Neste
cenário é possível destacar duas tendências antagônicas que levam a uma autêntica
“esquizofrenia” existencial. De um lado temos a excessiva exaltação da tecnocracia que priva
todos os seres vivos da sua autenticidade como criaturas. Recursos naturais,
plantas, animais e o próprio homem deixam de ter valor pela sua natureza. Valem
apenas na medida em que contribuem para acelerar o motor turbinado pela
tecnologia. Essa cosmovisão das realidades naturais minerais, vegetais,
animais, incluindo o homem, destrói pela base os dois pilares que garantem a
subsistência da criação e lhe conferem sentido. O primeiro desses pilares
poderíamos chamar de complementariedade sistêmica de tudo que pode ser
encontrado na natureza. O segundo pilar decorre logicamente do primeiro. Se
tudo na natureza acha-se interligado ao modo de uma síntese sistêmica, a cada
elemento, por mais sem importância que possa parecer, cabe uma função privativa que justifica sua
existência. Portanto, vem munido de uma identidade própria pelo simples fato
de, de alguma maneira e em algum grau, ser insubstituível. Na visão
tecnocrática radical essa identidade é negada ou pelo menos ignorada. Esse tipo
de tecnocracia lida com a natureza e seus recursos como meros objetos que se
valorizam enquanto úteis e se descartam quando se tornam obsoletos. Também a
pessoa humana termina sendo relativizada como as demais realidades naturais e tratada
como tal. Mede-se seu valor com a régua da utilidade e não pelo seu valor em
si. Aqui vem novamente à tona a causa fundamental da relação equivocada quando
o tecnocrata lida com a natureza, isto é, os fins justificando os meios e como consequência o relativismo ético e
moral. “Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros,
que provém do jogo do acaso ou dum determinismo
físico, corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da
reponsabilidade” (Laudato si, 118).
Ao
“antropocentrismo” exagerado contrapõe-se, do outro lado, o “biocentrismo” não menos exasperado. Este,
mal entendido, vem a complicar ainda mais o cenário caótico que resultou do
antropocentrismo, levado às últimas consequências. Paradoxalmente o poder da
tecnologia e seus benefícios nas mãos de uma minoria da humanidade degradou e
vai degradando cada vez mais a outra parte a uma massa de manobra em seu
benefício. Os recursos gerados pela tecnologia concentrados e controlados por
poucos impedem o acesso para assegurar um mínimo de conforto e dignidade a
dezenas de milhões de pessoas espalhadas por todos os continentes mas, de modo
mais gritante, nos países do terceiro mundo. Mas, este modelo e suas
consequências já foram objeto das reflexões mais acima. O biocentrismo peca
pelo nivelamento puro e simples da espécie humana com as demais, principalmente
espécies animais. Os sintomas dessa distorção podem ser percebidos nas mais
diversas situações. Ao longo das páginas acima vimos insistindo que o ser
humano, quanto à sua dimensão biológica insere-se ontologicamente na grande síntese
que é a natureza. Há porém, o elemento “inteligência reflexa”, a consciência
moral e a liberdade, que o alça a um patamar especial, para não dizer acima,
das demais criaturas. Essa realidade faz com que os compromissos com o mundo em
que vive não pode nivelá-lo pura e simplesmente com ele. Quando São Francisco de
Assis chama de “irmãos e irmãs” as criaturas da natureza isso deve ser
entendido no sentido metafórico. Descendemos dos mesmos ancestrais, como
espécie biológica, portanto, partilhamos para a vida e para a morte, dos dons
da natureza indispensáveis para viver. Cada ser vivo cumpre o seu papel para
manter em funcionamento o todo do sistema. Nesse sentido somos todos “irmãos e
irmãs” e como tal comprometidos nesse
nível. Mas, essa compreensão do homem inserido na natureza, esconde o risco de
distorcer e levar ao exagero o conceito
de “irmão e irmã” a tal ponto que o homem fica pura e simplesmente nivelado a
plantas e, principalmente animais. Em casos extremos ignora-se ou nega-se ao
homem aquilo que o torna de fato humano – “Menschlich” - que é a capacidade reflexiva, a consciência moral, a liberdade
com todas as suas consequências, a capacidade de emocionar-se frente às
diferentes vicissitudes da vida, de extasiar-se perante o belo, de expressar
seu estado de espírito pela arte e a literatura, de preocupa-se em progredir
sem nunca dizer basta, tanto material quanto espiritualmente e, sobretudo, perguntar donde veio, porque está aqui e qual o seu destino final. É
preocupante quando se escutam anúncios que oferecem planos funerários para toda
a família, inclusive o “pet”. Tendo em vista essa distorção a Encíclica alerta.
Um antropocentrismo
desordenado não deve ser necessariamente
ser substituído por um “biocentrismo” porque isso implicaria introduzir
um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas já existentes, mas
acrescentará novos. Não se pode exigir do ser humano um compromisso para com o
mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares
capacidades do conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade. (Laudato
si, 118)
Na
sua lendária sabedoria os antigos gregos nos legaram a fórmula que situa todos
os elementos da natureza no seu devido lugar na grande síntese e com isso
também a função que cabe a cada um para que o todo funcione sem
distorções. “Os minerais existem; Os vegetais existem e vegetam; Os animais
existem vegetam e sentem; O homem existe, vegeta, sente e raciocina”. Se os
sábios gregos tivessem tido conhecimento do micro e nano universo dos micro organismos,
com certeza, o teriam colocado entre os
minerais e os vegetais, como mais uma macro categoria de importância
fundamental na estrutura e funcionamento do todo do sistema natural. Mas, com
mais esse subsídio estamos em condições de avançarmos um passo a mais nas
reflexões sugeridas pela Encíclica.
O
antropocentrismo levado ao extremo termina no paradigma tecnocrático
transformando a tecnologia num instrumento de poder e em vez de ferramenta do
progresso, e como tal, a transforma em
fim, com todas as consequências apontadas mais acima. A Encíclica resumiu em
poucas palavras as consequências do antropocentrismo levado ao extremo.
A critica do
antropomorfismo desordenado não deveria deixar
em segundo plano também o valor das relações entre as pessoas. Se a
crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética,
cultural e espiritual da modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a nossa
relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações humanas
fundamentais. (Laudato si, 19)
Para
que esse passo possa ser dado no sentido de reconciliar a humanidade com “a sua
casa” e restabelecer justo equilíbrio
entre ambos, é preciso, ao mesmo tempo, remoldar a sociedade humana sobre a
ética, a moral e o exercício responsável da liberdade. Sem resolver esse
pressuposto os encontros internacionais periódicos sobre o meio ambiente e seus
problemas específicos, apesar de todo estardalhaço, discursos inflamados,
documentos assinados, nada de fundamental irão resolver. Para tanto: “Espera-se ainda o desenvolvimento
duma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialéticas dos últimos séculos. O
próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e o tesouro de
verdade que recebeu de Jesus Cristo não
cessa de se repensar e formular um diálogo com as novas situações históricas, deixando desabrochar assim a sua
eterna novidade”. (Laudato si, 121). Essa nova síntese só será uma verdadeira
síntese se for o resultado do diálogo interdisciplinar sincero, honesto e
desarmado entre todos os campos do conhecimento. Para tanto é indispensável que
as Ciências Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências humanas, as Letras e
Artes, sentem à mesa e comecem a “trocar figurinhas”, isto é compartilhem os
dados dos seus campos específicos e os encaixem no devido lugar do gigantesco
quebra-cabeça que é a natureza e nela a humanidade. Se esse diálogo não
acontecer em alto nível em todos os sentidos o quebra-cabeça não fechará. Faz
sentido relembrar a sentença de Einstein: “Sem a Ciência a Religião é cega e
sem a Religião a Ciência é manca”. Essa afirmação curta e retilínea do maior
físico do século XX resume em poucas palavras, o tamanho do desafio para
qualquer um que pretenda formular uma síntese entre as Ciências Naturais e as
Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e Artes. O tamanho do
desafio iguala-se ao tamanho e complexidade dos dois mundos que se pretendem
harmonizar numa síntese que não se contenta em somar o que os dois universos
tem a oferecer. A metáfora do quebra-cabeça pode ser útil para continuar na nossa reflexão
sobre a Síntese que estamos propondo. Não estamos falando de um quebra-cabeça
no qual as peças são encaixadas aleatoriamente obedecendo à lógica mecânica dos
seus formatos. Na síntese de que estamos falando no momento em que as peças
estiverem cada qual no seu devido lugar o conjunto irradia um sentido que não
se resume no resultado da soma das peças mas a complementariedade entre elas
determinada pela posição que ocupam no conjunto e no seu formato. Em outras palavras estamos diante de
uma realidade de uma identidade sugerida pela forma e colocação das peças: uma
paisagem, um rosto, uma flor, um símbolo religioso e tantos outros possíveis. Acontece
que para a obra de arte ser possível exige-se um tabuleiro que permita montar o
quebra-cabeça ou, no nosso caso, formular a Síntese da Natureza. Em outras
ocasiões já falamos nesse “tabuleiro”, nessa “base” que sustenta e dá coesão à
relação ontológica do homem com a natureza. Tanto para cientistas preocupados
com essa obra, quanto teólogos, filósofos e humanistas já encontraram a
resposta. O homem pela sua natureza é um ente que vem munido da consciência
moral, do certo e do errado e ao mesmo tempo goza da liberdade de seguir ou não
seguir a voz da consciência. A baliza, o “Leitmotiv” que dá consistência e
sentido à Síntese que se pretende propor
tem na ética e na liberdade a sua garantia porque é sobre este
fundamento que se apoiam os compromissos das pessoas umas com as outras e com a
natureza da qual provêm e lhes fornece os recursos para a vida material e os estímulos
para dar vasão às suas emoções, expressões artísticas, crenças religiosas,
enfim, realizar o humano em toda a sua
plenitude. O relativismo ético e a compreensão equivocada da liberdade levou a pós-modernidade à
confusão em que se debate a humanidade neste começo de milênio. “Por sua parte
Sócrates racionaliza a vida humana num geometria impecável, mas mutila a
essência secreta da civilização grega”. ( ... ) Da razão socrática ficam
excluídos o instinto e a experiência lúdica da vida e, a partir daí, a paixão,
os sonhos e os mitos, os faunos e os deuses”. Caldera, 2004, p. 114)
A civilização racionalista
de nosso tempo é filha dessa dupla orfandade; e esse vazio, tratou de enchê-lo
a razão total e seus derivados: a ideologia, os arquétipos sociais e as utopias
políticas, cuja crise está dando fim à modernidade.
Não é esse o momento oportuno para intentar a síntese
entre vida, razão e ética?
Não é essa ocasião para
restaurar o ser cindido e redimir a consciência
desgarrada?
Fundamentação de uma nova filosofia de um
mundo ocidentalizado até no Oriente, poderia encontrar-se, pelo menos, em parte
a filosofia de Confúcio, que integra a razão à ética, dando a esta última uma
valor essencial e á primeira, um valor instrumental subordinado
aos valores morais.
Enquanto a outra ruptura, a
que se opera entre razão e vida, entre lógica e instinto, entre consciente e
subconsciente, quiçá apaixonada e lúcida defesa da vida e da liberdade que faz
Nietzsche em toda a sua obra, possa ser um referencial válido para
incorporá-la, devidamente modulada, a essa síntese que exige a pós-modernidade
e que reclama integração desses três elementos imprescindíveis para fundar a
nova filosofia do nosso tempo: vida, ética e razão. (Caldera , 2004, p.114-115)
A
Ética vem a ser o conceito que vem fazendo parte cada vez mais frequente da
linguagem dos cientistas que se ocupam com a natureza como um todo, a natureza
como um “fato”, no entender de Edward Wilson, a natureza como uma “Síntese”,
obedecendo ao apelo da Encíclica e de muitos outros nomes de peso tanto das
Ciências Naturais quanto das Ciências do
Espírito com todos os seus
desdobramentos. Apelam para a ética como o argumento, como sendo a ponte capaz
de unir, de conciliar todas as áreas do conhecimento com finalidade de
encontrar um sentido para o universo, à natureza e ao homem nela inserido. Em
outras palavras, dar uma resposta satisfatória às questões com as quais já mais
do que uma vez nos defrontamos nas presentes reflexões. Convém não esquecer que
o conceito “Ética” e seu equivalente “Moral” faz parte na sua origem do
linguajar filosófico e teológico. Assim como outros conceitos, o Darwinismo,
por ex., a ética e a moral foram incorporados no mundo conceitual corrente de
outros campos o conhecimento. Não é estranho ouvir falar em darwinismo social,
darwinismo econômico e outros. A ética
ou, se preferirmos a moral, pode ser encontrada nos currículos das áreas mais
diversas e como base nos estatutos de entidades com a finalidade de disciplinar
o exercício profissional. Ouve-se falar diariamente em ética médica, ética no
exercício da advocacia, ética econômica, ética social, bioética e por aí vai.
Com
cada vez mais frequência e insistência, cientistas de renome como os nossos já
conhecidos Edward Wilson, Francis Collins, Theodosius Dobzhansky, Robert
Jastrow, além, é claro daqueles filiados a denominações confessionais, colocam
a ética, a capacidade de o homem distinguir entre o certo e o errado como
plataforma para o diálogo interdisciplinar. É óbvio que isso não acontece
quando se debatem exclusivamente questões científicas e/ou técnicas. Num
encontro entre botânicos ou zoólogos sistematas, geólogos em
busca de campos de petróleo, entre outros, não é um ambiente que estimula considerações de
natureza ética.
Mas
é a compreensão e o convívio do homem com a natureza que, cada dia que passa, em
que a ética torna-se mais importante
nessa relação. Toda uma especialidade, a “Bioética”, vai-se se tornando mais
popular e os que a ela se dedicam gozam cada mais respeito e suas opiniões em
questões ambientais são levados a sério. É no plano das preocupações com a
ecologia que o conceito de Bioética desempenha o papel importante como terreno
comum em que cientistas, filósofos, teólogos, geógrafos, economistas, juristas,
ecologistas sérios, isentos e de espírito desarmado, encontram as condições de
se entender, falando a mesma linguagem. A razão que subjaz aos esforços de
qualquer profissional sério ou ativista digno desse nome consiste em tratar a “natureza como um bem comum”. E em sendo um bem comum
sua preservação e o reto consumo dos seus recursos é, antes de mais nada, uma
questão ética e não técnica.