Da Enxada à Cátedra [ 11 ]

Minha Formação

Comecei a frequentar a escola com 8 anos recém completados em fevereiro de 1938. Chamo a atenção pelo fato de que naquele ano meu irmão mais velho, o Pe. Balduino completou a sua trajetória de formação como jesuíta com a chamada “Terceira Provação”, o Roberto cursava a faculdade de filosofia no Seminário em São Leopoldo, o Bertoldo encontrava-se no Seminário Menor em Salvador do Sul, cursando o ginásio e a Tecla no Bom Conselho em Porto Alegre, também cursando ginásio. Estou chamando a atenção a esse detalhe pois, com quatro irmãos, dois no ensino médio e dois no superior, deve ter despertado muito cedo em mim a vontade de dedicar-me para valer ao estudo e saciar a sede de conhecimento. Soma-se a isso o fato de meu pai e meus dois irmãos colonos, minha mãe e minha irmã com grave deformação da bacia, eram leitores assíduos do jornal Deutsches Volksblatt, religiosamente assinado, de almanaques, vidas de santos, livros profanos emprestados na biblioteca da comunidade, à disposição na casa paroquial. Esse clima impregnado de cultura apesar da precariedade do dia a dia de filho de colono fez com que entrasse na escola praticamente alfabetizado. Minha mãe e minha irmã Ana ensinaram-me a escrever e meu irmão Raymundo, colono leitor assíduo como já anotei mais acima, ensinou-me a ler.

Minha escola.

Antes de começar a registrar as recordações que guardo dos quatro anos em que frequentei a escola paroquial ou comunitária, como era conhecida naquele remoto ano de 1938, faz-se necessário falar resumidamente sobre a natureza e as características daquela escola. Na história da imigração alemã do sul do Brasil costuma ser chamada de Escola Comunitária ou também de Escola Paroquial. Ao meu entender a denominação mais correta é a primeira. O porque dessa preferência irei explicar mais abaixo. A origem dessa Escola Comunitária ou Escola de Comunidade tem muito a ver com as circunstâncias características em que aconteceu e se consolidou a colonização do sul do Brasil pelos imigrantes alemães, tanto católicos quanto protestantes a partir de 1824. Numa proporção média de 54% de protestantes e 46% de católicos. Ambas as confissões organizaram suas comunidades nos mesmos moldes. Garantiam basicamente uma vida comunitária organizada facilitando a solidariedade e o mútuo comprometimento dos seus membros, a preservação da religiosidade e do nível cultural, a garantia dos valores, os hábitos e costumes que faziam parte da sua tradição. Para atender a essa demanda tratavam de munir as comunidades com suas igrejas e capelas, escolas, cemitérios, ferrarias, carpintarias, moinhos, casas de comércio, espaços para a prática do lazer. Não pretendo alongar-me nos detalhes porque são conhecidos por todos aqueles que têm informações um pouco mais detalhadas sobre o panorama da colonização dos primeiros 100 anos. Interessa aqui chamar a atenção para a Escola Comunitária ou de Comunidade e especificamente a das comunidades católicas pois, foi numa delas que dei os primeiros passos e solidifiquei os fundamentos sobre os quais edifiquei a minha formação acadêmica em todos os níveis no decorrer das quatro décadas posteriores. ( Para informações mais detalhadas sugiro o livro de minha autoria: “A Escola comunitária Teuto-Brasileira publicado pela Edit. Unisinos)

A classificação de escola comunitária justifica-se pelo fato de elas terem sido construídas, instaladas e mantidas pela comunidade que, para tanto, escolhia dentre seus membros uma diretoria responsável para a construção, manutenção e bom andamento do quotidiano da escola, inclusive a contratação do professor, sua remuneração e sua substituição caso não atendesse às exigências da comunidade. Essas escolas foram, portanto, criadas e mantidas por recursos próprios, sem o auxílio nem da Igreja, nem do Estado. Por isso foram escolas particulares ou comunitárias, porém, confessionais. O termo escola paroquial entrou nessa história somente a partir da década de 1920 com a discutível interferência do arcebispo D. João Becker valendo-se de sua autoridade para controlar o ensino nessas escolas e apropriar à mitra o património material de que dispunham, como instalações e áreas de dezenas de hectares de terras à disposição da família do professor, na verdade propriedade legal da comunidade escolar. Não é aqui o lugar nem o momento para entrar nos detalhes daquele episódio que causou uma mal estar desnecessário entre os católicos e sua relação com a autoridade eclesiástica no começo da década de 1920. A típica escola teuto-brasileira era, portanto, uma escola comunitária no sentido que caracterizei acima. Por isso mesmo não cabia ser rotulada como escola paroquial. Acontece, porém, que normalmente havia uma estreita relação e até interdependência entre escola e paróquia. Em assuntos de maior importância o pároco ou seu representante costumava ser consultado. Por ser representante da Igreja e responsável pela vida religiosa da comunidade, embora não integrasse a diretoria da escola, terminava na prática por decidir sobre os conteúdos e a própria rotina didático-pedagógica a cargo do professor, impondo, em não poucos casos, a sua vontade num nível indevido. Apagavam-se assim os limites entre as competências da Diretoria da Escola e da Diretoria da Paróquia o que terminou no entendimento de historiadores, que estamos falando em Escola Paroquial. Como eu comecei a frequentar a escola em 1938, portanto, antes de ser atropelada pelos decretos de nacionalização do ensino de maio e dezembro daquele ano, ela exibia claramente a situação ambígua de escola comunitária e escola paroquial.

Discussões sobre a natureza da escola à parte, quero dar uma ideia do tipo e do nível de formação que ela oferecia a partir do começo do século XX. Para começar, um detalhe parece de importância. Na década de 1930, se não todos, mas a grande maioria dos professores eram portadores de uma formação comparável aos formados em escolas normais. Meu professor, José Brandt, por ex., foi egresso da escola de formação de professores em Estrela. Dominava perfeitamente o alemão e o português, tocava violino e harmônio, regia o coral da capela da comunidade, encarregava-se das aulas de religião e conhecia a fundo os conteúdos curriculares além de se valer com maestria de métodos didáticos que despertavam o interesse dos alunos que, terminado o período escolar de 4 anos, partiam para a vida munidos com os instrumentos mais essenciais para administrarem suas propriedades e educarem seus filhos inculcando-lhes os valores de vida exigidos pelo quotidiano do colono. É preciso lembrar também que desses professores, a grande maioria homens e pais de família, exigia-se uma versatilidade impensável nos dias de hoje. Acontece que as escolas, como aquela que frequentei, reuniam num recinto único crianças de sete anos para serem alfabetizados com alunos de 10 ou 11 anos em final de formação primária. O professor alfabetizava, ensinava a ler e escrever e fazer cálculos, escrever cartas, ensinar geografia, história, rudimentos de ciências naturais, enfim dava conta de todos os conteúdos do currículo. Mais abaixo vou detalhar um pouco mais esse currículo.

A pergunta que se coloca a essa altura é essa: Na hierarquia das competências com autoridade sobre escola comunitária de que estamos falando, qual a posição da família, da comunidade, da Igreja e do Estado? Em resumo, a competência cabia em primeiro lugar aos pais pois, a educação tem na família a sua base. Como a família não está em condições de oferecer aos filhos os conhecimentos, os instrumentos e as ferramentas indispensáveis para se darem bem no futuro, essa tarefa foi transferida para a escola e, por extensão para a Comunidade. Cabia a Igreja a responsabilidade de zelar pela instrução religiosa já que estamos falando de uma escola confessional. Do Estado esperava-se que garantisse o apoio legal necessário, sem compromissos como subsídios ou qualquer outro aporte material e, principalmente, garantisse a autonomia curricular e didático pedagógica, a cargo da Associação dos Professores Católicos de um lado e a dos Protestantes do outro. O que acabo de resumir no tocante à escola comunitária pode ser formulado em três princípios básicos definidos pela Associação dos Professores Católicos em 1909.

Primeiro. Os pais têm o direito natural e divino sobre a educação dos filhos, o direito primário, portanto.
Segundo. A Igreja tem o direito sobre a formação religiosa das crianças e, junto com a comunidade cabe-lhe a guarda e vigilância sobre o bom andamento material e didático-pedagógico.

Terceiro. O Estado tem o direito de exigir de seus cidadãos uma formação mínima, e pode, em caso de necessidade garantir a obrigatoriedade mediante dispositivos legais. Não lhe assiste, porém, o direito para impor o monopólio ou a coação de uma escola livre e laica.

Da Enxada à Cátedra [ 10 ]

Uma viagem a Santa Clara

No outono de 1937 meus pais programaram uma viagem a Santa Clara do Sul, lá um pouco adiante de Lajeado e decidiram levar-me com eles. O irmão mais novo da minha mãe, o Pedro, era pároco da localidade e minha avó materna viúva morava com ele. Foi a minha segunda viagem para além dos topos dos morros que delimitavam o meu mundo infantil. Suponho que seja interessante e instrutivo detalhar um pouco as peripécias de uma viagem que hoje em estradas asfaltadas leva um pouco mais de duas horas. A primeira etapa da viagem, que exigiu um dia inteiro foi do Morro da Manteiga até Salvador do Sul (o Kappesberg de então). Foram mais ou menos 10 quilômetros eu com meu pai montados numa mula e minha mãe no cavalo dela, o “zaino”, até o vilarejo hoje Salvador do Sul. Pernoitamos na casa da família Alflent, conhecidos e amigos dos meus pais. A mula do pai e o cavalo da mãe ficaram pastando no potreiro dessa família. Às 4 horas da tarde do dia seguinte embarcamos no trem que voltava de Caxias do Sul com destino a Porto Alegre. Foi para mim uma experiência inusitada aquela descida na “Maria Fumaça” de Salvador do Sul passando pelo túnel até a cidadezinha, melhor povoado de Maratá. Lá pernoitamos num daqueles hotéis despojados oferecendo o mínimo indispensável para os hóspedes em trânsito. Lembro-me muito bem que no café da manhã degustei pela primeira vez na vida rodelas de salamito, queijo e pão branco (feito com farinha de trigo industrial). Depois do café da manhã embarcamos num ônibus daqueles que já descrevi na viagem a Porto Alegre. Um pouco mais adiante ele subiu gemendo o Morro Paris temido pelos motoristas, em direção a Poço das Antas. Na descida para Poço das Antas o motorista permitiu-se um pouco mais de velocidade e a mala de um dos passageiros, amarrada do lado de fora, abriu-se e espalhou o conteúdo pelo milharal na beira da estrada. Mas não houve problema maior. O motorista estacionou o veículo e os passageiros solidários ajudaram a recolher o conteúdo da mala. Tudo no seu devido lugarcontinuamos a viagem passando por Poço das Antas, Teutônia até Estrela. Uma barca nos levou para o outro lado do Taquari e fomos pernoitar no hotel Benz em Lajeado. Na manhã seguinte, depois do café, encostou um Ford de Bigode com meu tio Pedro para nos levar até Santa Clara do Sul. A estrada toda de chão batido passava por plantações de milho em ponto de colheita, mandioca e outras culturas. Pela hora do meio dia desembarcamos na frente da casa paroquial de Santa Clara onde nos esperava a minha avó materna. Uma viagem que hoje se faz com folga em menos de uma manhã levou praticamente um dia naquele remoto ano de 1937. Não me lembro de muitos detalhes da semana que nos demoramos em Santa Clara. Assistimos a missa no domingo, fomos visitar o cemitério e as sepulturas de parentes próximos, fundadores daquela comunidade e conhecidos e parentes principalmente do lado do meu pai. Um detalhe que guardei na memória foi o Sigma, símbolo do partido integralista desenhado em placas e até em paredes de casas e, certo dia um rapaz galopando pelo centro da vila, gritando Vivas a Plínio Salgado. Em 11 de novembro daquele ano a implantação do Estado Novo colocaria o partido na ilegalidade. Relembrando aquele passado constato a que ponto as comunidades coloniais, não tenho dados para afirmar se todas, participavam da política e com que orientação estavam comprometidas.

Passados os dias da visita, o tio Pe. Pedro levou-nos de novo num Ford de Bigode, desta vez até Estrela, para pernoitarmos na casa de um primo da minha mãe, dono de um curtume. Como era um empresário bem sucedido, morava numa casa mobiliada com o que havia de mais moderno na época. Acostumado com a frugalidade, a simplicidade para não falar precariedade da nossa casa de madeira bruta lá no Morro da Manteiga, senti-me como um pássaro fora do ninho. Não saía de perto da minha mãe e por mais que insistissem não fui capaz de brincar com os filhos da casa que tinham mais ou menos a minha idade. No dia seguinte embarcamos no ônibus e, via Teutônia, Poço das Antas para terminar novamente em Maratá, para embarcar no trem e subir até Salvador do Sul onde chegamos às 10 horas da manhã. Subimos até o Colégio Santo Inácio para visitar meu irmão Bertoldo, interno daquele Seminário dos jesuítas. Foi uma visita rápida para depois descer até a casa do amigo do meu pai onde tínhamos deixado as montarias no potreiro. Ainda na mesma tarde encilhamos os animais e descemos por Júlio de Castilhos (conhecido na época por “Badensertal”, até Tupandi (o então Salvador), para a última etapa da cavalgada, a subida do Morro da Manteiga onde nos esperava a nossa casa de madeira, rústica sim, mas nos acolhendo com o aconchego e a sensação sem preço de estar novamente “em casa”.

Dinos do Saber 1/2 [ Pe. Aloísio Bohnen e Arthur Rambo ]


Pe. Aloísio Bohnen e Arthur Rambo contam um pouco das suas origens.

Vídeo dividido em duas partes 1/2