmãos.