REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 79


Neste cenário é possível destacar duas tendências antagônicas que levam a uma autêntica “esquizofrenia” existencial. De um lado temos  a excessiva exaltação da tecnocracia que priva todos os seres vivos da sua autenticidade como criaturas. Recursos naturais, plantas, animais e o próprio homem deixam de ter valor pela sua natureza. Valem apenas na medida em que contribuem para acelerar o motor turbinado pela tecnologia. Essa cosmovisão das realidades naturais minerais, vegetais, animais, incluindo o homem, destrói pela base os dois pilares que garantem a subsistência da criação e lhe conferem sentido. O primeiro desses pilares poderíamos chamar de complementariedade sistêmica de tudo que pode ser encontrado na natureza. O segundo pilar decorre logicamente do primeiro. Se tudo na natureza acha-se interligado ao modo de uma síntese sistêmica, a cada elemento, por mais sem importância que possa parecer, cabe uma  função privativa que justifica sua existência. Portanto, vem munido de uma identidade própria pelo simples fato de, de alguma maneira e em algum grau, ser insubstituível. Na visão tecnocrática radical essa identidade é negada ou pelo menos ignorada. Esse tipo de tecnocracia lida com a natureza e seus recursos como meros objetos que se valorizam enquanto úteis e se descartam quando se tornam obsoletos. Também a pessoa humana termina sendo relativizada como as demais realidades naturais e tratada como tal. Mede-se seu valor com a régua da utilidade e não pelo seu valor em si. Aqui vem novamente à tona a causa fundamental da relação equivocada quando o tecnocrata lida com a natureza, isto é, os fins justificando os meios  e como consequência o relativismo ético e moral. “Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros, que provém do jogo do acaso ou dum determinismo  físico, corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da reponsabilidade” (Laudato si, 118).

Ao “antropocentrismo” exagerado contrapõe-se, do outro lado, o  “biocentrismo” não menos exasperado. Este, mal entendido, vem a complicar ainda mais o cenário caótico que resultou do antropocentrismo, levado às últimas consequências. Paradoxalmente o poder da tecnologia e seus benefícios nas mãos de uma minoria da humanidade degradou e vai degradando cada vez mais a outra parte a uma massa de manobra em seu benefício. Os recursos gerados pela tecnologia concentrados e controlados por poucos impedem o acesso para assegurar um mínimo de conforto e dignidade a dezenas de milhões de pessoas espalhadas por todos os continentes mas, de modo mais gritante, nos países do terceiro mundo. Mas, este modelo e suas consequências já foram objeto das reflexões mais acima. O biocentrismo peca pelo nivelamento puro e simples da espécie humana com as demais, principalmente espécies animais. Os sintomas dessa distorção podem ser percebidos nas mais diversas situações. Ao longo das páginas acima vimos insistindo que o ser humano, quanto à sua dimensão biológica insere-se ontologicamente na grande síntese que é a natureza. Há porém, o elemento “inteligência reflexa”, a consciência moral e a liberdade, que o alça a um patamar especial, para não dizer acima, das demais criaturas. Essa realidade faz com que os compromissos com o mundo em que vive não pode nivelá-lo pura e simplesmente com ele. Quando São Francisco de Assis chama de “irmãos e irmãs” as criaturas da natureza isso deve ser entendido no sentido metafórico. Descendemos dos mesmos ancestrais, como espécie biológica, portanto, partilhamos para a vida e para a morte, dos dons da natureza indispensáveis para viver. Cada ser vivo cumpre o seu papel para manter em funcionamento o todo do sistema. Nesse sentido somos todos “irmãos e irmãs”  e como tal comprometidos nesse nível. Mas, essa compreensão do homem inserido na natureza, esconde o risco de distorcer  e levar ao exagero o conceito de “irmão e irmã” a tal ponto que o homem fica pura e simplesmente nivelado a plantas e, principalmente animais. Em casos extremos ignora-se ou nega-se ao homem aquilo que o torna de fato humano – “Menschlich” -  que é a capacidade  reflexiva, a consciência moral, a liberdade com todas as suas consequências, a capacidade de emocionar-se frente às diferentes vicissitudes da vida, de extasiar-se perante o belo, de expressar seu estado de espírito pela arte e a literatura, de preocupa-se em progredir sem nunca dizer basta, tanto material quanto espiritualmente e, sobretudo,  perguntar donde veio, porque  está aqui e qual o seu destino final. É preocupante quando se escutam anúncios que oferecem planos funerários para toda a família, inclusive o “pet”. Tendo em vista essa distorção a Encíclica alerta.

Um antropocentrismo desordenado não deve ser necessariamente  ser substituído por um “biocentrismo” porque isso implicaria introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas já existentes, mas acrescentará novos. Não se pode exigir do ser humano um compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares capacidades do conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade. (Laudato si, 118)

Na sua lendária sabedoria os antigos gregos nos legaram a fórmula que situa todos os elementos da natureza no seu devido lugar na grande síntese e com isso também a  função que  cabe a cada um para que o todo funcione sem distorções. “Os minerais existem; Os vegetais existem e vegetam; Os animais existem vegetam e sentem; O homem existe, vegeta, sente e raciocina”. Se os sábios gregos tivessem tido conhecimento do micro e nano universo dos micro organismos, com certeza, o teriam  colocado entre os minerais e os vegetais, como mais uma macro categoria de importância fundamental na estrutura e funcionamento do todo do sistema natural. Mas, com mais esse subsídio estamos em condições de avançarmos um passo a mais nas reflexões sugeridas pela Encíclica.

O antropocentrismo levado ao extremo termina no paradigma tecnocrático transformando a tecnologia num instrumento de poder e em vez de ferramenta do progresso, e como tal, a  transforma em fim, com todas as consequências apontadas mais acima. A Encíclica resumiu em poucas palavras as consequências do antropocentrismo levado ao extremo.

A critica do antropomorfismo desordenado não deveria deixar  em segundo plano também o valor das relações entre as pessoas. Se a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a nossa relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais. (Laudato si, 19)

Para que esse passo possa ser dado no sentido de reconciliar a humanidade com “a sua casa” e restabelecer  justo equilíbrio entre ambos, é preciso, ao mesmo tempo, remoldar a sociedade humana sobre a ética, a moral e o exercício responsável da liberdade. Sem resolver esse pressuposto os encontros internacionais periódicos sobre o meio ambiente e seus problemas específicos, apesar de todo estardalhaço, discursos inflamados, documentos assinados, nada de fundamental irão resolver.  Para tanto: “Espera-se ainda o desenvolvimento duma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialéticas dos últimos séculos. O próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e o tesouro de verdade   que recebeu de Jesus Cristo não cessa de se repensar e formular um diálogo com as novas situações  históricas, deixando desabrochar assim a sua eterna novidade”. (Laudato si, 121). Essa nova síntese só será uma verdadeira síntese se for o resultado do diálogo interdisciplinar sincero, honesto e desarmado entre todos os campos do conhecimento. Para tanto é indispensável que as Ciências Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências humanas, as Letras e Artes, sentem à mesa e comecem a “trocar figurinhas”, isto é compartilhem os dados dos seus campos específicos e os encaixem no devido lugar do gigantesco quebra-cabeça que é a natureza e nela a humanidade. Se esse diálogo não acontecer em alto nível em todos os sentidos o quebra-cabeça não fechará. Faz sentido relembrar a sentença de Einstein: “Sem a Ciência a Religião é cega e sem a Religião a Ciência é manca”. Essa afirmação curta e retilínea do maior físico do século XX resume em poucas palavras, o tamanho do desafio para qualquer um que pretenda formular uma síntese entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e Artes. O tamanho do desafio iguala-se ao tamanho e complexidade dos dois mundos que se pretendem harmonizar numa síntese que não se contenta em somar o que os dois universos tem a oferecer. A metáfora do quebra-cabeça  pode ser útil para continuar na nossa reflexão sobre a Síntese que estamos propondo. Não estamos falando de um quebra-cabeça no qual as peças são encaixadas aleatoriamente obedecendo à lógica mecânica dos seus formatos. Na síntese de que estamos falando no momento em que as peças estiverem cada qual no seu devido lugar o conjunto irradia um sentido que não se resume no resultado da soma das peças mas a complementariedade entre elas determinada pela posição que ocupam no conjunto e no seu  formato. Em outras palavras estamos diante de uma realidade de uma identidade sugerida pela forma e colocação das peças: uma paisagem, um rosto, uma flor, um símbolo religioso e tantos outros possíveis. Acontece que para a obra de arte ser possível exige-se um tabuleiro que permita montar o quebra-cabeça ou, no nosso caso, formular a Síntese da Natureza. Em outras ocasiões já falamos nesse “tabuleiro”, nessa “base” que sustenta e dá coesão à relação ontológica do homem com a natureza. Tanto para cientistas preocupados com essa obra, quanto teólogos, filósofos e humanistas já encontraram a resposta. O homem pela sua natureza é um ente que vem munido da consciência moral, do certo e do errado e ao mesmo tempo goza da liberdade de seguir ou não seguir a voz da consciência. A baliza, o “Leitmotiv” que dá consistência e sentido à Síntese que se pretende propor  tem na ética e na liberdade a sua garantia porque é sobre este fundamento que se apoiam os compromissos das pessoas umas com as outras e com a natureza da qual provêm e lhes fornece os recursos para a vida material e os estímulos para dar vasão às suas emoções, expressões artísticas, crenças religiosas, enfim, realizar o  humano em toda a sua plenitude. O relativismo ético e a compreensão equivocada  da liberdade levou a pós-modernidade à confusão em que se debate a humanidade neste começo de milênio. “Por sua parte Sócrates racionaliza a vida humana num geometria impecável, mas mutila a essência secreta da civilização grega”. ( ... ) Da razão socrática ficam excluídos o instinto e a experiência lúdica da vida e, a partir daí, a paixão, os sonhos e os mitos, os faunos e os deuses”. Caldera, 2004, p. 114)

A civilização racionalista de nosso tempo é filha dessa dupla orfandade; e esse vazio, tratou de enchê-lo a razão total e seus derivados: a ideologia, os arquétipos sociais e as utopias políticas, cuja crise está dando fim à modernidade.
Não é esse  o momento oportuno para intentar a síntese entre vida, razão e ética?
Não é essa ocasião para restaurar o ser cindido e redimir a consciência  desgarrada?
 Fundamentação de uma nova filosofia de um mundo ocidentalizado até no Oriente, poderia encontrar-se, pelo menos, em parte a filosofia de Confúcio, que integra a razão à ética, dando a esta última uma valor essencial  e  á primeira, um valor instrumental subordinado aos valores  morais.
Enquanto a outra ruptura, a que se opera entre razão e vida, entre lógica e instinto, entre consciente e subconsciente, quiçá apaixonada e lúcida defesa da vida e da liberdade que faz Nietzsche em toda a sua obra, possa ser um referencial válido para incorporá-la, devidamente modulada, a essa síntese que exige a pós-modernidade e que reclama integração desses três elementos imprescindíveis para fundar a nova filosofia do nosso tempo: vida, ética e razão. (Caldera , 2004, p.114-115)

A Ética vem a ser o conceito que vem fazendo parte cada vez mais frequente da linguagem dos cientistas que se ocupam com a natureza como um todo, a natureza como um “fato”, no entender de Edward Wilson, a natureza como uma “Síntese”, obedecendo ao apelo da Encíclica e de muitos outros nomes de peso tanto das Ciências Naturais  quanto das Ciências do Espírito com todos  os seus desdobramentos. Apelam para a ética como o argumento, como sendo a ponte capaz de unir, de conciliar todas as áreas do conhecimento com finalidade de encontrar um sentido para o universo, à natureza e ao homem nela inserido. Em outras palavras, dar uma resposta satisfatória às questões com as quais já mais do que uma vez nos defrontamos nas presentes reflexões. Convém não esquecer que o conceito “Ética” e seu equivalente “Moral” faz parte na sua origem do linguajar filosófico e teológico. Assim como outros conceitos, o Darwinismo, por ex., a ética e a moral foram incorporados no mundo conceitual corrente de outros campos o conhecimento. Não é estranho ouvir falar em darwinismo social, darwinismo econômico e   outros. A ética ou, se preferirmos a moral, pode ser encontrada nos currículos das áreas mais diversas e como base nos estatutos de entidades com a finalidade de disciplinar o exercício profissional. Ouve-se falar diariamente em ética médica, ética no exercício da advocacia, ética econômica, ética social, bioética e por aí vai.

Com cada vez mais frequência e insistência, cientistas de renome como os nossos já conhecidos Edward Wilson, Francis Collins, Theodosius Dobzhansky, Robert Jastrow, além, é claro daqueles filiados a denominações confessionais, colocam a ética, a capacidade de o homem distinguir entre o certo e o errado como plataforma para o diálogo interdisciplinar. É óbvio que isso não acontece quando se debatem exclusivamente  questões científicas e/ou técnicas. Num encontro  entre  botânicos ou zoólogos sistematas, geólogos em busca de campos de petróleo, entre outros, não é um  ambiente que estimula considerações de natureza ética.

Mas é a compreensão e o convívio do homem com a natureza que, cada dia que passa, em que a ética  torna-se mais importante nessa relação. Toda uma especialidade, a “Bioética”, vai-se se tornando mais popular e os que a ela se dedicam gozam cada mais respeito e suas opiniões em questões ambientais são levados a sério. É no plano das preocupações com a ecologia que o conceito de Bioética desempenha o papel importante como terreno comum em que cientistas, filósofos, teólogos, geógrafos, economistas, juristas, ecologistas sérios, isentos e de espírito desarmado, encontram as condições de se entender, falando a mesma linguagem. A razão que subjaz aos esforços de qualquer profissional sério ou ativista digno desse nome consiste em tratar a “natureza  como um bem comum”. E em sendo um bem comum sua preservação e o reto consumo dos seus recursos é, antes de mais nada, uma questão ética e não técnica.

Depois de insistir na necessidade duma concepção sintética da natureza e os princípios éticos que lhe servem de fundamento, a Encíclica volta a demorar-se em mais algumas aberrações do Antropocentrismo mal entendido.

REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 78


Mas, não basta conscientizar os adultos  da importância da relação sadia com a natureza nem consolidar em crianças e adolescentes o conhecimento que fundamenta o espírito de um relacionamento  responsável com os recursos naturais. É preciso passar para além de mais um pacote de conhecimentos úteis para exercer uma determinada função ou abrir caminho para uma das muitas carreiras disponíveis. Para o verdadeiro amante da natureza ou, se preferirmos, para o autêntico ecologista esses conceito  assume as características de um “estado de espírito”, que perpassa todas as atividades do seu cotidiano. Para alcançar esse nível, porém, é preciso superar uma série de  percalços gerados pela tecnologia que governa a civilização do começo desse terceiro milênio. A Encíclica os reúne sob o subtítulo: “A crise do Antropocentrismo moderno e suas Consequências”. A Encíclica caracterizou o “Antropocentrismo moderno” nos seguintes termos.

O Antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se por qualquer hipótese, vê-a, objetivamente como  espaço e matéria onde realizar uma obra em que imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela. (Laudato si, 115, citando Guardini, Das Ende der Neuzeit, 1965, p. 63).

O que acontece, portanto, é que, de acordo com essa cosmovisão a espécie humana assume-se como uma realidade autônoma e paralela em relação ao restante da natureza. Nega-se a sua inserção existencial nela. Nega-se que o homem seja “Adam, isto é, nascido da terra”. Sendo assim segue como conclusão lógica que o Antropomorfismo nega na prática que a espécie humana originou-se e evoluiu, como todos os demais seres vivos, ontologicamente comprometida e participante da mesma história, do mesmo nível de relacionamento e orientada pela mesma teleologia e sujeita às mesmas leis das demais espécies vivas. Mais acima já aprofundamos o que significa o pertencimento da espécie humana e sua interação de complementariedade com as demais espécies quanto à sua identidade morfológica, fisiológica e instintiva e, além disso, existe, subsiste, prospera ou declina na medida do acesso aos recursos naturais para prover as necessidades básicas da vida. Mas, não se pode esquecer e é preciso conceder que ela  ocupa, por assim dizer o topo, ou o rebento mais bem sucedido da evolução pela inteligência reflexa que lhe permite tomar consciência de si e do mundo em volta e assim procurar respostas para “o como”, “o donde”, “o porque” e “para onde”, questões também já aprofundadas mais acima. As respostas para os questionamentos que mencionamos acham-se implícitas nas tecnologias para acessar e apoderar-se, com mais facilidade dos recursos naturais de que necessita. Tecnologias rudimentares acompanharam a humanidade desse que se tem notícia da sua existência. O famoso “machado de punho”, lascado em silex, vidro vulcânico, granito e outros tipos de rocha, representa, por enquanto, o mais antigo artefato confeccionado pelo homem. De então para cá passaram-se incontáveis milênios e o homem aperfeiçoando e diversificando tecnologias e descobrindo novas matérias primas. Não é aqui o lugar para aprofundar a história da evolução tecnológica. O viés que nos interessa na presente reflexão é o crescente domínio sobre os recursos naturais somado ao “poder” que confere aos que controlam a tecnologia. Se, de uma lado, a tecnologia é a “ferramenta” que acelera a velocidade do  progresso, do  outro lado, corre o risco de, no mesmo ritmo, transformar-se  em “instrumento de poder”. Infelizmente, neste começo de milênio o potencial de conferir “poder” comanda todos os setores da inovação tecnológica, degradando o fator “ferramenta” ao um nível secundário. Sua utilidade e valor é limitado pelo potencial de poder que oferece. Não por nada as maiores fortunas concentram-se nas mãos dos donos das empresas de tecnologia de ponta. De outro lado os países que dispõem de recursos para adquirir essas tecnologias para fins pacíficos e/ou bélicos, ocupam posições hegemônicas ditando as regras em acordos políticos, econômicos e estratégicos. Desta forma os avanços tecnológicos, seu domínio e posse, resultam, e em grande parte já resultaram, num equívoco que irá cobrar a médio e longo prazo um preço impagável pela humanidade como um todo. Em resumo. O homem caiu vítima da sua própria obra colocando-se como dono e competidor com a natureza em vez de filho e colaborador dela. Abandonou a “sua casa”, mas continua a administrá-la, explorá-la, depredá-la, a maneira do filho ingrato que abandona o lar com seus compromissos para continuar a sugar-lhe o sangue enquanto isso lhe render proveitos e vantagens. A Encíclica responsabiliza a visão equivocada do entendimento antropológico cristão da posição do homem na natureza.

Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada  da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse atividade de fracos. Mas a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entende-lo no sentido de administração responsável. (Laudato si, 116)

Na raiz dessa visão antropocêntrica equivocada devem ser procuradas as causas que explicam a exploração, o manejo e destinação dada aos recursos que a natureza  disponibiliza. Nega-se implicitamente o que em outras ocasiões foi objeto destas reflexões. Na sua essência ela apresenta-se como uma síntese de uma complexidade difícil de dimensionar e realiza-se e comporta-se no seu todo e até os mínimos detalhes  à maneira de um sistema.

Os danos causados à natureza pela exploração, melhor, rapinagem irresponsável dos seus recursos, vem a ser, em última análise, a consequência lógica perversa da convicção do homem assumindo-se como dono e senhor das demais criaturas. E o mais grave dessa lógica é que ela perverte também os valores basilares que regem as relações humanas porque o homem abdicou da sua própria identidade. Esse é o cenário propício em que prosperam as aberrações mais deploráveis que corrompem o tecido social em que vive a geração atual. Mais do que nunca a convivência entre os homens é determinada pelo princípio do “homo homini lupo”, isto é, “o homem devorando o seu próximo”. Este fenômeno lastimável não é privativo de nenhuma das ideologias que hoje determinam o rumo   seguido pela humanidade. Tanto o socialismo que não passa de um capitalismo de Estado quanto o liberalismo na sua versão como produto espúrio da liberdade levada ao extremo são crias, à sua maneira, da soberba do homem que se coloca acima do bem e do mal. “A barbárie governa o mundo quando não há nada mais que o desejo de riqueza, nem mais ilusão do que o poder”. (Caldera, 2004, p. 90). Este é o caldo que alimenta os detentores do poder político, econômico, estratégico e demais aparelhamentos que mantém a humanidade cativa e perplexa. O Papa na sua Encíclica resumiu esse cenário ao deixar registrado que

A falta de preocupação por medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando na própria realidade, não se reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque em vez de realizar o papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza. (Laudato si, 117)