Mas,
não basta conscientizar os adultos da
importância da relação sadia com a natureza nem consolidar em crianças e
adolescentes o conhecimento que fundamenta o espírito de um relacionamento responsável com os recursos naturais. É
preciso passar para além de mais um pacote de conhecimentos úteis para exercer
uma determinada função ou abrir caminho para uma das muitas carreiras
disponíveis. Para o verdadeiro amante da natureza ou, se preferirmos, para o
autêntico ecologista esses conceito assume
as características de um “estado de espírito”, que perpassa todas as atividades
do seu cotidiano. Para alcançar esse nível, porém, é preciso superar uma série
de percalços gerados pela tecnologia que
governa a civilização do começo desse terceiro milênio. A Encíclica os reúne
sob o subtítulo: “A crise do Antropocentrismo moderno e suas Consequências”. A
Encíclica caracterizou o “Antropocentrismo moderno” nos seguintes termos.
O Antropocentrismo moderno
acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque
este ser humano já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio
vivente. Sem se por qualquer hipótese, vê-a, objetivamente como espaço e matéria onde realizar uma obra em que
imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela. (Laudato
si, 115, citando Guardini, Das Ende der Neuzeit, 1965, p. 63).
O
que acontece, portanto, é que, de acordo com essa cosmovisão a espécie humana
assume-se como uma realidade autônoma e paralela em relação ao restante da
natureza. Nega-se a sua inserção existencial nela. Nega-se que o homem seja
“Adam, isto é, nascido da terra”. Sendo assim segue como conclusão lógica que o
Antropomorfismo nega na prática que a espécie humana originou-se e evoluiu, como
todos os demais seres vivos, ontologicamente comprometida e participante da
mesma história, do mesmo nível de relacionamento e orientada pela mesma
teleologia e sujeita às mesmas leis das demais espécies vivas. Mais acima já
aprofundamos o que significa o pertencimento da espécie humana e sua interação
de complementariedade com as demais espécies quanto à sua identidade
morfológica, fisiológica e instintiva e, além disso, existe, subsiste, prospera
ou declina na medida do acesso aos recursos naturais para prover as necessidades
básicas da vida. Mas, não se pode esquecer e é preciso conceder que ela ocupa, por assim dizer o topo, ou o rebento
mais bem sucedido da evolução pela inteligência reflexa que lhe permite tomar
consciência de si e do mundo em volta e assim procurar respostas para “o como”,
“o donde”, “o porque” e “para onde”, questões também já aprofundadas mais
acima. As respostas para os questionamentos que mencionamos acham-se implícitas
nas tecnologias para acessar e apoderar-se, com mais facilidade dos recursos
naturais de que necessita. Tecnologias rudimentares acompanharam a humanidade
desse que se tem notícia da sua existência. O famoso “machado de punho”,
lascado em silex, vidro vulcânico, granito e outros tipos de rocha, representa,
por enquanto, o mais antigo artefato confeccionado pelo homem. De então para cá
passaram-se incontáveis milênios e o homem aperfeiçoando e diversificando
tecnologias e descobrindo novas matérias primas. Não é aqui o lugar para
aprofundar a história da evolução tecnológica. O viés que nos interessa na
presente reflexão é o crescente domínio sobre os recursos naturais somado ao “poder”
que confere aos que controlam a tecnologia. Se, de uma lado, a tecnologia é a
“ferramenta” que acelera a velocidade do progresso, do
outro lado, corre o risco de, no mesmo ritmo, transformar-se em “instrumento de poder”. Infelizmente,
neste começo de milênio o potencial de conferir “poder” comanda todos os
setores da inovação tecnológica, degradando o fator “ferramenta” ao um nível secundário.
Sua utilidade e valor é limitado pelo potencial de poder que oferece. Não por
nada as maiores fortunas concentram-se nas mãos dos donos das empresas de tecnologia
de ponta. De outro lado os países que dispõem de recursos para adquirir essas
tecnologias para fins pacíficos e/ou bélicos, ocupam posições hegemônicas
ditando as regras em acordos políticos, econômicos e estratégicos. Desta forma
os avanços tecnológicos, seu domínio e posse, resultam, e em grande parte já
resultaram, num equívoco que irá cobrar a médio e longo prazo um preço
impagável pela humanidade como um todo. Em resumo. O homem caiu vítima da sua
própria obra colocando-se como dono e competidor com a natureza em vez de filho
e colaborador dela. Abandonou a “sua casa”, mas continua a administrá-la,
explorá-la, depredá-la, a maneira do filho ingrato que abandona o lar com seus
compromissos para continuar a sugar-lhe o sangue enquanto isso lhe render
proveitos e vantagens. A Encíclica responsabiliza a visão equivocada do
entendimento antropológico cristão da posição do homem na natureza.
Uma apresentação inadequada
da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas
vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou
a impressão de que o cuidado da natureza fosse atividade de fracos. Mas a
interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é
entende-lo no sentido de administração responsável. (Laudato si, 116)
Na
raiz dessa visão antropocêntrica equivocada devem ser procuradas as causas que
explicam a exploração, o manejo e destinação dada aos recursos que a natureza disponibiliza. Nega-se implicitamente o que em
outras ocasiões foi objeto destas reflexões. Na sua essência ela apresenta-se
como uma síntese de uma complexidade difícil de dimensionar e realiza-se e
comporta-se no seu todo e até os mínimos detalhes à maneira de um sistema.
Os
danos causados à natureza pela exploração, melhor, rapinagem irresponsável dos
seus recursos, vem a ser, em última análise, a consequência lógica perversa da
convicção do homem assumindo-se como dono e senhor das demais criaturas. E o
mais grave dessa lógica é que ela perverte também os valores basilares que
regem as relações humanas porque o homem abdicou da sua própria identidade.
Esse é o cenário propício em que prosperam as aberrações mais deploráveis que
corrompem o tecido social em que vive a geração atual. Mais do que nunca a
convivência entre os homens é determinada pelo princípio do “homo homini lupo”,
isto é, “o homem devorando o seu próximo”. Este fenômeno lastimável não é
privativo de nenhuma das ideologias que hoje determinam o rumo seguido
pela humanidade. Tanto o socialismo que não passa de um capitalismo de Estado
quanto o liberalismo na sua versão como produto espúrio da liberdade levada ao
extremo são crias, à sua maneira, da soberba do homem que se coloca acima do
bem e do mal. “A barbárie governa o mundo quando não há nada mais que o desejo
de riqueza, nem mais ilusão do que o poder”. (Caldera, 2004, p. 90). Este é o
caldo que alimenta os detentores do poder político, econômico, estratégico e
demais aparelhamentos que mantém a humanidade cativa e perplexa. O Papa na sua
Encíclica resumiu esse cenário ao deixar registrado que
A falta de preocupação por
medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo
evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita
nas suas próprias estruturas. Quando na própria realidade, não se reconhece a
importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência – só
para dar alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria
natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autônomo da
realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua
existência, porque em vez de realizar o papel de colaborador de Deus na obra da
criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta
da natureza. (Laudato si, 117)