Da Enxada à Cátedra [ 19 ]

Formação no Nível Médio

Depois de concluídos os 4 anos na escola comunitária do Morro da Manteiga todos os meus colegas e minhas colegas seguiram o caminho para vida oferecido aos filhos e filhas de colono da época. Dedicaram-se em tempo integral nas lides da agricultura familiar somado aos afazeres domésticos complementares. Eu fui o único que se decidiu a continuar os estudos. Acontece que na época a única forma de um filho ou filha de colono normal continuar os estudos limitava-se a entrar num seminário em princípio para entrar na vida religiosa num internato para a formação de religiosos e ou religiosas. Todas as escolas de ensino médio localizavam-se em Porto Alegre e nas cidades maiores como Santa Maria, Santa Cruz do Sul, Cachoeira, São Leopoldo, Caxias do Sul, Garibaldi e outras mais. A grande maioria eram particulares sob a direção de ordens e congregações religiosas masculinas e/ou femininas. Paralelamente seminários destinados à formação do clero ofereciam um ensino e educação de alto nível em São Leopoldo, Santa Maria, Cerro Largo, Gravataí, Salvador do Sul, todos sob a orientação dos jesuítas. Em outros centros maiores capuchinhos, franciscanos, josefinos, redentoristas, irmãos maristas e lassalistas mantinham as casas de formação no nível médio para os pretendentes à filiação às respetivas ordens ou congregações. Os jesuítas construíram o Colégio Santo Inácio, também conhecido como Escola Apostólica, em Salvador do Sul, admitindo exclusivamente candidatos que, em princípio, ingressariam na Ordem após concluído o ensino médio ou o ginásio. Os meninos e meninas egressas das escolas comunitárias desejosas de continuar os estudos encontravam nessas instituições a saída para suas pretensões de continuar os estudos. O argumento para obter a concordância dos pais para as meninas resumia-se na intenção de tornarem-se religiosas e meninos de ficarem padres ou irmãos. Aqui é o lugar para chamar atenção para o detalhe que o argumento dos filhos e filhas pretenderem entrar numa ordem religiosa ou optar por serem sacerdotes diocesanos ou seculares, dificilmente não convencia os pais. Encontramo-nos num período em que a religião e sua prática festejava, como valor dos valores, um florescimento fora do comum no interior colonial, inclusive nas cidades maiores como Porto Alegre, concentrando elites católicas de todas as classes sociais e organizações como a Ação Católica e as Congregações Marianas. A Ação Católica atuava em quatro níveis: a JUC – Juventude Universitária Católica; a JEC – Juventude Estudantil Católica; a JOC – Juventude Operária Católica; a JIC – Juventude Independente Católica; - JAC – Juventude Agrária Católica. As Congregações Marianas, instrumento de formação religiosa preferida pelos jesuítas, também congregava seus associados de acordo com o critério da formação, principalmente em Porto Alegre, com sede no Colégio Anchieta, então na rua Duque de Caxias, perto da catedral. Lá reuniam-se semanalmente os associados da Congregação dos Formados em nível universitário; da Congregação dos estudantes universitários, da Congregação dos estudantes do ensino médio. No interior colonial, tomando como referência as paróquias administradas por jesuítas, uma Congregação Mariana para rapazes solteiros e outra para as moças solteiras, as famosas “Filhas de Maria”, faziam parte obrigatória da atividade pastoral. Em não poucas comunidades dessas os rapazes costumavam ostentar a fita azul da congregação na cerimônia dos respetivos casamentos. Achei pertinente esse inciso para dar uma ideia de como a religiosidade permeava o quotidiano das comunidades coloniais onde as obrigações religiosas costumavam ser cumpridas com o máximo rigor. Nesse cenário a família com um seminarista, um irmão, um sacerdote ou uma religiosa, gozava de um prestígio todo especial. Entende-se assim que raramente um pai ou uma mãe fazia objeções ou impedia o filho de ir para o seminário para “ficar padre” ou “irmão” e uma filha para um colégio de religiosas para “ficar irmã”.

Envolto, por assim dizer, nessa atmosfera de religiosidade, que falei com meu pai e minha mãe da vontade que tinha de ir para o seminário e “ficar padre”. No percebi nenhum indício de alguma objeção ou tentativa de me demover do meu desejo. Com toda a honestidade, meus pais estavam acostumados a ouvir esse tipo de conversa com três irmãos e uma irmã mais velhos do que eu. Meu pai e minha mãe apenas deixaram claro que no dia em que eu fosse desistir, como tantos outros da nossa comunidade, poderia contar com seu apoio incondicional. Não tenho provas formais mas a intuição que não necessita de provas racionais me diz, que meus pais aceitaram mais esse sacrifício tendo em vista permitir ao mais novo dos filhos, mesmo ainda um menino de 11 anos, para embrenhar-se num universo do qual eles tinham apenas uma vaga ideia oferecida pelos jornais, almanaques e livros que costumavam ler nos fins de semana ou então à luz de uma lamparina de óleo de amendoim depois de um dia de trabalho duro. Aos meus pais rendo a minha homenagem e expresso a minha gratidão pela sabedoria e, principalmente pela abnegação e os sacrifícios adicionais, ao não colocarem nenhum obstáculo ao caminho pelo que eu havia optado. Já o haviam feito com o mesmo espírito no momento em que outros 3 filhos e uma das duas filhas trocaram a enxada pela carreira acadêmica entrando na vida religiosa. O Pe. Balduino seria convidado naquele remoto ano de 1942 para ocupar como fundador a cátedra de Etnografia e Etnologia na recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então Universidade do Rio Grande do Sul, mais tarde Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O Roberto cumpria seu estágio de docência, obrigatório para os estudantes jesuítas depois de concluída a Filosofia, lecionando Física, Química e Matemática no Colégio Catarinense. A Tecla, depois de formada no ginásio Bom Conselho, encontrava-se no noviciado das irmãs franciscanas em São Leopoldo. O Bertoldo depois de concluir o ginásio no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul, decidiu ficar com os pais e assumir como professor a escola comunitária do Morro da Manteiga. Numa época em que cada filho significava um reforço e um suporte precioso para os pais já desgastados pelo duro trabalho na enxada, no arado, na foice e no machado, não opor nenhum obstáculo para que 4 filhos homens e uma filha seguissem a carreira acadêmica, a atitude dos meus pais, repito de novo, foi de uma rara sabedoria e, ao mesmo tempo, de fidelidade à tradição da família. Vale lembrar aqui que dois irmãos do meu pai ordenaram-se sacerdotes, um secular ou diocesano e outro jesuíta. Este último por sinal como pároco coordenou a construção da catedral de Santa Cruz do Sul e três irmãs entraram na congregação das irmãs Franciscanas em São Leopoldo. Da parte da minha mãe uma tia foi irmã franciscana em Santa Maria e o tio mais novo sacerdote diocesano, pároco em Santa Clara do Sul e, mais tarde, até o fim da vida, pároco em Mato Leitão.

Mas, voltemos à minha jornada. A decisão de me tornar jesuíta teve tudo a ver com o pároco jesuíta em Salvador (Tupandi) e o fato de dois dos meus irmãos pertencerem aquela Ordem. Essa lógica levou-me para o Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul, para a minha formação no nível médio que levaria 8 anos, de 1942-1949, portanto dos 12 aos 20 anos. Esse internato aceitava em princípio somente meninos vocacionados para entrarem futuramente na Ordem dos jesuítas. Aqueles que descobriam no decorrer do ginásio que não era bem essa a sua vocação, ou voltavam para casa dos pais para trabalhar como colonos ou, essa era maioria, continuariam os estudos numa outra instituição. Não tenho em mãos estatísticas dos que perseveraram até o final do ginásio e de fato entraram na Ordem. Avalio que somavam em torno de 30%. Não me lembro quantos “novatos” entraram comigo no seminário em fevereiro de 1942. Em 1950 entraram comigo 20 no noviciado em Pareci Novo, certamente um número considerável comparando com os que hoje optam por entrar numa ordem religiosa.

Se não me falha a memória foi no dia 18 de fevereiro de 1942 que o Bertoldo, meu irmão, acompanhou-me a cavalo até o seminário no “Kappesberg”, como era conhecido nas redondezas. Meus poucos pertences, basicamente roupas, foram acomodados num alforje carregado no cavalo montado por mim. Quase no alto de Salvador do Sul, virei-me na sela e olhei para trás. Lá longe destacava-se contra o céu sem nuvens o morro coberto de mata virgem ao pé do qual deixara a minha casa mas, sobretudo meus pais e minha irmã Ana com sérios problemas de locomoção, sequelas da paralisia infantil que a acometera numa época em que ainda não se dispunha de vacinas preventivas contra esse mal. Senti um enorme aperto no peito e por um nada não pedi ao Bertoldo para darmos meia volta e retornar para aquele paraíso que até aquela altura tinha sido o palco do meu mundo infantil com suas pessoas, seus espaços, caminhos e lugares únicos, o paraíso que jamais esqueci e esquecerei. Faltou pouco para chorar ao me dar conta que no futuro não passaria muito de um forasteiro que de quando em vez voltaria para, por alguns dias ou algumas horas, descansar na sombra do plátano gigante, embalado pelo farfalhar do vento em suas folhas e sonhar com a sinfonia das dezenas de pintassilgos na copa das araucárias plantadas por minha mãe. Controlei minhas emoções e em silêncio apeamos na frente do conjunto dos sólidos prédios do Colégio Santo Inácio. Na portaria esperava o encarregado de receber os “novatos”. No jargão do colégio era conhecido como “prefeito” da primeira divisão à qual eu seria integrado, “frater”, Urbano Müller (irmão no latim era nome dado aos jesuítas em formação antes de serem ordenados sacerdotes). Depois de deixar os meus poucos pertences em cima da minha cama no dormitório, descemos até a portaria, despedi-me do Bertoldo que montou no cavalo e, levando pela rédea o outro no qual eu viera, desceu o morro de volta para casa. Demorou um pouco para que a ficha caísse e me desse conta que naquela hora começava uma jornada, sem volta, a não ser que desistisse por conta própria, eventualidade que não estava nos meus planos e também não se concretizou. Para ser sincero, houve momentos em que faltou pouco para desistir e voltar para casa no saudoso Morro da Manteiga. As primeiras semanas foram muito sofridas. Chorava de saudades mas, meu “prefeito” Urbano Müller, embora fosse uma pessoa aparentemente séria e reservada foi de uma compreensão extraordinária nos momentos de saudade, uma saudade perto do limite suportável. Foi por ele que não desisti naquelas primeiras semanas e não voltei para casa para ser colono como meu pai e meus dois irmãos.

Da Enxada à Cátedra [ 18 ]

Despedi-me do meu irmão Bertoldo e da entrada da portaria do colégio acompanhei-o descendo a encosta levando o meu cavalo na rédea de volta ao Morro da Manteiga que, lá longe se destacava do restante do planalto. Flagrei-me no meu íntimo com a sensação de que, daí para frente só voltaria esporadicamente para percorrer aqueles lugares, espaços e caminhos, e encontrar as pessoas que moldaram os fundamentos da minha personalidade. Confesso que naquela tarde e nas semanas seguintes chorei vezes sem conta com aquele cenário como pano de fundo. Mas, como menino de 12 anos recém completados, havia tomado a decisão de dedicar a vida a uma missão e não a uma simples profissão. Como já lembrei, na portaria esperava o Fr. Urbano Müller, prefeito da “divisão dos pequenos”, que seria meu orientador imediato. Ele apresentou-me a um aluno veterano, o Amaro Weber que seria o meu “anjo”, isto é, indicado para familiarizar-me com a rotina do dia a dia do internato. Acompanhou-me até o dormitório e me indicou a cama reservada para mim e me ajudou a guardar minhas roupas no devido lugar num grande armário para depois levar-me até a sala de estudos e, em seguida mostrar-me o refeitório, enfermaria, rouparia, salas de jogos, pátios e demais dependências da instituição. Alguns anos mais tarde esse meu “anjo” deixou o colégio e terminou como dono duma empresa de ônibus com sede em Curitiba.

Alguns dias depois fui levado, em companhia de outros “novatos” para o museu, lugar onde a pequena orquestra costumava fazer os ensaios. Pelo que me lembro o Pe. Frederico Maute, regente da orquestra, quis verificar se algum dos meninos tinha talento para integrar o conjunto. Como eu não tinha nenhum conhecimento de solfejo nem noção de como tocar algum instrumento de música, nem fui escolhido para tentar. Aliás nunca aprendi nos anos seguintes tocar um instrumento qualquer. Por menos de um ano participei do coral do colégio. Isso, porém, não impediu que apreciasse corais cantando, orquestras tocando, principalmente peças clássicas. Hoje ainda costumo dedicar a última meia hora do dia, ou um pouco mais para escutar música clássica ou popular de preferência alemã. Sempre gostei de música, mas nunca me interessei em ser músico.

Antes de começarem as aulas, nós novatos, fomos submetidos a uma exame para averiguar o nosso nível de conhecimento. Já lembrei mais acima que minha formação na escola elementar do Morro da Manteiga foi atropelada no meio do caminho com a implantação da Campanha de Nacionalização. Nos dois primeiros anos a escola ainda funcionava no velho estilo das colônias. A língua de ensino foi alemão, os livros impressos em caracteres góticos e nos manuscritos usava- se o “Süterlin”. A partir do 3o ano os decretos que disciplinavam a nacionalização da escola exigiam o português como língua de ensino. Os livros didáticos em alemão foram substituídos por outros em português e a escrita manual obrigatoriamente em letra latina. Como se pode concluir fui na prática alfabetizado duas vezes e de acordo com duas realidades de todo diferentes. Para encurtar. Com isso apresentei-me no Colégio Santo Inácio, um pouco mais do que alfabetizado. A avaliação do meu nível de conhecimentos e dos meus colegas também recém chegados, foi conduzido pelo irmão leigo jesuíta Vicente Slany que constou, se não me falha a memória, de um ditado, de uma breve redação e de uma entrevista oral. O resultado não podia ter sido outro. Fui matriculado no terceiro ano primário, o nível mais baixo da instituição. Em outras palavras comecei na prática, e pela terceira vez, da estaca zero. Na escola elementar aprendera o alemão ao ponto de ler livros e escrever cartas mas, sem condições para me inserir num nível um pouco mais adiantado do programa de estudos do colégio. Na época o tirocínio básico do colégio estava dividido em dois níveis: o Primário de dois anos, o terceiro e o quarto primário e cinco anos de Ginásio. Minha perspetiva, portanto, para ficar internado no Santo Inácio, somava no mínimo sete anos, caso não ocorresse um acidente de percurso. Fui contemplado com um desses acidentes de percurso que fez com que me demorasse 8 anos. Os detalhes desse acidente ficam para mais abaixo.

Em fins de fevereiro ou começos de março, não me lembro bem, teve início o ano escolar. O responsável pelo terceiro ano primário foi o já citado Ir. Vicente Slany, irmão jesuíta austríaco, representante emblemático daquela categoria de jesuítas (os Bruder – Irmãos) como eram carinhosamente chamadas nos colégios e paróquias onde se encarregavam da logística do funcionamento dessas instituições. Ficavam o resto da vida com a formação acadêmica que tinham ao entrar na Ordem. Conheci e convivi ainda com um bom número deles. Hoje pelo que me consta encontra-se em extinção essa importante classe de jesuítas, verdadeiros heróis que, no anonimato de pedreiros, marceneiros, escultores, motoristas de caminhão, ferreiros, enfermeiros, porteiros, encadernadores, cozinheiros, alfaiates, alguns com um nível de formação mais elaborado professores nos colégios, cumpriam com heroísmo sua parte como autênticos missionários. O Pe. Arthur Rabuske (in memoriam) dedicou um estudo à memória dos “Bruder”. Pois, o Ir. Slany fazia parte dessa categoria. Entrara na Ordem com uma formação mais aprimorada e foi destacado pelos superiores como professor responsável pela terceira série primária. Lembro-me dele como um homem alto e robusto, cabelo castanho cortado no estilo escovinha, sempre bem disposto, entusiasmado, mão firme sem ultrapassar os limites da razoabilidade, desenhista habilidoso e, sobretudo, talhado para lidar com aqueles meninos vindos da colônia, xucros, assutados que, não raro desandavam num sonoro choro de saudades de casa em meio a uma aula de geografia ou gramática. A admiração por esse homem foi muito mais duradoura do que aquele remoto ano de 1942. E sem eu me dar conta, parece que o Ir. Slany não se esqueceu daquele seu aluno que com ele aprendeu a desenhar navios e colocar os nomes de cada um dos componentes no devido lugar. A prova foi um desenho do seu punho especialmente feito para mim que ele me mandou lá de Curitiba onde passou últimos anos no Colégio Medianeira, mais de 30 anos depois. Antes, porém, de detalhar a formação que recebi nos 8 anos que passei no Santo Inácio, quero dar uma ideia da rotina do quotidiano daquele internato.

A rotina do dia a dia

Os um pouco mais de 100 internos estavam divididos em 3 divisões, de acordo com a idade e em parte também pelo nível de estudo em que se encontravam. Cada divisão encontrava-se sob a direção de um “prefeito”, isto é um jovem jesuíta que tinha concluído a faculdade de Filosofia e cumpria o período de 3 ou 4 anos de estágio de magistério obrigatório como parte da formação do jesuíta na época. Os prefeitos costumavam ser tratados como “fratres”, isto éirmãos” no latim para distingui-los dos irmãos leigos aos quais também já me referi. Meu prefeito na primeira divisão foi o Fr. Urbano Müller, já conhecido também de uma referência acima. Um “prefeito geral”, um padre com todos as etapas da formação jesuítica concluídas, coordenava a rotina das 3 divisões com seus “prefeitos”. O quarto do prefeito da respetiva divisão localizava-se num canto reservado do dormitório. Os dias normais de aula (segunda, terça, quinta, sexta e sábado obedeciam a uma rotina comum. De manhã às 5,30 o prefeito saía do quarto e com uma sineta na mão acordava os seus tutelados. Depois de meia hora, vestidos, rostos lavados nas bacias sobre um bidê ao lado da cama, as camas feitas, descíamos em fila até o campo de exportes. Alinhados novamente em filas começava a meia hora de ginástica. Consistia em alongamentos, flexões, enfim, exercícios corporais completos, conhecidos como “Ginástica Sueca”, comandada pelo prefeito ou um aluno escalado para tanto. Nos dias de chuva a ginástica acontecia debaixo de um telheiro no pátio ou nos espaçosos corredores do andar térreo. Depois da ginástica assistíamos à missa seguida do café da manhã. A partir das 8 h seguiam 4 aulas de 45 minutos com um recreio de meia hora entre as duas primeiras e duas últimas. O almoço era servido ao meio dia por um grupo de alunos que se alternavam semanalmente. Como já lembrei mais acima enquanto o corpo se alimentava o espírito recebia também a sua porção com a leitura de um livro a cargo de um aluno também indicado para essa trefa. Entretanto, observava-se silêncio e o “prefeito geral” circulava pelo recinto desencorajando qualquer tipo de quebra de disciplina. Seria desnecessário lembrar que a refeição começava e terminava com uma oração. Terminada a refeição, um grupo de internos, alternando-se a cada semana, encarregava-se de recolher a louça, lavá-la e guardá-la. Os demais saíam em fila até o pátio para uma hora de recreio com jogos que consistiam basicamente em apostas de corridas, caminhadas, cabo de guerra, tênis de mesa, basquete, jogos de mesa, prática de algum artesanato, tudo de acordo com as condições do tempo. O futebol costumava ser praticado nos domingos e/ou feriados. Seguiam-se duas horas de aula entre as 14 e as 16 horas. Às 16 h. servia-se um lanche para em seguida, em grupos os alunos darem conta das diferentes tarefas de faxina das salas de aula, dos corredores, dos dormitórios e demais dependências. Outro grupo costumava ser destacado para descascar batatas, aipim, frutas e ajudar o irmão cozinheiro a lavar panelas, abastecer a cozinha com lenha etc. Um terceiro grupo encarregava-se da limpeza dos pátios e campos de exporte e um quarto grupo cuidava do pomar e ajudava o irmão responsável pelas plantações. Chamo a atenção que todas as tarefas auxiliares de manutenção de uma instituição, normalmente a cargo de pessoas contratadas para tal, no caso do Colégio Santo Inácio, ficavam sob a responsabilidade dos próprios internos. Com essa contribuição pagavam parte da pensão reduzindo-a a um valor suportável para os pais que na sua quase totalidade eram simples colonos e não dispunham de muitos recursos para arcar com uma pensão mais cara. Meu pai, por ex., não tinhas as mínimas condições de custear meus estudos pagando uma anuidade como por ex. do Colégio Anchieta em Porto Alegre. Para tarefas mais cansativas como cuidar de bois, vacas e porcos, lavrar a terra e manter as plantações que abasteciam o internato, a direção empregava meia dúzia ou um pouco mais de rapazes da colônia que recebiam salário e, ao mesmo tempo, tinham ocasião de contarem com aulas à noite especialmente programadas para eles. Destacado para ministrar aulas de geografia, história e ciências para esses rapazes de 13 ou 14 anos, que comecei a minha carreira de professor em 1949 aos 19 anos e nunca mais parei até 2008 com 78 anos. Mas, essa é uma história que pretendo contar em detalhes mais abaixo. Depois desse inciso retomo a rotina diária do internato. O período das 17 às 19 h. era reservado ao chamávamos de “estudo sério”, isto é, dedicado a fazer as tarefas escolares para o dia seguinte. Seguia a janta às 19 h. e, para concluir a rotina diária, uma hora de recreio com exportes diversos ao ar livre quando o tempo o permitia ou nos corredores e salas de jogos quando chovia ou fazia muito frio. Seguia-se uma oração em comum na capela para em seguida subir nos dormitórios no terceiro andar para dormir.

O que acabei de detalhar resume a rotina dos dias normais de aula. Nos sábados à tarde, nos domingos e feriados, o ritmo tomava outra dinâmica. Nos sábados à tarde a primeira hora, ou hora e meia era reservada para o que chamávamos de “estudo livre”, isto é, dedicado a leituras do interesse de cada um sem compromisso com aulas. Essas leituras atendiam aos gostos e preferências individuais: romances, livros piedosos, romances históricos, relatos de viagens e por aí vai. Naquela fase da minha vida minhas preferências recaíam sobre romances históricos e, de modo especial, relatos de viagem. Aliás o primeiro livro que li, da primeira à última página, antes ainda de entrar no internato do seminário levava o título “Noni und Mani”. O livro conta a história da infância de dois irmãos, “Noni e Mani”, na longínqua Islândia lá perto do Ártico. O autor Jón Svenson foi o “Noni” da história. Mais tarde viveu como jesuíta na Alemanha quando descreveu sua infância vivida com o irmão, o “Mani” na ilha dos vulcões, das fontes quentes e dos invernos polares. Aquela leitura abriu para mim, melhor, escancarou para mim as janelas do grande, maravilhoso, misterioso e fantástico mundo de Deus e os povos que nele construíram e ainda constroem, cada qual à sua maneira, culturas únicas, plurais na sua forma, porém, unas na sua essência humana. Naquelas horas de “estudo livre”, melhor talvez “leitura livre”, devorei, entre outras a obra a de Swen Hedin, “Von Pol zu Pol” – “de Polo a Polo” e, dentre os romances históricos de Karl May aqueles que tinham como personagens os índios do centro oeste dos Estados Unidos, caçando livremente búfalos que pastavam aos milhões nas pradarias que, lá longe, se confundiam com o horizonte. Do mesmo escritor gravei na memória a descrição da viagem “De Bagdad a Istambul”. Devo ter lido mais do que uma dúzia da obra completa de Karl May. Depois do “estudo livre” seguia a faxina diária das dependências do internato, já descritas mais acima e após um banho de piscina tinha lugar a confissão semanal com um confessor de livre escola entre os padres da casa. Meu confessor predileto foi o Pe. Johannes Rick até o seu falecimento em maio de 1946. Com ele não havia “frescura”. Especialista mundialmente conhecido pelas pesquisas com fungos, costumava receber os penitentes com um chapéu surrado sobre a mesa e nele uma vistosa bosta de vaca coberta de fungos e ao lado uma lupa. Empurrava o chapéu e a lupa para o lado, colocava em seu lugar um crucifixo na sua frente, e sem maiores cerimônias e perguntas desnecessárias, resolvia a questão. A tarde do sábado terminava com uma hora de estudo, janta, mais uma hora de recreio com jogos diversos, uma visita em comum à capela e pelas 9 h. cama.

Falta falar do domingo e dias santos. O despertar se dava na mesma hora dos outros dias da semana. Seguia-se meia hora de ginástica, café, recreio seguido de missa cantada. Programações recreativas ocupavam o restante da manhã. Depois do almoço, sempre um pouco mais variado e caprichado do que o diário durante a semana, uma hora de recreio, em seguida a tão apreciada,pelo menos por mim, hora de “estudo livre”. Depois, até às 18,30 podiam ser ocupadas com jogos de futebol, voleibol, caminhadas, etc. Com mais um ou dois colegas costumava percorrer as trilhas abertas pela floresta virgem que cobria mais da metade da propriedade do colégio de em torno de 400 hectares. Micos, inhambus, aracuãs, tucanos, gatos do mato, até juaguartiricas, além de dezenas de espécies de pássaros de grande, médio e pequeno porte viviam naquele pedaço de paraíso. Atenção especial mereciam as numerosas jararacas que se multiplicavam naquele ambiente favorável e costumavam aproveitar as manchas de sol na beira das trilhas para se aquecer. A elas voltarei mais abaixo. No final da tarde pelas 18 h. acontecia a bênção do “Santíssimo” seguida da janta, uma hora de recreio, visita comum à capela e dormir, para na outra manhã recomeçar a rotina de uma nova semana.

Da Enxada à Cátedra [ 17 ]

O Colégio Santo Inácio

Antes de relembrar minha formação no nível médio nos 8 anos que passei no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul, penso ser oportuno falar um pouco sobre a natureza daquela instituição. Como já lembrei mais acima, recebia alunos em regime de internato principalmente do interior colonial que, em princípio, pretendiam entrar na Ordem dos Jesuítas depois de concluído o ginásio. Mas, o que me parece de um significado todo especial é chamar a atenção ao perfil da formação humana e acadêmica que se esperava dos egressos que passavam pelo currículo oferecido e praticado, somado aos recursos que complementavam a formação da personalidade como um todo.

O formato acadêmico e de formação humana do Colégio Santo Inácio foi inspirado no famoso “Colégio Stella Matutina” de Feldkirch na Áustria, moldado ao perfil do ideal de formação e educação nos colégios dos jesuítas, proposto na “Ratio Studiorum”. Este documento pode ser considerado a Carta Magna que, pelo menos naquela época ainda ditava a linha mestra da formação nas instituições de todos os níveis sob a responsabilidade da Companhia de Jesus. Os conteúdos foram organicamente planejados e acompanhados com as diretrizes didático pedagógicas e os instrumentos complementares indispensáveis para uma formação integral, como foi lembrado mais acima.

A implantação de colégios jesuítas têm o seu começo em 1548, portanto 8 anos depois da fundação oficial da Ordem pelo papa Júlio III. Santo Inácio e seus companheiros fundadores da Ordem estudavam humanidades na Universidade de Paris quando conceberam e deram formato definitivo ao projeto. Compreende-se assim que uma formação acadêmica aliada à religiosa fosse colocada entre os instrumentos mais importantes para a missão de evangelização que lhes cabia cumprir sob a autoridade direta do papa. Onde quer que implantassem uma nova sede de missão, a criação de uma escola contava entre as primeiras providências. Ao lado da catequese ensinavam as primeiras letras e mais tarde artes e ofícios. As primeiras escolas, ou “colégios”, datam de 1548. Multiplicaram-se e na medida em que os jesuítas se espalharam pela Europa e fora dela foram consolidando centros regionais de irradiação de evangelização. A multiplicação e dispersão dos “colégios” levou à uma perigosa pulverização dos conteúdos ensinados e dos métodos didático pedagógicos empregados nessas instituições. Em vista desse problema o Geral da Ordem Pe. Acquaviva formou uma comissão que, sob sua orientação, formulou e consolidou a codificação do “Plano de Estudos da Companhia de Jesus”. Depois de 15 anos de trabalho a comissão entregou o documento definitivo, intitulado “Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu”, conhecida normalmente como “Ratio Studiorum”. A partir de 1599 esse documento tornou-se o manual didático pedagógico obrigatório em todos os colégios sob a responsabilidade dos jesuítas espalhados pelo mundo todo. A essência do documento consistia em garantir a uniformidade de procedimentos em moldar a mente e o coração dos educandos dos jesuítas em meio à turbulência causada pelo movimento reformista do século XVI. Nesse formato a “Ratio Studiorum” serviu de orientação por dois séculos, a todos os “colégios” sob a orientação dos jesuítas, até a supressão da Ordem pelo papa Clemente XIV em 1773. Depois que a Companhia de Jesus, como que retornada de um retiro compulsório de 40 anos, foi restaurada por Pio VII em 1814, o Superior Geral constituiu um comissão a fim de revisar e atualizar a “Ratio Studiorum”. A nova versão foi concluída em 1832 com 29 conjuntos de normas, uma a menos que a original. Numa análise mais minuciosa do documento aparece nas linhas mas, principalmente nas entrelinhas, o dedo de Santo Inácio de Loiola influenciado pelos estudos em Paris, num momento em que se encontrava em alta o interesse pelo humanismo renascentista e a retomada do tomismo.

A “Ratio Studiorum” previa três níveis de formação com seus currículos funcionalmente estruturados. A formação teológica com 4 anos de duração abrangendo a Teologia Escolástica e Moral, a Sagrada Escritura, Direito Canônico, e História da Igreja; a formação filosófica exigia 3 anos com as doutrinas de Aristóteles e Santo Tomas de Aquino como base; a formação Humanística, com duração de seis a sete anos, subdividia em cinco classes e cinco horas de aula por dia focadas na Retórica, Humanidades, Gramática Superior, Média e inferior. A proposta da “Ratio” insistia na estreita vinculação entre a formação intelectual clássica e a formação moral com assento nas virtudes cristãs e sua prática. Para tanto previa modalidades curriculares que levassem a atingir esses objetivos; processos de admissão, acompanhamento do progresso e a promoção dos alunos; métodos de ensino e aprendizagem; condutas, e posturas respeitosas dos professores e alunos; textos indicados para o estudo e a leitura; variedade dos exercícios e atividades escolares; frequência e seriedade aos exercícios religiosos; hierarquia organizacional e categorias de subordinação. E, para obter os resultados concretos necessários para o nível de formação proposta, exigiam-se composições escritas aprimoradas; liam-se os autores gregos e romanos, com ênfase em Aristóteles, Sócrates, Platão, Homero, Píndaro, Aristófanes, Cícero, Tertuliano, Horácio, Virgílio, Tácito e demais clássicos. A eles somavam-se literatos e pensadores alinhados ao pensamento oficial da Igreja, com destaque para Tomás de Aquino, Agostinho, Suarez, etc. Uma importância toda especial merecia a Retórica com o objetivo de formar oradores de alto nível. Lembro-me perfeitamente que no último ano do ginásio em 1949, decoramos a primeira das Catilinárias de Cícero e encenamos no original em latim o julgamento de Catilina, com um júri, Catilina sentado no banco dos réus e um colega meu considerado o melhor orador da turma, introduzindo a acusação: Quo usque tandem Catilina abuteris patientia nostra...“Até quando Catilina abusarás da nossa paciência!” O estudo profundo da Latim desde o primeiro ano do ginásio com uma hora de aula todos os dias e a partir de certa altura com a leitura dos clássicos, o manejo das regras gramaticais, a assimilação do espírito da língua facilitava o aprendizado das línguas modernas que iam sendo inseridas gradativamente no currículo. Esse aprendizado de cunho mais teórico vinha acompanhado de atividades complementares como teatros, discursos, declamações, academias, pregações no refeitório, leituras durante as refeições de acordo com o princípio “enquanto o corpo se alimenta, convém que o espírito também se alimente. Nunca vou esquecer as leituras durante as refeições ao meio dia e à noite. Os livros escolhidos costumavam ser romances históricos, relatos de viajantes, livros de história e geografia e outros. Não seria capaz de quantificar de memória o número de livros e qualificar os conteúdos e, ao mesmo tempo o que significaram aquelas leituras em termos de acréscimo à minha formação. Só para exemplificar. Apropriei-me dos detalhes da história da Revolução Francesa num livro lido durante a refeição. Mais abaixo devo voltar ao assunto com mais detalhes. Mais acima já lembrei a formação complementar oferecida no Colégio Anchieta em Porto Alegre, valendo-se das Congregações Marianas, formando uma elite intelectual que ficou famosa pela sua influência em todos os níveis entre 1920 e 1960. E, para provar a excelência do método da “Ratio Studiorum” vale lembrar que representantes dos mais influentes na revolução do pensamento formaram-se em instituições dos jesuítas. Cito alguns obrigatoriamente conhecidos, estudados e citados pela sua importância nas letras, artes, ciências e de modo especial na filosofia: Cervantes, Antônio Vieira, Bernardes, Montesquieu, Voltaire, Moliére, Descartes, Bossuet, Fontenelle, Bertholet, Gregório de Matos, Cláudio M. d da Costa, Alvarenga Peixoto, Caldas Barbosa e muitos outros. Paulsen, escritor protestante deixou uma avaliação da importância da “Ratio”, mais ou menos nos seguintes termos. Não se pode por em dúvida que “a Ratio Studiorum” tenha sido elaborado com grande cuidado e diligência. Não há como contestar no seu conjunto seu plano de estudos adaptado perfeitamente às exigências do tempo. Foi com certeza que com esse método que a Ordem promoveu com grande êxito a difusão do conhecimento das línguas clássicas nos países católicos onde os jesuítas atuavam como os mestres mais bem instruídos e mais zelosos.

O colégio “Stella Matutina” foi talvez a mais genuína instituição de ensino dos jesuítas na aplicação do modelo educacional proposto pela “Ratio Studiorum”. Sua história várias vezes secular divide- se em três períodos. O primeiro começa com sua fundação em 1649 e encerra em 1773 com a supressão da Ordem por Clemente XIV. O segundo período e certamente o de maior brilho e pujança começou em 1856 incentivado pelo imperador da Áustria Francisco José I e o papa Pio IX e seu primeiro Reitor, o Pe. Clemens FallerNovamente fechado com o começo da I Guerra Mundial. Essa segunda fase foi com certeza a de maior pujança quando o “Stella Matutina” atraiu estudantes de países de fora da Áustria: Hungria, Polônia, República Tcheca, Itália, Alemanha, França, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos. Um detalhe que merece atenção e hoje causa espanto para não poucos responsáveis pelo ensino médio no Brasil. Pela procedência dos alunos de tantos países diferentes, a língua de ensino e da comunicação do dia a dia veio a ser o Latim.

O perfil acadêmico do colégio desse período, de todo alinhado com a proposta da “Ratio Studiorum”, foi o que que mais influiu na modelagem dos colégios dos jesuítas no sul do Brasil. Em primeiro lugar merece ser lembrado a Missão do sul do Brasil dependia da província alemã e não poucos dos que foram destinados para cá tinham sido alunos do Stella Matutina ou tinham lecionado no colégio e de qualquer forma todos tinham conhecimento da excelência da formação que oferecia, inclusive o seu primeiro reitor Clemens Faller. Cito apenas alguns nomes de jesuítas ex-alunos e/ou professores que marcaram época na consolidação da colonização, na educação, na pastoral, em projetos de desenvolvimento econômico e promoção humama e na pesquisa científica. Limito-me às personalidades mais marcantes: Clemens Faller, Theodor Amstad, Max von Lassberg, Joseph von Lassberg, Johannes Rick, Ferdinand Theissen, Jakob Fäh, Ferdinand Feldhaus, e muitos outros. Em segundo lugar cabe destacar que os colégios que levaram o ensino médio do Rio Grande do Sul e Santa Catarina a um nível de excelência tal que foram equiparados pelo Ministério da Educação ao Colégio D. Pedro II, referência de excelência nacional, foram fundados nesse período: o Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo, o Colégio Gonzaga em Pelotas, o Stella Maris em Rio Grande, o Colégio Anchieta em Porto Alegre, o Colégio Catarinense em Florianópolis. O Stella Matutina foi novamente fechado em 1938 pelos nazistas e reaberto em 1946. Encerrou finalmente suas atividades acadêmicas em 1979. Hoje os prédios abrigam o “Voralberger Landeskonservatorium” uma escola de música com 400 estudantes.

Justifico a minha demora em detalhar, embora superficialmente, o modelo educacional dos jesuítas, a “Ratio Studiorum” que contempla todos os níveis da formação acadêmica, desde o ensino fundamental, passando pelo médio, o superior com ênfase nas letras clássicas, humanidades, retórica, filosofia, teologia, formação ascética e moral pois, minha formação acadêmica aconteceu nesse modelo de formação. O Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul fora moldado nesse formato, servindo assim de porta de entrada para o tirocínio obrigatório para qualquer jesuíta da época. Como estava decidido entrar na Ordem importava realizar metaforicamente uma “travessia do Rubicão”, a porta de entrada sem volta de uma jornada que seria concluída 21 anos mais tarde.

Da Enxada à Cátedra [ 16 ]

Formação no Nível Médio

Depois de concluídos os 4 anos na escola comunitária do Morro da Manteiga todos os meus colegas e minhas colegas seguiram o caminho para vida oferecido aos filhos e filhas de colono da época. Dedicaram-se em tempo integral nas lides da agricultura familiar somado aos afazeres domésticos complementares. Eu fui o único que se decidiu a continuar os estudos. Acontece que na época a única forma de um filho ou filha de colono normal continuar os estudos limitava-se a entrar num seminário em princípio para entrar na vida religiosa num internato para a formação de religiosos e ou religiosas. Todas as escolas de ensino médio localizavam-se em Porto Alegre e nas cidades maiores como Santa Maria, Santa Cruz do Sul, Cachoeira, São Leopoldo, Caxias do Sul, Garibaldi e outras mais. A grande maioria eram particulares sob a direção de ordens e congregações religiosas masculinas e/ou femininas. Paralelamente seminários destinados à formação do clero ofereciam um ensino e educação de alto nível em São Leopoldo, Santa Maria, Cerro Largo, Gravataí, Salvador do Sul, todos sob a orientação dos jesuítas. Em outros centros maiores capuchinhos, franciscanos, josefinos, redentoristas, irmãos maristas e lassalistas mantinham as casas de formação no nível médio para os pretendentes à filiação às respetivas ordens ou congregações. Os jesuítas construíram o Colégio Santo Inácio, também conhecido como Escola Apostólica, em Salvador do Sul, admitindo exclusivamente candidatos que, em princípio, ingressariam na Ordem após concluído o ensino médio ou o ginásio. Os meninos e meninas egressas das escolas comunitárias desejosas de continuar os estudos encontravam nessas instituições a saída para suas pretensões de continuar os estudos. O argumento para obter a concordância dos pais para as meninas resumia-se na intenção de tornarem-se religiosas e meninos de ficarem padres ou irmãos. Aqui é o lugar para chamar atenção para o detalhe que o argumento dos filhos e filhas pretenderem entrar numa ordem religiosa ou optar por serem sacerdotes diocesanos ou seculares, dificilmente não convencia os pais. Encontramo-nos num período em que a religião e sua prática festejava, como valor dos valores, um florescimento fora do comum no interior colonial, inclusive nas cidades maiores como Porto Alegre, concentrando elites católicas de todas as classes sociais e organizações como a Ação Católica e as Congregações Marianas. A Ação Católica atuava em quatro níveis: a JUC – Juventude Universitária Católica; a JEC – Juventude Estudantil Católica; a JOC – Juventude Operária Católica; a JIC – Juventude Independente Católica; - JAC – Juventude Agrária Católica. As Congregações Marianas, instrumento de formação religiosa preferida pelos jesuítas, também congregava seus associados de acordo com o critério da formação, principalmente em Porto Alegre, com sede no Colégio Anchieta, então na rua Duque de Caxias, perto da catedral. Lá reuniam-se semanalmente os associados da Congregação dos Formados em nível universitário; da Congregação dos estudantes universitários, da Congregação dos estudantes do ensino médio. No interior colonial, tomando como referência as paróquias administradas por jesuítas, uma Congregação Mariana para rapazes solteiros e outra para as moças solteiras, as famosas “Filhas de Maria”, faziam parte obrigatória da atividade pastoral. Em não poucas comunidades dessas os rapazes costumavam ostentar a fita azul da congregação na cerimônia dos respetivos casamentos. Achei pertinente esse inciso para dar uma ideia de como a religiosidade permeava o quotidiano das comunidades coloniais onde as obrigações religiosas costumavam ser cumpridas com o máximo rigor. Nesse cenário a família com um seminarista, um irmão, um sacerdote ou uma religiosa, gozava de um prestígio todo especial. Entende-se assim que raramente um pai ou uma mãe fazia objeções ou impedia o filho de ir para o seminário para “ficar padre” ou “irmão” e uma filha para um colégio de religiosas para “ficar irmã”.

Envolto, por assim dizer, nessa atmosfera de religiosidade, que falei com meu pai e minha mãe da vontade que tinha de ir para o seminário e “ficar padre”. No percebi nenhum indício de alguma objeção ou tentativa de me demover do meu desejo. Com toda a honestidade, meus pais estavam acostumados a ouvir esse tipo de conversa com três irmãos e uma irmã mais velhos do que eu. Meu pai e minha mãe apenas deixaram claro que no dia em que eu fosse desistir, como tantos outros da nossa comunidade, poderia contar com seu apoio incondicional. Não tenho provas formais mas a intuição que não necessita de provas racionais me diz, que meus pais aceitaram mais esse sacrifício tendo em vista permitir ao mais novo dos filhos, mesmo ainda um menino de 11 anos, para embrenhar-se num universo do qual eles tinham apenas uma vaga ideia oferecida pelos jornais, almanaques e livros que costumavam ler nos fins de semana ou então à luz de uma lamparina de óleo de amendoim depois de um dia de trabalho duro. Aos meus pais rendo a minha homenagem e expresso a minha gratidão pela sabedoria e, principalmente pela abnegação e os sacrifícios adicionais, ao não colocarem nenhum obstáculo ao caminho pelo que eu havia optado. Já o haviam feito com o mesmo espírito no momento em que outros 3 filhos e uma das duas filhas trocaram a enxada pela carreira acadêmica entrando na vida religiosa. O Pe. Balduino seria convidado naquele remoto ano de 1942 para ocupar como fundador a cátedra de Etnografia e Etnologia na recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então Universidade do Rio Grande do Sul, mais tarde Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O Roberto cumpria seu estágio de docência, obrigatório para os estudantes jesuítas depois de concluída a Filosofia, lecionando Física, Química e Matemática no Colégio Catarinense. A Tecla, depois de formada no ginásio Bom Conselho, encontrava-se no noviciado das irmãs franciscanas em São Leopoldo. O Bertoldo depois de concluir o ginásio no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul, decidiu ficar com os pais e assumir como professor a escola comunitária do Morro da Manteiga. Numa época em que cada filho significava um reforço e um suporte precioso para os pais já desgastados pelo duro trabalho na enxada, no arado, na foice e no machado, não opor nenhum obstáculo para que 4 filhos homens e uma filha seguissem a carreira acadêmica, a atitude dos meus pais, repito de novo, foi de uma rara sabedoria e, ao mesmo tempo, de fidelidade à tradição da família. Vale lembrar aqui que dois irmãos do meu pai ordenaram-se sacerdotes, um secular ou diocesano e outro jesuíta. Este último por sinal como pároco coordenou a construção da catedral de Santa Cruz do Sul e três irmãs entraram na congregação das irmãs Franciscanas em São Leopoldo. Da parte da minha mãe uma tia foi irmã franciscana em Santa Maria e o tio mais novo sacerdote diocesano, pároco em Santa Clara do Sul e, mais tarde, até o fim da vida, pároco em Mato Leitão.

Mas, voltemos à minha jornada. A decisão de me tornar jesuíta teve tudo a ver com o pároco jesuíta em Salvador (Tupandi) e o fato de dois dos meus irmãos pertencerem aquela Ordem. Essa lógica levou-me para o Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul, para a minha formação no nível médio que levaria 8 anos, de 1942-1949, portanto dos 12 aos 20 anos. Esse internato aceitava em princípio somente meninos vocacionados para entrarem futuramente na Ordem dos jesuítas. Aqueles que descobriam no decorrer do ginásio que não era bem essa a sua vocação, ou voltavam para casa dos pais para trabalhar como colonos ou, essa era maioria, continuariam os estudos numa outra instituição. Não tenho em mãos estatísticas dos que perseveraram até o final do ginásio e de fato entraram na Ordem. Avalio que somavam em torno de 30%. Não me lembro quantos “novatos” entraram comigo no seminário em fevereiro de 1942. Em 1950 entraram comigo 20 no noviciado em Pareci Novo, certamente um número considerável comparando com os que hoje optam por entrar numa ordem religiosa.

Se não me falha a memória foi no dia 18 de fevereiro de 1942 que o Bertoldo, meu irmão, acompanhou-me a cavalo até o seminário no “Kappesberg”, como era conhecido nas redondezas. Meus poucos pertences, basicamente roupas, foram acomodados num alforje carregado no cavalo montado por mim. Quase no alto de Salvador do Sul, virei-me na sela e olhei para trás. Lá longe destacava-se contra o céu sem nuvens o morro coberto de mata virgem ao pé do qual deixara a minha casa mas, sobretudo meus pais e minha irmã Ana com sérios problemas de locomoção, sequelas da paralisia infantil que a acometera numa época em que ainda não se dispunha de vacinas preventivas contra esse mal. Senti um enorme aperto no peito e por um nada não pedi ao Bertoldo para darmos meia volta e retornar para aquele paraíso que até aquela altura tinha sido o palco do meu mundo infantil com suas pessoas, seus espaços, caminhos e lugares únicos, o paraíso que jamais esqueci e esquecerei. Faltou pouco para chorar ao me dar conta que no futuro não passaria muito de um forasteiro que de quando em vez voltaria para, por alguns dias ou algumas horas, descansar na sombra do plátano gigante, embalado pelo farfalhar do vento em suas folhas e sonhar com a sinfonia das dezenas de pintassilgos na copa das araucárias plantadas por minha mãe. Controlei minhas emoções e em silêncio apeamos na frente do conjunto dos sólidos prédios do Colégio Santo Inácio. Na portaria esperava o encarregado de receber os “novatos”. No jargão do colégio era conhecido como “prefeito” da primeira divisão à qual eu seria integrado, “frater”, Urbano Müller (irmão no latim era nome dado aos jesuítas em formação antes de serem ordenados sacerdotes). Depois de deixar os meus poucos pertences em cima da minha cama no dormitório, descemos até a portaria, despedi-me do Bertoldo que montou no cavalo e, levando pela rédea o outro no qual eu viera, desceu o morro de volta para casa. Demorou um pouco para que a ficha caísse e me desse conta que naquela hora começava uma jornada, sem volta, a não ser que desistisse por conta própria, eventualidade que não estava nos meus planos e também não se concretizou. Para ser sincero, houve momentos em que faltou pouco para desistir e voltar para casa no saudoso Morro da Manteiga. As primeiras semanas foram muito sofridas. Chorava de saudades mas, meu “prefeito” Urbano Müller, embora fosse uma pessoa aparentemente séria e reservada foi de uma compreensão extraordinária nos momentos de saudade, uma saudade perto do limite suportável. Foi por ele que não desisti naquelas primeiras semanas e não voltei para casa para ser colono como meu pai e meus dois irmãos.

Da Enxada à Cátedra [ 15 ]

A caminho da escola.

A distância da minha casa até a escola somava em torno de 3 quilômetros. Falar em estrada nem pensar. Em todo o Morro da manteiga as “estradas” não passavam de caminhos que comportavam no máximo o trânsito de carroças puxadas por bois. Em não poucos casos não passavam de trilhas pelo mato transitáveis apenas a pé ou por muito favor a cavalo. O trajeto percorrido diariamente por mim e minhas sobrinhas era um desses caminhos que interligava a nossa propriedade com a de três outros vizinhos. Permitia o trânsito de carroças pequenas de 4 rodas e puxadas por uma parelha de bois, feitas para atender às demandas de cada proprietário. Em períodos de chuva transformavam-se numa sucessão de lodaçais e atoleiros, de torrentes de água nas descidas além de escorregadias com o leito minado de pedras expostas. Sapatos e tênis não se conheciam. Em botas nem pensar. A única modalidade para caminhar nessas condições consistia em enfiar os chinelos ou tamancos na sacola ou carregá-los nas mãos e enfrentar a lama e os atoleiros de pés descalços. Ao lado da escola descia um córrego no qual lavávamos os pés para então calçar os chinelos ou tamancos e entrar na escola e assistir à aula. Não poucas crianças dispensavam simplesmente qualquer tipo de calçado, lavavam os pés e participavam da aula descalças. Durante o inverno essas caminhadas pela lama e caminhos escorregadios tornavam-se ainda mais complicadas. No Morro da Manteiga são frequentes as geadas nos meses de junho, julho e agosto. Não raro formavam-se placas de gelo sobre as poças de água. Chegados perto da escola lavamos os pés com os dedos roxos pelo frio na água gelada do riacho para depois nos acomodar-mos no recinto da escola e passar mais uma manhã avançando mais um passo na alfabetização e na aquisição dos diversos conhecimentos indispensáveis para o sucesso na vida de adultos, fosse como colonos e colonas, fosse em outras profissões, fosse no continuar o estudo e formação em nível mais adiantado. Revelar essa realidade a pessoas de menos de 60 anos e, mais ainda, às crianças e adolescentes de 2024, soa como uma fantasia ou até como uma mentira. Podem-me acusar de mentiroso, não me importo e o entendo. Admito que seja difícil e até impossível imaginar o estado daquele caminho de mais de 80 anos atrás, hoje asfaltado, embora o traçado seja praticamente o mesmo. Hoje Vans ou ônibus escolares buscam as crianças na porta das casas e as devolvem depois das aulas. Embarcam calçando tênis de marca e devidamente abrigadas contra o frio do inverno. Que maravilhoso que os tempos transformaram o caminho para a escola num passeio prazeroso e nenhuma criança de hoje seja obrigada a assistir as aulas descalça, com os pés não poucas vezes machucados, roxos e tremendo de frio. E, contudo, seus olhos brilhavam de satisfação a cada letra que conseguiam escrever, a cada sílaba que aprendiam a ler, cada soma ou subtração, multiplicação ou divisão que logravam resolver e, finalmente o interiorizar dos valores familiares sociais, culturais e religiosos que lhes serviriam de norte para o resto da vida. Essas idas e voltas para a escola percorrendo descalço aquele caminho emblemático passando pelas roças de milho, feijão e mandioca e por duas manchas de mata virgem, numa uma gigantesca figueira do mato e um córrego cristalino, não foram apagadas da minha memória pelas décadas que passaram. Parece que foi ontem que, em companhia de uma dezena de meninos e meninas da vizinhança percorria aquela vereda hoje mascarada pelo asfalto, a sacola costurada pela mãe a tiracolo e dentro dela a lousa, o estilete, a indispensável merenda, o livro de leitura, o catecismo, os cadernos, o lápis e a caneta munida com uma pena “B12”. Não faltavam brincadeiras que, de vez em quando desandavam em desentendimentos mas, normalmente dentro dos limites esperáveis de crianças entre os 7 a 11 ou de 8 a 12 anos. Sempre havia o risco de numa correria ou num tombo a lousa quebrar na sacola o que infalivelmente terminava numa bela e sonora bronca ao voltar para casa. Não raro uma trovoada de verão nos surpreendia a meio caminho e voltávamos molhados que nem pintos para casa. Trocar a roupa encharcada e um chá quente de erva cidreira ou marcela, servia para espantar um possível resfriado.

Concluo com essas recordações a primeira etapa da minha longa trajetória subindo patamar por patamar, na minha formação profana e religiosa, pelo ensino médio, o bacharelado em Línguas e Literatura Clássica, bacharelado em Filosofia, bacharelado em História Natural e Geologia e, finalmente a Licenciatura em Teologia. Mais tarde, em 1976 conquistei o título de Livre Docente em Antropologia e o Doutor em Filosofia, seguido em 1988 com um estágio de Pós-doutorado na Université V, René Descartes” de Paris.

E, para concluir, chamo a atenção que a coroação do período escolar de 4 anos acontecia com a “comunhão solene”. Durante a semana depois da Páscoa os alunos que tinham concluído os 4 anos eram submetidos a uma imersão para valer no catecismo em preparação da “Comunhão Solene” no domingo da Pascoela. Esse acontecimento fazia parte das solenidades litúrgicasobrigatórias do ano. Eu, da minha parte, não participei desse evento que marcava o começo do engajamento em tempo integral nos afazeres diários entre os colonos, tanto para os meninos quanto para as meninas. Na ocasião já estudava como interno no colégio Santo Inácio em Salvador do Sul.

Da Enxada à Cátedra [ 14 ]

Falando agora em medidas repressivas cai em vista o fechamento puro e simples de 241 escolas embora o Interventor Federal Cordeiro de Farias afirmasse que mandou fechar apenas 90. A outra página negra escrita pela nacionalização ou “abrasileiramento” das escolas comunitárias foi a prisão de um número considerável de professores que, ou ignoraram as novas regras ou tentaram de alguma forma contorná-las. À prisão ou constrangimento policial de professores acresceu um episódio ainda mais escabroso pela forma como foi conduzido e executado e pela identidade e representatividade dos personagens e autoridades envolvidas: o fechamento das escolas normais formadores de professores para as escolas comunitárias, a de São Leopoldo dos protestantes e de Hamburgo Velho dos católicos. Já que minhas memórias tem a ver com a de Hamburgo Velho, foco minha memória nela. À história minuciosa dessa Escola Normal dediquei um capítulo da minha história da Escola Teuto-Brasileira a ser publicada. Pincei a passagem dessa publicação em que detalhei o episódio e as circunstâncias daquele 25 de julho de 1939. O Secretário da Educação e Saúde Pública, Dr. Coelho de Souza viajou para Novo Hamburgo acompanhado do Dr. Bonifácio Paranhos da Costa, diretor do Departamento da Saúde e da professora Olga Acauan Geyer, diretora da Instrução Pública do Estado. O Secretário e comitiva foram examinar o terreno no qual seria construído um grupo escolar. Assistiram também à solene instalação do centro de saúde e a inauguração de um consultório médico escolar. Concluídas as solenidades, o sr. Leopoldo Petry, presidente da Sociedade União Popular, mantenedora da Escola Normal, convidou o Secretário da Educação e sua comitiva para participarem das comemorações do Dia do Colono, organizadas pelo corpo docente e discente da Escola Normal. A bomba foi detonada pelo discurso proferido por um dos alunos, na presença do Secretário da Educação e Saúde Pública que assim registrou a sua ira em “Denúncia”, livro de sua autoria.

No decorrer de sua prolongada arenga, o improvisado tribuno teve a oportunidade de declarar que era necessário o culto das tradições germânicas, que nenhum alemão ou descendente de alemão deveria se afastar, um milímetro sequer, da língua e de seus antepassados. Acrescentou que todos deveriam, habitantes do Rio Grande do Sul ou de qualquer outro recanto do mundo, seguir os ensinamentos da grande Alemanha. Nesse tom o pequeno aluno da Escola Normal da Sociedade União Popular Católica de Novo Hamburgo, foi até o final do discurso que para ele prepararam. (Coelho de Souza, 1941, p. 113)

Coelho de Souza, como é compreensível, interpretou o discurso como declaração de rebeldia contra os decretos do Interventor do Estado, obrigando a escola e o ensino a se “abrasileirar”. Cometeu uma injustiça imperdoável ao jogar sem mais nem menos a responsabilidade do conteúdo nas costas do diretor da escola, o Pe. Miguel Meier. Os documentos provam que o Pe. Meier não teve conhecimento prévio do conteúdo do discurso na sua versão apresentada. Não foi uma omissão leviana da sua parte, mas uma infeliz ideia do prof. de português, Reinaldo Krauspenhar. O caráter de rebeldia às ordens e diretrizes da Secretaria de Educação foi exagerado além do razoável, por uma série de razões, entre as quais merecem destaque. Em primeiro lugar, foi a ocasião em que as tensões acumuladas há mais tempo entre o Secretário da Educação, a direção da Escola Normal, da Diretoria da Sociedade União Popular e do arcebispo D. João Becker chegaram ao limite crítico e terminaram numa ruidosa explosão. Em segundo lugar, a importância do episódio foi exagerada, pintado com cores carregadas de animosidade e deturpado em detalhes essenciais. Não ficou claro se foi produto da inabilidade dos jornalistas, da irresponsabilidade ou de má fé. Nas circunstâncias tumultuadas de então, em meio à guerra declarada em que o episódio foi tratado e outros motivos isolados ou combinados, devem ter contribuído para o desfecho nada conciliatório do problema.

De qualquer maneira, o infeliz episódio teve desdobramentos imediatos e culminaria com o fechamento da Escola Normal. O Secretário respondeu ao aluno orador com um improviso raivoso, deixando claro que a linha defendida pelo discurso jamais seria tolerada pelas autoridades do Estado. Nas entrelinhas do improviso ficou evidente que a represália não se esgotara com a fala do momento. E, de fato, o primeiro passo foi um encontro com o Interventor Cordeiro de Farias. Oficialmente nada transpareceu do que foi falado e decidido. Tomando-se, porém, como base a sequência dos fatos é lícito concluir que uma parte da conversa versou sobre a conquista do Arcebispo como aliado para, de vez, neutralizar o foco de resistência à implantação da Nacionalização do ensino, representado pela Escola Normal, uma vez que ela formava os professores para as escolas comunitárias. A confirmação da suspeita veio com o encontro do Secretário Coelho de Souza, ainda na mesma noite, com D. João Becker. Os acertos na calada da noite, entre o Secretário e o Arcebispo foram resumidos numa matéria do Diário de Notícias. O jornal referiu que no encontro D. João Becker condenou com veemência o episódio ocorrido na Escola Normal; que ainda no decorrer daquela semana tomaria importantes medidas e baixaria severas instruções endereçadas ao clero sob sua jurisdição, com a finalidade de colaborar com o projeto de nacionalização posto e conduzido pelo poder público.

Parece que aqui cabe um inciso para chamar a atenção sobre a repercussão negativa da Campanha de Nacionalização sobre a própria religiosidade das comunidades como um todo no interior colonial. As instruções baixadas pelo arcebispo a seu clero, fruto dessa colaboração espúria com os instrumentos políticos a serviço de um Estado declaradamente autoritário e ditatorial, atingiram em cheio a instrução religiosa das crianças e adolescentes e a realimentação religiosa dos adultos e pessoas de idade. Com a proibição da língua alemã nas escolas a catequese das crianças migrou quase como que para a clandestinidade das catacumbas, no caso, para as capelas ou ainda casas particulares. Os sermões, palestras e encontros com a finalidade de cultivar os valores religiosos e a piedade das pessoas, foram proibidos sob a ameaça de intervenção policial. Parecem inacreditáveis fatos que aconteceram na igreja paroquial da minha comunidade em Tupandi. A polícia ficava rondando as proximidades da entrada da igreja e as pessoas assustadas e mudas entrando para assistir a missa e depois dela, também mudos e apressados voltar o mais rapidamente possível para as suas casas. Lembro-me de um domingo quando dois policiais invadiram a igreja durante a missa e recolheram os livros de reza em língua alemã inclusive de senhoras de idade. Quando uma delas reagiu ameaçando o policial com o chinelo, por pouco prenderam essa senhora de 70 ou mais anos. Ficaram para trás os alegres encontros de homens, rapazes, mulheres e moças em frente à igreja antes do começo da missa, para conversarem e porem em dia as novidades, contarem piadas e até combinar negócios. Acontece que a adesão à onda da nacionalização, do “abrasileiramento”, incentivada peloarcebispo, terminou contaminando também a maioria dos jesuítas nascidos no Brasil, já em atividade, mas principalmente aqueles em vias de formação. Note-se que, como Ordem isenta, não devia obediência às determinações da autoridade eclesiástica local. Lembro-me do depoimento escrito de um deles que declarou que era preciso tomar o lugar da “velha guarda” dos jesuítas alemães, deixar para trás a sua herança no nível sociocultural e alinhar o passo com a onda do “abrasileiramento”. Por estranho que possa parecer, contavam com o apoio do superior provincial nascido na Suíça.

Depois desse inciso voltemos aos desdobramentos envolvendo a Escola Normal de Hamburgo Velho. Como primeira providência foi instaurado um inquérito na Escola e sua efetuação confiada ao Dr. Ney Brito. Pelo que se pode deduzir o inquérito não revelou novidades importantes. “grande volume de material suspeito” de que falou a Folha da Tarde não passou de um exagero de imaginação pois, encontraram quatro números de uma revista alemã ilustrada nem disponível aos alunos. O Dr. Ney Brito simplesmente negou ao Pe. Miguel Meier explicações de defesa. Escolheu a dedo 4 alunos dos mais de 30 que frequentavam a Escola Normal para deporem. Tudo indica que o inquérito foi montado e conduzido para provar que a Escola Normal na verdade não passava de um foco de resistência ao projeto de nacionalização. A sentença do Secretário da Educação foi draconiana. Em primeiro lugar demitiu o Diretor Pe. Miguel Meier proibindo sua permanência na Escola. Em segundo lugar excluiu do corpo docente o prof. Krauspenhar e entregou seu destino à polícia, isto é, acusou-o de crime contra ordem pública. No meu entendimento o maior injustiçado nesse episódio foi o Pe. Miguel Meier, o “Pe. Miguelinho” como o chamávamos carinhosamenteentre os que o admiravam como especialista em pedagogia. Por exigência de D. João Becker foi, por assim dizer mandado para o exílio no Seminário Menor de Cerro Largo pertencente à diocese de Uruguaiana. O Secretário da Educação reforçou a validade de suas decisões com um argumento digno de reflexão para as circunstâncias em que hoje mais de 80 anos passados. Os demais detalhes e o lamentável fim da Escola Normal de Hamburgo Velho, parte de um projeto educacional que de fato educou e formou cidadãos comprometidos com a construção de uma Nação próspera fundamentada nos valores humanos e perenes que perpassam como linha mestra, como “Leitmotiv”, como perene, a história da humanidade, podem ser encontrados no meu estudo sobre a Escola Teuto-Brasileira, já mencionado mais acima e das análises criteriosas da profa. Isabel Arendt, sobre o mesmo tema.

Depois dessa digressão volto para a minha escola como todas demais atingidas em cheio pela arbitrariedade das autoridades responsáveis pela educação do Estado. Resumindo, nos dois primeiros anos aprendi a ler e a escrever de cordo com o figurino tradicional dessa escola. Durante o terceiro e o quarto ano fui obrigado, como todos os meus colegas a, por assim dizer, a reaprender a ler e a escrever segundo a nova cartilha imposta pelo “abrasileiramento”. O resultado não podia ser outro. Escrevia bem valendo-me da escrita gótica (Süterlin) além de ler fluentemente os livros impressos em gótico. A partir do terceiro ano aprendi a escrever com caracteres latinos, rudimentos da língua portuguesa, mas não ao ponto de me comunicar sofrivelmente e com dificuldade de entender a leitura de livros e impressos em geral. Os conhecimentos de geografia, história e estudo da natureza, que sempre foram áreas de minha preferência, estagnaram num nível bem abaixo do esperado dos egressos da escola tradicional. Em outras palavras. Conclui os quatro anos num nível um pouco acima da alfabetização. Essa realidade pouco animadora acompanhada por prejuízos difíceis de avaliar marcou negativamente a geração em idade escolar entre 1938 e 1945. Sem os jornais, revistas, almanaques, bibliotecas paroquiais, homilias, encontros culturais e por aí vai, interrompeu-se o fluxo da realimentação das tradições e a perpetuação do nível cultural dos pais e avós. Lamentavelmente a geração responsável pela perpetuação de uma herança comunitária rica e dinâmica da primeira metade do século XX terminou nas mãos de uma geração de analfabetos funcionais, com uma visão do mundo que não ultrapassava os limites dos interesses básicos das necessidades quotidianas.