REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 78


Mas, não basta conscientizar os adultos  da importância da relação sadia com a natureza nem consolidar em crianças e adolescentes o conhecimento que fundamenta o espírito de um relacionamento  responsável com os recursos naturais. É preciso passar para além de mais um pacote de conhecimentos úteis para exercer uma determinada função ou abrir caminho para uma das muitas carreiras disponíveis. Para o verdadeiro amante da natureza ou, se preferirmos, para o autêntico ecologista esses conceito  assume as características de um “estado de espírito”, que perpassa todas as atividades do seu cotidiano. Para alcançar esse nível, porém, é preciso superar uma série de  percalços gerados pela tecnologia que governa a civilização do começo desse terceiro milênio. A Encíclica os reúne sob o subtítulo: “A crise do Antropocentrismo moderno e suas Consequências”. A Encíclica caracterizou o “Antropocentrismo moderno” nos seguintes termos.

O Antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se por qualquer hipótese, vê-a, objetivamente como  espaço e matéria onde realizar uma obra em que imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela. (Laudato si, 115, citando Guardini, Das Ende der Neuzeit, 1965, p. 63).

O que acontece, portanto, é que, de acordo com essa cosmovisão a espécie humana assume-se como uma realidade autônoma e paralela em relação ao restante da natureza. Nega-se a sua inserção existencial nela. Nega-se que o homem seja “Adam, isto é, nascido da terra”. Sendo assim segue como conclusão lógica que o Antropomorfismo nega na prática que a espécie humana originou-se e evoluiu, como todos os demais seres vivos, ontologicamente comprometida e participante da mesma história, do mesmo nível de relacionamento e orientada pela mesma teleologia e sujeita às mesmas leis das demais espécies vivas. Mais acima já aprofundamos o que significa o pertencimento da espécie humana e sua interação de complementariedade com as demais espécies quanto à sua identidade morfológica, fisiológica e instintiva e, além disso, existe, subsiste, prospera ou declina na medida do acesso aos recursos naturais para prover as necessidades básicas da vida. Mas, não se pode esquecer e é preciso conceder que ela  ocupa, por assim dizer o topo, ou o rebento mais bem sucedido da evolução pela inteligência reflexa que lhe permite tomar consciência de si e do mundo em volta e assim procurar respostas para “o como”, “o donde”, “o porque” e “para onde”, questões também já aprofundadas mais acima. As respostas para os questionamentos que mencionamos acham-se implícitas nas tecnologias para acessar e apoderar-se, com mais facilidade dos recursos naturais de que necessita. Tecnologias rudimentares acompanharam a humanidade desse que se tem notícia da sua existência. O famoso “machado de punho”, lascado em silex, vidro vulcânico, granito e outros tipos de rocha, representa, por enquanto, o mais antigo artefato confeccionado pelo homem. De então para cá passaram-se incontáveis milênios e o homem aperfeiçoando e diversificando tecnologias e descobrindo novas matérias primas. Não é aqui o lugar para aprofundar a história da evolução tecnológica. O viés que nos interessa na presente reflexão é o crescente domínio sobre os recursos naturais somado ao “poder” que confere aos que controlam a tecnologia. Se, de uma lado, a tecnologia é a “ferramenta” que acelera a velocidade do  progresso, do  outro lado, corre o risco de, no mesmo ritmo, transformar-se  em “instrumento de poder”. Infelizmente, neste começo de milênio o potencial de conferir “poder” comanda todos os setores da inovação tecnológica, degradando o fator “ferramenta” ao um nível secundário. Sua utilidade e valor é limitado pelo potencial de poder que oferece. Não por nada as maiores fortunas concentram-se nas mãos dos donos das empresas de tecnologia de ponta. De outro lado os países que dispõem de recursos para adquirir essas tecnologias para fins pacíficos e/ou bélicos, ocupam posições hegemônicas ditando as regras em acordos políticos, econômicos e estratégicos. Desta forma os avanços tecnológicos, seu domínio e posse, resultam, e em grande parte já resultaram, num equívoco que irá cobrar a médio e longo prazo um preço impagável pela humanidade como um todo. Em resumo. O homem caiu vítima da sua própria obra colocando-se como dono e competidor com a natureza em vez de filho e colaborador dela. Abandonou a “sua casa”, mas continua a administrá-la, explorá-la, depredá-la, a maneira do filho ingrato que abandona o lar com seus compromissos para continuar a sugar-lhe o sangue enquanto isso lhe render proveitos e vantagens. A Encíclica responsabiliza a visão equivocada do entendimento antropológico cristão da posição do homem na natureza.

Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada  da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse atividade de fracos. Mas a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entende-lo no sentido de administração responsável. (Laudato si, 116)

Na raiz dessa visão antropocêntrica equivocada devem ser procuradas as causas que explicam a exploração, o manejo e destinação dada aos recursos que a natureza  disponibiliza. Nega-se implicitamente o que em outras ocasiões foi objeto destas reflexões. Na sua essência ela apresenta-se como uma síntese de uma complexidade difícil de dimensionar e realiza-se e comporta-se no seu todo e até os mínimos detalhes  à maneira de um sistema.

Os danos causados à natureza pela exploração, melhor, rapinagem irresponsável dos seus recursos, vem a ser, em última análise, a consequência lógica perversa da convicção do homem assumindo-se como dono e senhor das demais criaturas. E o mais grave dessa lógica é que ela perverte também os valores basilares que regem as relações humanas porque o homem abdicou da sua própria identidade. Esse é o cenário propício em que prosperam as aberrações mais deploráveis que corrompem o tecido social em que vive a geração atual. Mais do que nunca a convivência entre os homens é determinada pelo princípio do “homo homini lupo”, isto é, “o homem devorando o seu próximo”. Este fenômeno lastimável não é privativo de nenhuma das ideologias que hoje determinam o rumo   seguido pela humanidade. Tanto o socialismo que não passa de um capitalismo de Estado quanto o liberalismo na sua versão como produto espúrio da liberdade levada ao extremo são crias, à sua maneira, da soberba do homem que se coloca acima do bem e do mal. “A barbárie governa o mundo quando não há nada mais que o desejo de riqueza, nem mais ilusão do que o poder”. (Caldera, 2004, p. 90). Este é o caldo que alimenta os detentores do poder político, econômico, estratégico e demais aparelhamentos que mantém a humanidade cativa e perplexa. O Papa na sua Encíclica resumiu esse cenário ao deixar registrado que

A falta de preocupação por medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando na própria realidade, não se reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque em vez de realizar o papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza. (Laudato si, 117)



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