Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 47 -

O terceiro nível

No decorrer das reflexões que estamos fazendo sobre  a natureza, perpassa um fio condutor, um “Leitmotiv”, que serviu de orientação. O mundo em que vivemos é uma gigantesca e harmoniosa unidade que se nos manifesta numa incrível variedade de formas. Passamos a nossa existência numa “morada”, numa “casa” sólida na sua unidade, mas aconchegante em milhares de detalhes que conferem sentido para a existência de cada pessoa. De outra parte é legítimo comparar a “nossa casa” a uma sinfonia pelo fato de essa metáfora se aproximar mais do significado de “nossa casa” casa. A essência da sinfonia é a sua harmonia. Nenhum dos muitos e variados instrumentos tem valor em si, assim como os que os tocam. Todos, instrumentos e músicos, obedecem aos gestos do regente que transmite aos instrumentistas a forma de como tocar violinos, flautas, celos,  trombetas e clarins, para dar alma, vida e sonoridade à harmonia concebida pelo compositor e desenhada nas partituras.

Assim é a natureza. É uma obra de arte assim como a sinfonia é uma obra de arte pois, da mesma forma como uma pintura,  um espetáculo, uma paisagem, um fenômeno natural, deixa no apreciador a percepção do Belo. O Belo não se mede em decibéis, não se resume na soma das cores ou dos componentes de uma paisagem. O Belo emana, irradia da própria essência das coisas. O Belo não se resume no brilho, na cor, na forma, no tamanho, etc. Qual, então, é a causa do Belo?. “O Belo é o resplendor que circunda todo o ser e irradia da qualidade material dos objetos enquanto existentes. Eu preferiria compará-los com a vida, que envolve de modo igual todo o ser, sem confundir-se com a própria matéria”. (Rambo, 1994, p. 222)

Como fica claro há uma  dificuldade não pequena em definir a essência do Belo. Na natureza uma parte do problema encontra-se no fato de que, tanto as Ciências Naturais, quanto as Ciências do Espírito, não têm como identificar o Belo na sua essência. Nem a indução das Ciências, nem a dedução da Filosofia dispõem de potencial para identifica-lo nem descrevê-lo. O Belo simplesmente irradia de uma obra de arte, de um poema, de uma pessoa, de uma paisagem, de uma árvore ou de um fenômeno natural qualquer. Para perceber o Belo dispensa-se a instrução formal numa escola ou numa academia e prescinde-se de títulos acadêmicos. Aliás essa supra-estrutura pode até atrapalhar a sensibilidade na percepção da alma das coisas que é fonte e raiz da beleza.

O homem vem ao mundo munido com as ferramentas para intuir, a partir das percepções sensoriais, o que no fundo no fundo, confere sentido, autenticidade, veracidade aos personagens, às paisagens e fenômenos que escrevem a história da nossa terra, da “nossa casa”. O Belo não se identifica pelo estudo, não se descobre no laboratório, não se deduz por silogismos. Simplesmente percebe-se, intui-se, vivencia-se. Por isso mesmo, quanto menos entulho inventado pela racionalidade, tanto científica, quanto filosófica, atrapalhar o acesso ao gozo espontâneo do Belo, tanto melhor.

Não será por certo “por nada” que o vocábulo “Belo”, “schön” no alemão, tenha neste idioma a mesma raiz, ou seja a de “Schauen”, “contemplar”, no nosso vernáculo! O selvagem mais humilde e a pessoa mais culta concordam que um “por de sol”, um prado florido e uma pessoa vendendo juventude, sejam dotados de beleza objetiva. E, se vem a ser difícil o conhecimento da Verdade e o alcance da bondade, fácil se faz , por sua vez, a vivência da Beleza. (Rambo, 1994, p.222)

Refletindo melhor, a percepção não marca a estação final da jornada em busca do significado último da Criação. Resta encontrar a razão última que confere beleza à coisas. Estamos falando nada mais nada menos do que do Divino que tudo explica, tudo permeia e a tudo confere sentido. Partindo do pressuposto que a natureza foi de alguma forma criada, em outras palavras, é a realização de um projeto Divino e como algo do divino perpassa todas as suas manifestações. Não por nada Santo Agostinho extasiava-se com a vivência da “pulchritude eterna, semper antiqua et semper nova – “da beleza eterna, sempre antiga e sempre nova”.

Deus escreveu um libro estupendo, cujos caracteres  são representadas pela multidão e a multiplicidade das criaturas encontráveis no universo. É o sentido da manifestação dos bispos do Canadá de que nenhuma  criatura fica fora dessa manifestação de Deus. Desde os panoramas mais grandiosos até as formas de vida mais frágeis, a natureza é um manancial incessante de encanto e reverência. Em tudo e continuamente o Divino se revela nas criaturas. Os bispos do Japão deixaram uma mensagem muito sugestiva ao afirmarem: perceber em  cada criatura que canta o hino da sua existência é viver jubilosamente  no amor de Deus e na sua esperança. Esta contemplação da Criação permite descobrir os ensinamentos que Deus  quer transmitir, através de cada criatura, porque, para o crente, contemplar a Criação significa também escutar uma mensagem, ouvir uma voz silenciosa. Pode-se afirmar que, ao lado da Revelação propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação do divino no despontar do sol e no crepúsculo do anoitecer. Prestando atenção a esses e outros fenômenos, o ser humano aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as outras criaturas. “Expresso-me exprimindo o mundo e exploro a minha sacralidade decifrando a do mundo.(cf. Laudato si, 85)

Aos bispos do Canadá, do Japão, João Paulo II e outros mais invocados pela encíclica, merece destaque a afirmação de Clinton, presidente da nação tida como modelo de estado laico, ao apresentar ao mundo a conclusão do mapa do genoma humano. “Hoje  estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida. Ficamos ainda mais admirados pela complexidade, pela beleza e pela maravilha da dádiva mais divina e mais sagrada de Deus”. (Collins, 2007, p. 10)– e Francis Collins diretor do projeto que mapeou o genoma humano,  acrescentou  -  “Para mim a experiência de mapear a sequência do genoma humano e descobrir o mais notável dos textos foi, ao mesmo tempo, uma realização científica excepcionalmente bela e um momento de veneração”. (Collins, 2007, p. 11)


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 46 -

A mensagem da natureza e suas criaturas 

Aos bispos do Canadá, do Japão, de João Paulo II e Paul Ricoeur, invocados nesta passagem da Encíclica, podemos somar a manifestação do Presidente Clinton ao anunciar oficialmente a conclusão do mapa genético da espécie humana, já citada em outo momento. Parece que aqui é o lugar oportuno para distinguir entre os diversos níveis em que a mensagem da natureza é recebida. Melhor talvez, a que tipo de pessoas se destina essa mensagem e como elas recebem essa mensagem e seus significados.

O primeiro nível, caracteriza-se por mensagens eminentemente práticas, utilitaristas, primárias e imediatistas. A floresta, os animais, os campos naturais, os rios e os oceanos, chamam a atenção pelo que  oferecem para suprir as demandas básicas da sobrevivência física. Entre os coletores do paleolítico as árvores e arbustos chamavam a atenção e tinham seu valor nos frutos que ofereciam, outros vegetais pelas raízes e tubérculos. Aos  caçadores e pescadores daquele mesmo período, interessavam os animais passíveis de caça que chamavam a atenção. As mensagens das frutas, tubérculos e raízes e animais de caça, ao homem antigo, eram simples, diretas e pragmáticas: estamos aqui para alimentá-lo, tranquilizar o estômago e evitar que morra de fome. Este mesmo nível de mensagem orientou também os agricultores e pastores do neolítico e continua ditando as regras, em proporções geometricamente multiplicadas, na agricultura familiar e no agronegócio de hoje. Se nos dermos o trabalho de seguir a linha mestra da relação homem-natureza, verificamos que é ditada pela motivação do suprimento  da existência material-física da espécie humana. A mensagem de uma árvore coberta de frutas, um pé de inhame ou mandioca, uma castanheira carregada de castanha, um carvalho com bolotas, era simples e direta: “Colhe meus frutos e escava minhas raízes e não morrerás de fome”. A mesma mensagem vale para o  porco selvagem, o antílope, o peixe do arroio e da lagoa. Uma antiga “Oração da Floresta”, de procedência francesa, citada por Hornsmann, dá bem uma noção do que estamos falando.

Homem, eu sou o calor do teu lar nas noites frias de inverno, a sombra protetora  no calor do sol do verão. Sou a armação do telhado da tua casa, a tábua da tua mesa. Sou o leito em que dormes e a madeira com que constróis teus barcos, eu sou o cabo do teu machado e a porta da tua cabana. Sou a madeira do teu berço e as tábuas do teu esquife. Sou o pão da bondade, a flor da beleza. Escuta minha oração e não me destrói. (Hornsmann, 1955, p. 69)

É sobre esta concepção primária e utilitarista que costumam ser conduzidos os encontros e convenções em nível regional, nacional ou internacional, que tem como objeto a conservação e a proteção de meio ambiente.

O segundo nível. Acontece que o ser humano busca muito mais do que alimento e abrigo no seu relacionamento com o habitat natural. O convívio do animal como o meio ambiente termina neste nível. Já o homem dotado de inteligência reflexa sobe para um nível superior nessa relação. Desde o momento em que a centelha da inteligência reflexa do primeiro da nossa espécie, cintilou em alguma savana da África, ou  em qualquer outro local do nosso planeta, consolidou-se uma relação que ultrapassou o nível prosaico do alimentar-se, abrigar-se e cuidar da perpetuação da espécie. Com olhar curioso e inquiridor o homem embrenhava-se  nas florestas, percorria estepes e savanas, adentrava desertos, escalava montanhas, vasculhava florestas, banhava-se nos rios e lagos. Observando, experimentando, comparando, distinguindo, refletindo, foi aprendendo a identificar  e a selecionar o que a natureza lhe oferecia em alimentos, vestuário e abrigo. Sem demora as reflexões levaram esses seres humanos, que denominamos com certo ar de desprezo de “primitivos”, “selvagens” ou “bárbaros”, a equipar as mãos com artefatos, instrumentos e ferramentas que tornava menos trabalhoso e mais rendoso o acesso aos alimentos e as às matérias primas para confeccionar as vestimentas e abrigos, mais segura a defesa e mais eficiente a proteção contra as intempéries.

E, assim, estavam postas as premissas para começar, lentamente, numa dinâmica autoalimentada e num ritmo sempre mais acelerado, a simbiose entre o homem e suas florestas, rios, montanhas, estepes, desertos savanas. trópicos e climas temperados e frios. Neste conviver íntimo e diuturno com o habitat despertou e cresceu a curiosidade pelo sentido  que se escondia atrás dos fatos e fenômenos da natureza, as incógnitas e os mistérios com que  se deparava no quotidiano. O nascer, o viver e morrer do homem e dos animais, os ciclos da natureza, a alternância das estações do ano, o curso diário do sol, as fases da lua, o nascer, crescer e fenecer das plantas, o amadurecer das frutas, tudo desafiava a curiosidade e a compreensão. E na procura de respostas tomou formato um corpo de conhecimentos, simbologias, crenças e mitologias que terminariam por compor a cosmovisão peculiar de  cada espaço geográfico individual.

Desde  logo o ato de alimentar-se, vital para a sobrevivência física, ultrapassaria o nível do instintivo e compulsório fazendo-se acompanhar de procedimentos natureza cultural como hábitos, etiquetas, boas maneiras, proibições, tabus, etc. O ato de alimentar-se vai assumindo entre todas culturas as características de um ritual. Mais. Os próprios alimentos passaram a fazer parte integrante das culturas como sagrados, dotados de poderes mágicos, milagrosos, maléficos, impuros, ou simplesmente prejudiciais à saúde.

O convívio do homem com a natureza ensinou-lhe caminhos e formas de como conviver melhor com ela e consolidar com ela uma parceria e torná-la uma aliada sempre presente na construção e consolidação das culturas.

A relação imediata, íntima  e diuturna com que a natureza despertou no homem a percepção de fazer existencialmente parte dela. Além de dela depender para a vida e a morte, a sua vida se desenrola na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E, neste conviver simbiótico a humanidade constrói  suas culturas, sua história, suas simbologias, mitologias, crenças, religiões, seus rituais, seus sistemas enfim, sua cosmovisão. Tudo em sua volta, por assim dizer, se animava, se personalizava de acordo com o significado material somado ao imaginário que as diversas culturas lhe acrescentavam. Consolidou-se desta maneira um espelhar-se mútuo entre o homem  e seu habitat. E, no andar desse processo de interação, as culturas foram desenhando seus contornos, a identidade individual e coletiva  definindo suas características e a História traçando o seu rumo.

Deus escreveu um livro estupendo, cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presente no universo. ( ... ) podemos afirmar que, ao lado da revelação propriamente dita nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina no despontar do sol, no cair da noite. Prestando atenção a esta manifestação o ser humano aprende  a reconhecer a si mesmo na revelação com as outras criaturas. (Laudato si, 85).

A  reflexões que  nos conduziram até aqui, tendo como linha orientadora a Encíclica Laudato si, desdobram diante de nós um cenário de novas e fascinantes perspectivas. A história da humanidade com suas múltiplas culturas vem a ser o resultado dos ensinamentos da leitura e  interpretação do monumental “Livro” que vem a ser a natureza. É compreensível que em cada momento dessa história se tenha feito uma  interpretação singular dos códigos secretos escondidos nos fenômenos físicos, nas plantas,  animais e no próprio homem.

Dispensam-se teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a história, a fim de nos convencermos do acerto dessa afirmação. Entre os povos agricultores, o sol e a lua, imprimindo com seus ciclos regulares, a cadência da natureza, tornaram-se referência da própria dinâmica da história. Em torno do nascer e do por dos sol, da alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o homem foi elaborando e construindo todo um universo simbólico, todo um universo de costumes, de hábitos, valores, crenças, cultos e rituais. O sol define  os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comanda a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento, o florescimento, a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio a esse eterno fluxo e refluxo do germinar, nascer, crescer, amadurecer, declinar  e morrer, fenômenos pela sua natureza biológicos, climáticos, geográficos, astronômicos, cosmológicos, transformaram-se em fatores causais  de fundamental importância na consolidação da identidade dos povos e suas culturas. A primavera veio  a simbolizar o desabrochar da vida; o verão o vigor e a plenitude da vida; o outono a colheita dos bons ou maus frutos; o inverno, o declínio e finalmente a morte para, em seguida germinar nova vida e recomeçar o interminável ir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e dos ciclos da vida confundem-se simbolicamente numa única e mesma dinâmica. Fala-se em primavera da vida e a idade é contada em primaveras. Pela sua importância em não poucas culturas, o sol é cultivado como uma divindade e a lua uma deusa.

No mesmo sentido vai toda uma compreensão de outras realidades naturais. Cito apenas algumas mais. A água indispensável para a vida figura como objeto de veneração na história. Água e vida tornaram-se sinônimos. Como a água que dá vida é, por excelência,  aquela que se bebe nas fontes, à água brotando da rocha ou das entranhas da terra, atribuem-se às próprias fontes propriedades curativas especiais, efeitos mágicos, milagrosos, regeneradores. Banhar-se, por ex., no primeiro dia do ano num fonte promete vida longa e saudável.

Pelo mistério natural que costuma envolver montanhas, lagos, mares e oceanos, eles terminaram por personificar figuras mitológicas ou representar lugares sagrados, que passaram para o imaginário dos povos na forma de crenças, mitos, tabus, etc. Os deuses e deusas do universo mitológico grego no monte Olimpo, distantes dos homens, entregavam-se às suas intrigas e pouco se importavam  com o que acontecia no quotidiano dos mortais. Uma atitude olímpica tornou-se sinônimo de postura sobranceira, distante, alienada e desprezadora da realidade, acima do bem e do mal. O vulcão Fuji simboliza a história do povo japonês. Espíritos que não tolera a presença do homem povoavam lagos como ode Lhanguhe no Chile, fazendo com as proximidades permanecessem despovoadas até a chegada dos imigrantes alemães em meados do século XIX.

Poderíamos continuar enumerando ao indefinido os vínculos e as relações das culturas e identidades com o entorno físico-geográfico.

No decorrer do Mesolítico, período de transição entre o Paleolítico e o Neolítico, coletores de caçadores  deram um passo revolucionário na busca do controle do suprimento de suas necessidades básicas de sobrevivência. Darcy Ribeiro chamou essa conquista de “Revolução dos Alimentos” e Edward Wilson de a “Primeira Traição à Natureza”. Como já analisamos em outra ocasião, ambos têm razão, do ponto de vista peculiar que cada qual entendeu o fenômeno. O convívio com os animais, a observação dos seus hábitos, deixaram claro que havia uma grande diferença entre as muitas espécies que partilhavam o mesmo espaço geográfico com o homem. Uns agrediam, outros evitavam a presença do homem, outros ainda ariscos fugiam da proximidade dos humanos. Havia-os também que se acostumaram com a presença dos acampamentos  dos caçadores e coletores e, com o tempo, com os próprios humanos. E neste convívio, de observação em observação, de tentativa em tentativa, algumas espécies sob os mais diversos aspectos passaram a fazer parte do quotidiano e da rotina diária. Foi mais do que natural que neste relacionamento o homem fosse identificando as melhores formas de lidar com as diversas espécies, experimentasse influir nos seu comportamento, induzisse novas formas de conduta e assim amoldá-las aos seus propósitos.  Deve ter sido assim que o acúmulo de experiências e a soma de resultados, levou à domesticação de espécies fornecedoras de alimentos e abrigo como ovinos, bovinos suínos, espécies auxiliares  nas atividades diárias  como o cão de guarda e espécies empregadas no transporte de carga, tração e montaria. Essa transição evidentemente não aconteceu de um dia para o outro. Foram necessários séculos e milênios para que aos caçadores nômades sucedessem os pastores e criadores. Essa passagem  representou um passo gigantesco para o homem em direção à libertação da imposição da natureza e assumir gradativamente o controle sobre os recursos indispensáveis à sobrevivência.

Ao mesmo tempo em que a domesticação e consequentemente o manejo de animais domésticos consolidou uma base  confiável e controlável para a subsistência, aconteceu uma revolução semelhante e de repercussão não menos significativa no suprimento dos recursos de origem vegetal. A observação, a experiência acumulada com a coleta de frutas, raízes e tubérculos, levaram ao cultivo das espécies úteis. Essa domesticação de plantas resultou no aperfeiçoamento gradativo das técnicas de como lidar com as espécies úteis e, ao mesmo tempo, acrescentar sempre mais novas espécies e variedades cultivadas.

Tanto a domesticação de animais, quanto a “domesticação” de plantas resultou numa completa revolução na relação do homem com seu ambiente natural. É difícil saber quais foram as primeiras espécies de animais domesticados. As evidências que vestígios de ovelhas, cabras, jumentos, bovinos, além de cães, aparecem como dos mais antigos. Mas não são tanto as espécies em si que fizeram a diferença  nessa mudança de relação com o habitat natural, Os pastores e criadores foram em busca de pastagens nas quais seus rebanhos se pudessem multiplicar e garantir um retorno abundante de carne, leite,  lã, peles, chifres e ossos. Os criadores começaram a viver em acampamentos seminômades. Deslocavam-se por territórios variáveis de acordo com a disponibilidade de pastagens. O quotidiano desses pastores consumia-se em função dos rebanhos e uma cultura toda  voltada para o pastoreio começou a povoar as savanas  da África, as estepes semiáridas, na periferia dos desertos do Oriente Médio e Próximo e nas estepes da Euro-Ásia. Não há necessidade de insistir que a cultura desses povos nômades ou seminômades assumisse contornos com marcas diferenciais inconfundíveis. Sem falar na cultura material, consolidou-se um tipo de organização social com flagrante predominância do patriarcado. O imaginário, as crenças, os cultos buscaram a inspiração na dinâmica dos rebanhos, na dinâmica da vida nos acampamentos e, não em último lugar, nos fenômenos naturais sempre presentes. Fatos do quotidiano como nascer, crescer, viver e morrer inspiravam poetas, cantores e músicos. Aos astros coube um significado todo especial na vida desses povos. O ir e voltar do sol responsável pela alternância dos dias e noites, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e  lua em personalidades mitológicas, reverenciadas como entidades sobrenaturais, merecendo senão exigindo cultos e rituais. A vida em tendas e acampamentos móveis, as vigílias noturnas junto aos rebanhos induziram uma relação toda própria entre os pastores e o firmamento estrelado. Não tardou que notassem que esse universo nada tinha de estático. Os astros movimentavam-se  numa coreografia disciplinada, percorrendo roteiros traçados por leis imutáveis. De tempos em tempos essa dança sofria intromissões de fenômenos estranhos. O sol e lua passavam por eclipses, clarões estranhos iluminavam as noites escuras ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, passava pelo firmamento para, em seguida submergir de novo no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas, queda de meteoros, devem  ter impressionado os pastores em suas noites de vigília e mexido com seu imaginário. E, observando a galáxia em  noites sem nuvens, os conjuntos de estrelas e as constelações, foram assumindo contornos de figuras de animais familiares como o cão, o capricórnio, a ursa, os peixes, o touro, o leão e outros mais. O firmamento acima de suas cabeças foi-se povoando de criaturas imaginárias, réplicas daquelas com as quais convivia na realidade concreta do quotidiano.

Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia devem ser procurados entre  os pastores de ovelhas e caras do Neolítico. A relação real ou imaginária que se consolidou, a partir daí, entre o curso, a configuração e a posição dos astros e a sorte e o destino do homem, não parou de aprofundar. Mesmo hoje em que o progresso científico desvendou em grande parte os mistérios do universo, o interesse pelo horóscopo não perdeu nem público nem popularidade incluindo um número nada desprezível entre as camadas mais cultas e ilustradas. Os fenômenos cósmicos e demais realidades que integravam o habitat, “a casa”, em que se consumia a existência dos pastores do Neolítico, incorporados no quotidiano de suas culturas, são uma prova de que o homem se vê existencialmente inserido como uma realidade superior no seu universo. Se levássemos avante e aprofundássemos mais essas reflexões  desembocaríamos com certeza em discussões filosóficas do tipo que levaram Espinosa a formular a concepção panteísta do mundo, Teilhard de Chardin a formular a sua grandiosa unidade universal, Ludwig von Bertalanffy apresentar a unidade organísmica e  sistêmica da natureza, Nicolau de Cusa ensinar que as partes refletem o todo. Entretanto não é  aqui nem o momento nem o lugar para aprofundar a reflexão nessa perspectiva.

Simultaneamente, no espaço e no tempo, aconteceu a “Revolução Agrícola”. Evoluiu paralela à “Revolução Pastoril” e disputando territórios com ela. O manejo controlado das plantas  teve, ao lado do potencial incalculável das novas perspectivas de prover as necessidades básicas da sobrevivência, uma profunda revolução  na relação do homem com seu entorno físico-geográfico. Da condição de total dependente das vicissitudes naturais os povos agricultores passaram  a se valer de mais e melhores tecnologias, melhorando os métodos de plantio, identificando mais espécies de plantas passíveis de manejo e, desde muito cedo, manipulando pela seleção e cruzamento diversas variedades nativas, obtendo híbridos mais produtivos. O homem e a natureza construíram, por assim dizer, uma aliança e solidificaram uma relação de mutualidade que serviu de trampolim para um salto de qualidade sem precedentes. Foi a largada para a consolidação da simbiose entre o habitat natural e as culturas. O resultado dessa parceria entre o homem agricultor e seu chão fizeram-se sentir de muitas maneiras. Sem privilegiar uma ou outra, apontemos as que parecem mais importantes.


O preparo da terra, a semeadura, o cuidado com o desenvolvimento das plantas, a colheita e o recomeço de um novo ciclo agrícola, selaram o fim da vida itinerante exigida pela coleta. Os agricultores abandonaram a vida errante e instalaram as moradias em aldeias definitivas. O chão preferido pelos povos agrícolas foram as terras planas ao longo dos grandes rios na África, Oriente Médio e Próximo, Índia e China. Assim, a partir do momento em que dispomos de dados históricos  mais precisos, encontramos o vale do Nilo, do Eufrates e Tigre, do Indo e Ganges, do Yangze, Amur e Hoango e muitos outros vales de rios, cobertos por um mosaico de terras cultivadas e pontilhadas por inúmeras aldeias. Em pontos estratégicos, centros urbanos polarizavam as atividades de regiões maiores. O gigantesco potencial de progresso desse processo de humanização da paisagem que se desencadeou a partir da “domesticação” das primeiras plantas úteis, ainda não está esgotado. Das várzeas dos rios a agricultura avançou obre as encostas de montanhas, tomou o lugar das florestas, transformou em grande parte estepes, savanas, pradarias e campos naturais, impulsionada por sempre novas tecnologias de manejo dos solos e espécies de plantas. Em regiões inteiras reduziu as sobras da vegetação original em curiosidades ecológicas. Acontece que as necessidades básicas do homem de 15000 anos passados e do começo do terceiro milênio, continuam as mesmas. E quem fornece os alimentos, são ainda hoje os criadores  de animais e os agricultores, munidos pelas descobertas científicas e o aperfeiçoamento das tecnologias de produção. Com isso o processo de humanização acelera-se num ritmo geométrico, avançando sobre as últimas paisagens naturais. Em não poucos casos os métodos empregados e a ausência  de critérios, tornam evidente que se chegou a um limite crítico. Continuando nessa direção corre-se o sério risco da quebra do equilíbrio na simbiose entre cultura e meio ambiente.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 45 -

O destino dos bens da Natureza

Um número crescente de cientistas e filósofos da Natureza, vão concluindo com convicção cada vez maior, de que o universo do qual fazemos parte e do  habitat imediato em que passamos a nossa existência, forma uma gigantesca unidade e um sistema finamente calibrado e de alta resolução. A pluralidade sem fim de fatos, fenômenos e formas de vida têm a sua explicação e razão de ser nesta unidade. Mais acima já aprofundamos essa questão. O que interessa a esta altura das reflexões à margem da Encíclica, é o significado do pertencimento do homem ao meio natural em comunhão com os demais seres vivos. Novamente, para relembrar, o homem é uma das muitas realizações dos potenciais da natureza e, por isso mesmo, sua existência na origem, na perpetuação e no seu destino é por ela condicionada.

Este dado filosoficamente correto e cientificamente comprovado, nos fez afirmar tantas vezes que a natureza e seus recursos são um bem comum. Deles depende o existir e o continuar a existir  da vida na terra. Essa compreensão faz parte do senso comum, pois para  “crentes e não crentes a terra  é, essencialmente uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos”. (Laudato si, 93). Sendo assim os bens não podem ser objeto de propriedade privada sem limites. “A propriedade privada está subordinada ao destino universal dos bens.  Assim, a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto e intocável  o direito à propriedade privada e, salientou a função social de qualquer  forma de propriedade privada”. (Laudato si, 93). Supostos estes limites a Igreja defende a propriedade privada.

Faz parte da própria natureza do homem sentir-se dono de bens materiais, terra, imóveis, empresas etc., dando-lhe segurança, realização, estímulo e compromisso. Foram exatamente esses fatores que levaram Wilhelm Ketteler, bispo  de Mainz a defender a propriedade privada, nos famosos sermões proferidos na catedral daquela cidade em 1848, coincidentemente no mesmo ano em Marx publicou seu “Manifesto”.  Mas, ao defender o direito à propriedade chamou também a atenção aos limites impostos pela dimensão social da posse e do seu uso. Heinrich Pesch, teórico do Solidarismo resumiu  essa relação na sentença: “O que importa não é a socialização da propriedade privada, mas a socialização da mente dos proprietários”. Em outras palavras. De um lado a propriedade é um direito natural das  pessoas como fator de estímulo e realização pessoal. Do outro, porém, as  demais pessoas gozam do mesmo direito. A convivência e o acesso aos recursos não pode ocorrer por meio de um “pacto” acertado entre as partes pelo qual se garante total autonomia sobre a exploração e uso fruto dos bens. Neste cenário de competição e livre concorrência, não passa de ilusão imaginar que as “mentes dos proprietários se socializem” e como tal  respeitem a dimensão social das sua propriedade. A livre disputa irá, de alguma forma impor “o lado do lobo” que faz parte da própria natureza da espécie humana. No relacionamento entre os membros de uma sociedade estruturada sobe esses moldes, “o lobo” fatalmente mostrará os dentes.

O mesmo fenômeno dita as normas também numa sociedade coletivista. O Estado incarnado na nomenclatura burocrática, administra os bens e deles usufrui com se fossem sua propriedade. A grande massa da população que se conforma com as migalhas que eventualmente sobram da voracidade do monstro burocrático.

Concluindo, o único regime  capaz de lidar com os recursos naturais preservando sua destinação social é aquele em que as pessoas comuns e as demais camadas da sociedade selam um compromisso legitimado pelos princípios do Solidarismo.

A Igreja defende como legítimo o direito à propriedade privada, mas ensina, com não menor insistência, que sobre toda a propriedade particular pesas sempre uma hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu. Por isso afirma que não é segundo o desígnio de Deus gerir este dom de modo  tal que os seus benefícios aproveitem apenas alguns. (Laudato si, 93)  ( ... ) O rico e o pobre tem a mesma dignidade porque quem os fez foi o Senhor. (Pr. 22,2 ) e faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus. (Mt. 5,45). (Laudato si , 94).