Da Enxada à Cátedra [ 1 ]

Da Enxada à Cátedra 

 

 

Sumário 

Apresentação 

Minha terra natal 

Como tudo começou 

Lugares. Espaços e caminhos da infância 

Festa em Família 

Viagem a Santa Clara do Sul 

Minha formação 

Minha Escola 

O Currículo 

A religião 

A língua alemã 

A memorização 

A composição 

A ortografia 

A caligrafia 

A língua portuguesa 

Aritmética e cálculo 

Realia – realidades 

O canto 

Nacionalização da Escola Comunitária 

A caminho da escola 

Formação no nível médio 

O Colégio Santo Inácio 

A rotina diária 

Programação acadêmica 

Atividades complementares 

O Museu 

Excursões 

Período da Segunda Guerra Mundial 

O após Segunda Guerra Mundial 

Construção da Capela e Salão de Atos 

Viagem a São João do Oeste 

No Noviciado 

 Bacharelado em Línguas Clássicas – Retórica 

Bacharelado em Filosofia. 

Férias em São Francisco de Paula 

Bacharelado na UFRGS 

Docente no Colégio Anchieta 

Docente na UFRGS e Licenciatura em Teologia 

Observações introdutórias 

Falecimento do Pe. Balduino Rambo 

Ano de 1962 

Viagem pelo Rio Grande do Sul 

Ano de 1963 – Conclusão da Formação Teológica 

Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e Faculdade de C. Econômicas 

Organização do espaço físico 

Cursos de Matemática, Física e História em 1963 

Instituto Anchietano de Pesquisas 

Transferência da Xácara da Prefeitura 

Diagnóstico Socioeconômico de Dois Irmãos 

Cooperativa Agropecuária Piá 

Valorização do vale do Rio dos Sinos 

Planisinos 

Extensão da Filosofia a Taquara 

Projeto da Universidade do Vale dos Sinos – Unisinos 

Década de 1960 na UFRG 

Reforma do Ensino 

O Marxismo 

O Mapa Mundi redesenhado 

A Urbanização 

A ação Popular – “Action Populaire 

O Gramscismo 

Escola de Frankfurt 

Teologia da Libertação 

Dedicação exclusiva na Unisinos 

Coordenador do PPGH 

PPGH em Santo Ângelo 

Viagem a Halle na Alemanha 

Viagem ao Chile 

Viagem à Alemanha e Norte da Itália 

Acervo de documentação e Pesquisa – ADOPE. 

Bibliotecas e Acervos Documentais. 

Viagens à Europa 

2002 – Praga – Inglaterra 

2004 – Paris – Rimini – Urbino 

2005 -  Roma – Praga 

2006 – Milão – Trento – Stuttgard 

2007 – Inglaterra – Berlim Praga 

2009 – Inglaterra -  MuniqueBolsano 

2011 – Inglaterra Verona 

O Entardecer 

 

  

 

 

Apresentação. 

 

“Recordar é um pouco percorrer novamente velhos caminhos, mas é também imaginar o ocorrido e construir sobre ele uma nova realidade. Pois, como afirma Valle Inclán: As coisas não são como as vemos, mas como as recordamos”. (cf. Caldera, 2004, p. 14). Para começar, não é pretensão minha escrever uma autobiografia. Meu propósito resume-se em pinçar na minha memória episódios paradigmáticos que fazem parte da minha trajetória de mais de nove décadas, inserida no contexto histórico, geográfico, cultural e religioso moldado pelos imigrantes alemães no sul do Brasil, hoje na quarta até nona geração aqui nascida. Como é conhecido por qualquer um com um mínimo de conhecimento dessa realidade como os colonos consumiam a sua existência praticando a  policultura nas suas pequenas glebas, destinada, antes de mais nada para garantir o sustento das famílias. Esses pequenos produtores rurais costumavam percorrer basicamente dois caminhos o diário de ida e volta para a roça e o dominical de ida e volta à igreja. As comunidades mantinham suas próprias escolas. Os lugares, espaços e caminhos em que as pessoas circulavam não costumavam ultrapassar os limites que marcavam o espaço comunal. Acontece que esse espaço não vinha a ser hermético ao ponto de simplesmente impedir aos filhos dos colonos de encontrar saídas para se encaminharem para uma outra modalidade de vida que não fosse cultivar milho, feijão, batata, mandioca, abóboras e criar porcos. A assistência religiosa, a administração de hospitais, a educação confiada às ordens e congregações religiosas, masculinas e femininas, assim como a pastoral sob a responsabilidade do clero regular ou diocesano, vinham a ser a porta mais comum que se abria para os filhos e filhas dos colonos para opções de vida que não fosse a “ida e volta diária da roça” ou a “ida e volta semanal para igreja”. Instituições destinadas à formação de religiosas e congregações masculinas não clericais, seminários para  a formação do clero regular e diocesano, escolas normais para a formação de professores, recebiam os filhos e filhas dos colonos em princípio vocacionados para entrar numa congregação ou ordem religiosa. Evidentemente, a grande maioria, calculo em torno de 80%, mudavam de rumo no decorrer da formação. Uma parcela voltou para “a enxada” mas a maioria veio a dedicar-se a profissões liberais, entrou no serviço pública, entrou nas forças armadas, dedicou-se ao comércio, ao magistério no ensino fundamental, médio e superior. Mesmo daqueles que de fato entraram numa ordem ou congregação religiosa, uma alta percentagem cumpriu sua missão de vida como professores e professoras, enfermeiras e em casos menos frequentes exerceram o magistério e ou dedicaram-se à pesquisa em universidades públicas ou privadas. E, para não estagnar em considerações abstratas, permito-me lembrar a minha família como exemplo. Da família do meu avô materno uma das minhas tias foi religiosa franciscana e um tio, o mais novo da família, sacerdote diocesano. Da família do meu avô paterno, três das minhas tias foram religiosas franciscanas, um sacerdote diocesano e um jesuíta. Passando agora para minha família, dos oito filhos o mais velho, o Balduino foi jesuíta, professor de ciências no ensino médio, catedrático fundador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, botânico com renome consagrado entre os da nata mundial dessa especialidade, fundador do parque dos Aparados, escritor. O Roberto, também jesuíta foi professor de química, física e matemática no ensino médio e bioquímica na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. A Tecla, foi religiosa franciscana, professora no ensino médio em Santa Maria, cofundadora e professora na Faculdade Imaculada Conceição, hoje Unifran (Universidade Franciscana) em santa Maria. Conquistou PHD em língua e literatura inglesa e americana na Universidade Católica de Washington e foi  professora titular desta especialidade na Universidade Federal de Santa Maria. Eu próprio, mais novo dos oito irmãos, como jesuíta conquistei o bacharelado em Línguas Clássicas, em Filosofia, em História Natural e Geologia e licenciatura em Teologia e, mais. tarde Livre docência em Antropologia, doutorado em Filosofia, e pós-doutorado na Universidade V, René Descarte de Paris. Sou professor titular emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Posto esse panorama de fundo, creio que, em vez de “Recordações”, “Flagrantes” ou “Reminiscências”, o título “Da Enxada à Cátedra” expressa melhor as minhas intenções. O objetivo maior resume-se em destacar aspetos que foram característicos e marcantes  da minha trajetória além de refletir sobre eles, começando pela década de 1930 pois, nasci em três de fevereiro daquele ano. 


[ Reflexões ]

A revolução agrícola

Simultaneamente no espaço e no tempo à “Revolução Pastoril” aconteceu a “Revolução Agrícola. Darcy Ribeiro chamou as duas “revoluções” como a “Revolução dos Alimentos”. A revolução agrícola começou a tornar-se possível a partir do momento em que os coletores da pré-história perceberam que determinadas espécies de plantas que lhes forneciam sementes, raízes, tubérculos e frutos comestíveis, podiam ser cultivadas, tornando-se mais produtivas e as colheitas mais seguras e previsíveis. O manejo controlado das plantas teve, ao lado do potencial incalculável de novas perspectivas na provisão das necessidades básicas de sobrevivência, uma profunda revolução na relação do homem com seu entorno natural. Da condição de total dependência dos caprichos da natureza os povos agricultores passaram a valer-se cada vez de mais e melhores tecnologias, melhorando os métodos de plantio, identificando mais espécies de plantas passíveis de manejo e, desde muito cedo, manipulando pela seleção e o cruzamento diversas variedades nativas, obtendo híbridos mais produtivos. O homem e a natureza selaram, por assim dizer, uma aliança e solidificaram uma relação de mutualidade que serviu de trampolim para um salto de qualidade sem precedentes: A Revolução dos Alimentos. Foi o ponto de largada para a simbiose entre a ação cultural do homem e o entorno geográfico. Os resultados dessa parceria do agricultor com seu chão fizeram-se sentir de muitas formas. Sem privilegiar uma ou outra, destaquemos algumas.

O preparo da terra, a semeadura, o cuidado com o desenvolvimento das plantas, a colheita e o recomeço de um novo ciclo agrícola, determinaram o fim da vida itinerante exigida pela coleta. Os agricultores tornaram-se sedentários, instalaram moradias em aldeias permanentes.  O chão preferido pelos povos agrícolas primitivos foram as terras planas ao longo dos grandes rios da África, Oriente Médio e Próximo, Índia e China. Assim, a partir do momento em que dispomos de dados históricos mais precisos, encontramos o vale do Nilo, do Eufrates e Tigre, do Indo, do Ganges, do Yankze, do Hoango e outros, cobertos por uma mosaico de terras plantadas e pontilhados por inúmeras aldeias. Em pontos estratégicos centros urbanos de porte polarizavam as atividades de regiões maiores. O gigantesco potencial de progresso desse processo de humanização que se desencadeou desde a “domesticação” das primeiras plantas úteis no Neolítico, ainda não está esgotado. Das várzeas dos grandes rios a agricultura avançou sobre as encostas de montanhas, tomou o lugar das florestas, transformou em grande parte estepes, savanas e pradarias, impulsionada por sempre novas tecnologias de manejo do solo e espécies de plantas. Em regiões inteiras reduziu a curiosidades ecológicas as relíquias da paisagem original. Acontece que a primeira necessidade do homem de 15000 ou 20000 anos passados e do começo do terceiro milênio, tem em comum a necessidade de alimentar-se. E quem fornece os alimentos são, ainda hoje, os criadores de animais e os agricultores, amparados pelas descobertas científicas e a maior eficiência das tecnologias de produção. E com isso o processo de humanização acelera-se e vai-se impondo cada vez mais sobre as últimas paisagens naturais. Em não poucos casos os métodos empregados e a ausência de critérios, tornam evidente que se chegou a um limite crítico. Continuando nesta direção corre-se o risco de quebrar o equilíbrio da simbiose entre cultura e meio ambiente.

Dispensam-se teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a História, a fim de nos convencermos do acerto dessa afirmação. Entre os agricultores, o sol, a lua com seus ciclos regulares tornaram-se referência da própria dinâmica da História. E em torno do nascer de do ocaso do sol, alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o agricultor foi elaborando e consolidando todo um universo simbólico, um universo de costumes, hábitos, valores, crenças, cultos e rituais. O sol definindo os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comanda a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento o florescimento, a maturação das colheitas e, finalmente, a colheita. Em meio a esse eterno fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer os fenômenos pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos e climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade étnica e cultural. A primavera veio a simbolizar o germinar da vida e juventude, o verão a plenitude do vigor adulto, o outono a colheita dos bons ou maus frutos, o inverno o declínio e finalmente a morte, para, em seguida, germinar nova vida e recomeçar o eterno vir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e os ciclos da vida terminaram confundindo-se simbolicamente numa única e a mesma dinâmica. É neste sentido que se fala em primavera da vida ou vida contada em primaveras. Pela sua importância o sol e a lua, foram adorados como divindades por não poucos povos. 

As observações feitas acima mostram como a identidade étnica e cultual dos caçadores e coletores da pré-história e a dos criadores de animais e agricultores, já no limiar dos tempos históricos, foi o resultado da simbiose entre o entorno geográfico e a satisfação das necessidades materiais e espirituais do homem. Alguém poderia objetar que há um exagero em tudo isso. A insistência no papel do meio ambiente poderia levar à falsa compreensão de que as culturas, pelo menos aquelas rotuladas como “primitivas”, não passam de um produto do entorno físico-geográfico. É verdade que quanto mais se recua na História tanto mais visível fica essa impressão. Há, contudo, uma diferença essencial entre deixar marcas definitivas no quotidiano do homem e o determinismo geográfico puro e simples. Tanto o exagero em minimizar ou até ignorar as circunstâncias geográficas, quanto o de atribuir-lhes um papel além do devido pela própria natureza das coisas, leva a uma avaliação distorcida da gênese e moldagem da cultura. No esforço de identificar o perfil das culturas nos seus estágios mais antigos de evolução e as identidades étnicas que imprimiram nos respectivos povos, não se pode esquecer que a individualidade étnica tem a sua raiz na inteligência reflexa, privilégio exclusivo do homem. Ela responde de forma original e criativa aos estímulos que vem do meio geográfico. É neste particular que reside a sua enorme importância. O cenário geográfico oferece o palco sobre o qual se tornou possível a representação da História do homem. Como ele é capaz de dar respostas alternativas aos estímulos que variam de ambiente para ambiente, as identidades étnicas exibem as marcas dos traços deixados pela paisagem na qual foram moldados. Disfarçados ou flagrantes permeiam e iluminam a complexa urdidura da trama de   que é responsável pela identidade étnica. E do outro lado, a intervenção criativa do homem no seu entorno geográfico, fez dele muito mais do que um fornecedor dos meios de subsistência. Instrumentos, ferramentas, utensílios, armas, enfim, o aperfeiçoamento, a diversificação e especialização de tecnologias, permitiu ao homem intervir sempre mais profundamente no seu entorno, imprimindo-lhe uma feição cada vez mais humanizada. Lentamente aconteceu, assim a simbiose, a síntese entre a paisagem e a alma do homem e, desta relação do homem com o seu chão, floresceram no decurso dos milênios as culturas e moldaram-se as identidades étnicas. O Pe. Balduino Rambo, diante da riqueza de peças arqueológicas pré-históricas no museu de Filadelfia, registrou a seguinte reflexão:

“O homem que, como caçador e coletor, há muitos milhares de anos, vagava pelas florestas e estepes, de forma alguma era meio ou três quartos animal. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certo ponto altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que hoje se fabrica de aço e ferro. Inventou a técnica de assar, fritar, refogar, cozinhar e, com isso, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente a cozinheiros e cozinheiras, o homem primitivo teve que tentar, experimentar e excogitar penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o poder do fogo sob as panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor dos nossos carros, aos navios, às máquinas voadoras, o devemos, em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo quando da queda de um raio, na erupção de um vulcão ou aprendeu a produzi-lo com a fricção de madeiras ou batendo um fragmento de sílex contra o outro. Ele foi também o inventor das armas: do arco e da flecha, do machado de guerra, dos punhais e lanças. Sorte sua que não descobriu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade teria perecido já nos tempos primigênios. Foi inventor da arte de costurar, comprovada pelas numerosas agulhas de chifre e osso, com mesmo feitio e quase tão finas quanto as nossas agulhas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais e não vagava nu por aí como querem aqueles que gostam de venerar animais como seus avós. Foi inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos, cabanas e, finalmente, em casas de verdade, mesmo que fossem  
menos confortáveis que nossos arranha-céus e palácios. Certamente tinham melhor ventilação e reuniam a família em volta da chama amiga como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas comemos até saciar”. (Rambo, Balduino. Três meses na América, p. 400).

[ Reflexões ]

A revolução pastoril

No decorrer do Mesolítico, período de transição entre o Paleolítico e o Neolítico muitos caçadores e coletores deram um passo revolucionário no suprimento de suas necessidades de sobrevivência. O convívio com os animais e a observação dos seus hábitos, deixaram claro que havia uma grande diferença entre as muitas espécies que conviviam nos mesmos territórios com o homem. Uns agrediam, outros evitavam a presença do homem, outros ainda eram em extremo ariscos. Havia-os também que se acostumaram com a presença dos acampamentos de caçadores e coletores e, com o tempo também com os humanos. E neste convívio, de observação em observação, de tentativa em tentativa, algumas espécies, úteis sob diversos aspectos, passaram a fazer parte da rotina do cotidiano. Foi mais do que natural que nesse relacionamento o homem fosse identificando as melhores forma para lidar com diversas espécies, experimentasse influir no seu   comportamento, induzisse novas formas de condutas e assim amoldá-las às próprias conveniências. Deve ter sido assim que, o acúmulo de experiências e soma dos resultados, levou à domesticação de espécies fornecedoras de alimentos e abrigos como ovinos, bovinos e suínos; espécies auxiliares nas atividades diárias como o cão de guarda e espécies empregadas no transporte de carga, tração e montaria. Essa transição evidentemente não aconteceu de um dia para o outro. Foram precisos séculos e milênios par que aos caçadores nômades de animais selvagens sucedessem os pastores e criadores de animais. Essa passagem representou um passo gigantesco em direção à libertação do jugo do homem pela natureza par assumir gradativamente o controle sobre os recursos necessários à sobrevivência.

Ao mesmo tempo em que a domesticação de animais consolidou uma base de sobrevivência previsível, controlável e segura, aconteceu uma revolução semelhante e de repercussão não menos significativa, na obtenção dos alimentos de origem vegetal. A observação, a experiência acumulada com a coleta de frutas, raízes e tubérculos, levou ao cultivo de espécies úteis. Essa “domesticação” de plantas resultou no aperfeiçoamento gradativo das técnicas de lidar com espécies vegetais úteis e, ao mesmo tempo, incorporar sempre mais espécies e variedades.

Tanto a domesticação de animais quanto a “domesticação” de plantas resultou numa completa revolução na relação do homem com seu ambiente natural. É difícil, senão impossível saber quais foram as espécies de animais domesticadas por primeiro. As evidências sugerem que os vestígios de ovelhas, cabras, jumentos, bovinos, além de cães, aparecem como dos mais antigos. Mas não são tanto as espécies em si que fizeram a diferença na relação do homem com seu ambiente natural. Os criadores de animais começaram a viver em acampamentos seminômades. Deslocavam-se por territórios de tamanhos avariáveis de acordo com as pastagens naturais disponíveis. O quotidiano dos pastores consumia-se em função dos rebanhos que, por sua vez, retribuíam com carne, leite, peles e lã. Uma cultura, toda ela voltada para o pastoreio começou a povoar as estepes da África, as estepes semiáridas na periferia dos desertos do Oriente Médio e Próximo, as estepes da Europa e da Ásia e as encostas e os planaltos das cadeias de montanhas. Não há necessidade de insistir que a cultura desses povos nômades ou seminômades assumisse contornos diferenciais inconfundíveis. Sem falar na cultura material impôs-se um tipo de organização social com predominância do patriarcado. O imaginário, as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica dos rebanhos, na dinâmica   da vida nos acampamentos e, não em último lugar, nos fenômenos naturais sempre presentes. Fatos quotidianos como nascer, crescer, viver e morrer inspiraram poetas, cantores e músicos. Os astros tiveram um significado todo especial na vida desses povos. O ir e voltar do sol responsável pela dinâmica do quotidiano, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e a luta em personalidades mitológicas, veneradas como entidades sobrenaturais ou verdadeiras divindades. A vida em tendas e acampamentos móveis, as vigílias noturnas junto aos rebanhos, induziram uma relação toda peculiar entre os pastores e o firmamento estrelado. Não tardou que os observadores mais atentos notassem que esse universo nada tinha de estático. Os astros movimentavam-se numa coreografia disciplinada, percorrendo caminhos e trajetórias, obedecendo leis imutáveis. De tempos em tempos essa dança celeste sofria a intromissão de fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões estranhos iluminavam a escuridão da noite ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, iluminava o firmamento para, em seguida, submergir de novo no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas, quedas de meteoros, auroras polares, eclipses, devem ter impressionado os pastores em suas noites de vigília junto aos rebanhos e mexido com seu imaginário. E, observando as galáxias em noites sem nuvens, os conjuntos de estrelas, as constelações, foram desenhando os contornos de figuras de animais familiares como do cão, do capricórnio, de peixes, do touro, do leão e outros   mais. Desta forma o firmamento acima começou a ser povoado por criaturas imaginárias, réplicas daquelas com as quais convivia no dia a dia concreto. Conta a lenda que Cadmon, um monge pastor de ovelhas da antiga Inglaterra, escutou durante uma vigília solitária junto ao rebanho de ovelhas no meio da noite, uma voz que pedia: “Cadmon, canta-me a canção do começo de todas as coisas”.

Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia, devem ser procuradas entre os pastores de ovelhas e cabras e criadores de gado do Neolítico. A relação real ou imaginária que se consolidou a partir daí entre o curso e a posição dos astros e a sorte e o destino do homem não parou de se generalizar. Mesmo hoje, em que o progresso científico desvendou em grande parte os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam nem público nem popularidade e com um número de representantes nada desprezível entre as camadas mais cultas e mais ilustradas. As realidades cósmicas estimulando a curiosidade e a imagina e sendo dincorp0odadas nao quotidiano das culturas As realidades cde gado aress,m seguida, submergir de novo no desconhecido.ção e sendo incorporadas no quotidiano das culturas, não deixam de ser um sinal de que o homem se vê ontologicamente inserido no universo como uma realidade superior. Se levássemos as reflexões avante desembocaríamos provavelmente em discussões filosóficas como aquelas que levaram Spinosa a formular sua  visão panteísta do mundo, Teilhard de Chardin sua grandiosa  unidade universal, Ludwig von  a Bertalanffy a oferecer a sua concepção sistêmica, o Pe. Balduino Rambo afirmar que uma flor ou uma lagartixa não são reflexos de Deus, mas são Deus e Nicolau de Cusa ensinar que “ex patibus omnibus exllucet totum” – “o Todo reflete-se nas  partes”.

O gigantesco passo dado pelo homem com a domesticação de animais, veio acompanhado de uma mudança radical do relacionamento que, de então para o futuro, se consolidaria entre o   homem e o mundo que o cerca. Em poucas palavras é lícito afirmar que dois mundos alheios um ao outro, não raro conflitantes convivem justapostos. O mundo do homem e suas culturas gravitavam em torno dos seus rebanhos de um lado, e do outro, o mundo intocado das florestas, dos animais selvagens, dos desertos, das montanhas, dos campos gelados, intocados pela mão do homem.  Já não há necessidade de ele, como seus ancestrais caçadores, percorrer territórios sem fronteiras em busca de caça, pesca e frutos silvestres. De outra parte, as populações de pastores multiplicaram-se. Os métodos de pastoreio foram aperfeiçoados, novas espécies domesticadas somaram-se às já existentes. Essas conquistas vieram a exigir cada vez mais espaço e as reservas de caça e coleta, explorados pelos bandos e hordas que ainda continuavam neste estágio, foram sendo empurrados mais e mais para o interior das florestas, para as encostas das montanhas e demais territórios impróprios para o pastoreio. A competição por espaços vitais foi-se acentuando sem parar, levando a disputas cada vez mais frequentes e maiores por terras, causando guerras de expansão e a movimentação de povos inteiros em busca de mais espaço.

Uma vez domesticadas as espécies de animais que, com o andar da história, se transformariam na base de sustentação e na própria razão de ser povos criadores e pastores, foram definindo aos poucos seus perfis de identidades. Pela sua própria natureza as culturas dos pastores e criadores de animais desenvolveram-se em espaços abertos, territórios com pastagens naturais de dimensões por vezes gigantescas. São exemplos as savanas da África, as estepes de Europa oriental e Ásia, os pampas argentinos, os campos do sul do Brasil, as pradarias da América do Norte. Não permitem aldeias compactas munidas de uma infraestrutura comunal sólida e fixa em torno da qual gravita a vida de uma comunidade. Os acampamentos em constante movimento atrás dos rebanhos em busca de pasto ou a sede de uma estância de gado com suas benfeitorias e moradias dos peões, em nada é comparável a uma comunidade de agricultores familiares. Há, por ex., uma diferença flagrante entre a paisagem humanizada do sul do Rio Grande do Sul ou dos Campos de Cima da Serra, com suas estâncias de gado e a paisagem humanizada dos pequenos agricultores do centro, norte e noroeste do Estado. Entre as duas realidades, conceitos como “Querência”, “lar”, “Heimat”, “Home” ou “Hogar”, importantes na definição da identidade, levam a compreensões tão distantes que, por vezes, nada parecem ter em comum. Outros conceitos como propriedade, bem comum, relações de parentesco, relações de vizinhança, comunidade e outros, baseiam-se em pressupostos diferentes. O mundo dos pastores tem as dimensões do firmamento, que não raro lhes serve de teto e o limite das estepes, pradarias, pampas, campos naturais, savanas, confunde-se com a linha do horizonte. Com a percepção de que o espaço em que se movimentam é ilimitado, sem cercas   ou muros, fazem com que os pastores se sintam livres para servir-se deles e explorá-los sem restrições.

A síntese que resultou dessa relação existencial dos pastores e criadores com o seu mundo externo e as atividades de subsistência nele desenvolvidas, perpassa como fio condutor, como “Leitmotiv”, todas as culturas que emergiram dessas circunstâncias. Engendraram personagens emblemáticos como o vaqueiro das caatingas do nordeste, o cawboy do meio oeste americano, o gaúcho da Argentina e do sul do Brasil, o vaqueiro australiano, o peão das estâncias. Em determinadas circunstâncias a atividade pastoril e a relacionada de alguma maneira com ela, marcaram períodos históricos inteiros assim como regiões inteiras. Um caso exemplar temos no Brasil com o “ciclo do gado”, que no Rio Grande do Sul vem acompanhado das caravanas de mulas que transportavam charque e couros para o centro do País e as tropas de gado que seguiam o mesmo roteiro. Ao longo da rota percorrida, apelidada também de “estrada das mulas”, surgiram povoados que evoluíram para cidades como Glorinha, Santo Antônio da Patrulha, Rolante, São Francisco de Paula, Jaquirana, Bom Jesus, Vacaria, Lajes, distantes umas das outras um dia de viagem de uma caravana de mulas ou uma tropa de gado.

[ Reflexões ]

E para fechar a série de manifestações que, quem sabe, ajudam numa tentativa de aproximação maior ao âmago complexo e misterioso do significado da floresta, Rosegger afirma: “Somente   homem solitário encontra a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e deixa e apenas árvores para trás”. E segundo Ewelk: “Pois a floresta não representa nenhuma alienação da vida. Pelo contrário. A floresta é vida intensa”. E como conclusão, a opinião de Riehl: “Também quando já não precisarmos mais de madeira seca para aquecer por fora, tanto mais indispensável será a verde para o homem, viva e cheia de seiva”. (Citados por Mantel, 1961, p. 12-13)

Depois do registro de todas essas opiniões, interpretações e conclusões, ousamos uma aproximação maior do significado de floresta. Dependendo do ângulo pelo qual se olha e o interesse que subjaz à análise, a compreensão que se tem da floresta e do conceito que se formula, vão de uma visão utilitária e mecanicista até aproximar-se de uma concepção panteísta do mundo e da natureza. 

A magnitude do desafio que nos espera no esforço da busca de uma definição satisfatória do que seja uma floreta, fica evidente na teorização do problema por Dengels.

A floresta é uma comunidade viva composta por todas as formas e graus imagináveis de interdependências recíprocas, somadas à competição e à mútua ajuda sob as mais diversas formas imagináveis. Comandado pelo princípio do equilíbrio, o qual, sob a influência dos mais variados condicionamentos externos, incorpora constantemente formas de floresta mais ou menos delimitadas, para as quais, apos perturbações e oscilações, se orienta sempre de novo a biocinose. (Citado por Horsmann, 1955, p. 12)

Esse tipo de comunidades é tecnicamente definida como “biocinoses”. No contexto em que o conceito foi criado e está sendo empregado, mostra que seu significado é limitado. Limita-se na sua versão original, à relação mútua que prospera entre os seres vivos no seio de uma comunidade desse tipo. Oferece, sem dívida, uma compreensão da floresta muito mais ampla e muito mais completa do que o conceito de floresta como fábrica de madeira, como refúgio de animais, como abrigo para o homem, como fator de equilíbrio climático e edafológico, de preservação de mananciais de água, etc., etc. Uma análise mais atenta deixa claro de que algumas questões reclamam um aprofundamento maior. O conceito de biocinose, comunidade viva é útil e até certo ponto fundamental. Oferece como que uma macrovisão de ordem, de arquitetura integrada, de funcionalidade interna complementar, entre os elementos que integram uma floresta. Apesar de todas as vantagens o conceito de “biocinose” oferece riscos e armadilhas nada desprezíveis.

Primeiro, silencia ou desconsidera o lugar decisivo que cabe ao solo, ao ar, à temperatura, à topografia, à região climática, à regularidade e à definição na demarcação das estações do ano, à composição, estrutura e disposição das rochas.

Segundo, atribui um peso exagerado à noção de “comunidade viva”. Além das restrições a serem feitas à origem do conceito emprestado à Sociologia, e por isso mesmo deve ser utilizado com precaução quando utilizado na definição da floresta. Visto por esse lado não poucos fatos e fenômenos acontecem à margem da “comunidade de vida”. Já em 1943 Fabricius alertou que o conceito é capaz de induzir ao equívoco.

Trata-se de uma definição de floresta que preocupa, porque cada membro dessa comunidade (portanto seres vivos), exceto poucos casos de uma verdadeira comunidade, somados a casos de parasitismo, cada integrante da comunidade tem perfeitas condições de levar vida autônoma, e conforme cada caso, associa-se a outros seres vivos. Acontece que a acepção alemã do conceito é que cada membro de uma comunidade faz livremente sacrifícios pelo outro e lhe presta serviços, coisas, que em se tratando da floresta, não passam de um grande equívoco. No caso de o conceito não ter sido apresentado com o nome de “biocinose”, provavelmente não teria significado uma grande descoberta. (Wolfarth, 1953, p. 13)

Conclui-se daí que a floresta significa algo mais, e como realidade, situa-se além de uma simples comunidade de vida. Não poucos estudiosos tentam valer-se  do conceito de “organismo”, no esforço de uma compreensão mais objetiva e mais completa da natureza da floresta. Lemnertz faz  a seguinte consideração: “O que se torna evidente na comunidade de vida é o que aparece como a somatória dos indivíduos justapostos. Mas as relações biológicas íntimas e a interdependência funcional, escapam inteiramente à percepção e são passíveis apenas de especulação”.  (em Wolfarth, 1953, p. 13)

A concepção de floresta como organismo autônomo foi pela primeira vez formulada por Alfred Möller, com o objetivo de insistir no ponto de vista de que a floresta representa uma realidade biológica única, em oposição àquelas que a simplificam, reduzindo-a a uma mera fornecedora de matéria prima, perdendo a visão do todo. De tantas árvores e troncos já não se percebe a floresta. Na proposta de Möller nota-se claramente uma reorientação do foco de discussão. Opõe a visão biológica à visão mecanicista e utilitária para superar e compensar as limitações da visão sociológica da floresta. Sinaliza com uma proposta de aproximação da concepção holística, em oposição às tentativas de dissecar as estruturas que compõem uma floresta, dando ênfase à função das partes no todo. “A atividade florestal de caráter permanente percebe na floresta uma entidade viva, uma unidade integrada por inúmeros órgãos, todos operando em conjunto, em regime de reciprocidade”.  (em Wolfarth, 1953, p. 13-14)

A concepção organísmica da floresta, conforme Möller, conquistou adeptos entusiastas e incondicionais. Não tardou, porém, que se escutassem vozes e opiniões fortes apontando para os flancos vulneráveis. Uma dessas opiniões discordantes foi a de Dengler, classificando-a como falsa, como exagerada, capaz de levar a conclusões equivocadas.

De qualquer forma, a ligação é muito frouxa comparada com a de um organismo propriamente dito. Os membros da floresta não são órgãos no sentido estrito do termo (organo-instrumentos), destituídos de uma função e uma destinação própria e a relação superficial com o todo não os priva da sua capacidade vital e funcional.  De outra parte, a floresta não cresce de dentro para fora como um organismo, mas seus membros encontram-se na sua origem numa dinâmica livre, de fora para dentro, como pode ser   observado em qualquer nova formação de uma floresta. (Wolfarth, 1953, p. 53)

Parte de Fabricius o argumento   mais contundente contra a concepção organísmica de Möller: “Quando se atribui à floresta a natureza de um organismo, transfere-se a ela um conceito inspirado no conhecimento da vida dos indivíduos em determinadas partes constitutivas da floresta totalmente ignoradas”. 

Seckholzer completa, afirmando que “a floresta é orgânica, isto é, una na sua organização, mas não organísmica, isto é, um ser vivo”. Segundo ele, falta existir o gérmen como potência do todo. A vida acontece por gênese e a floresta por síntese.

De todas essas reflexões, concepções e formulações, é possível tirar algumas conclusões. Começa pelo fato de que todas elas oferecem mais ou menos elementos que iluminam a compreensão do conceito de floresta. Uns conseguem aproximar-se mais, outros menos, do âmago da questão. 

Em 1943, um outro estudioso e intérprete da floresta, interessou-se por mais uma nuança de não pouco significado. Chamou a atenção para o fato de uma floresta manifestar uma busca permanente do equilíbrio na sua economia interna. 

Sua existência manifesta a propriedade da auto regulação, e caso as perturbações não tiverem ultrapassado  um determinado  nível, restabelece o equilíbrio, uma característica privativa  dos organismos, e por isso,  fala-se de uma  floresta e com razão se entende um organismo, não no sentido de um ser vivo individual, um indivíduo, mas de um organismo de ordem mais elevada. (Wolfarth, 1953, p. 14)

Na literatura especializada encontram-se muitas outras formulações, que em última análise, nada mais são do que tentativas para conceituar o que seja um organismo, enriquecendo-o com nuanças mais ou menos significativas. Da grande   diversidade de formulações, conclui-se que a questão não está definitivamente resolvida. Isso não significa que cada uma delas não acrescente alguma coisa, ou ilumine alguma faceta a mais. Confirma-se o dito quando Aichinger fala em “organismo global”, ou quando Thienemann define o oceano ou a floresta, por exemplo, como uma unidade biológica formada pela comunidade viva mais o espaço vital. Expressões como “totalidade viva”, “sistema”, “forma”, etc., de um lado mostram uma direção comum na qual se esboça a tentativa de definição que se aproxima da natureza da floresta. Do outro, a falta de um consenso em torno de um conceito aceito por todos, prova que nem tudo está tão claro e resolvido. Qualquer uma das formulações contem muito de verdadeiro, deixando, porém, margem a questionamentos.

Parece que o conceito de organismo, combinado com o de sistema, tem tudo para oferecer uma compreensão útil, quando se analisam as marcas que as florestas deixaram nas culturas que nelas se desenvolveram. Na verdade, contemplam todos os elementos que de alguma forma tiveram papel importante na configuração cultural. Começa pela matéria prima: madeira, frutas, fibras, insetos, indispensáveis para a subsistência biológica. Passa pelos animais, pássaros, insetos, microbiologia, o clima, enfim, todo o ambiente natural característico que abrigou o homem e suas culturas. Em poucas palavras, todos esses, e certamente muitos outros, formam para o homem o espaço das suas vivências, o palco sobre o qual de desenrolou e ainda se desenrola a sua história, o entorno visível, material, concreto, invisível e imaginário, que marca  o cotidiano dos povos das florestas e perpassa toda a sua maneira de ser e agir. E para concluir esse esforço para formular um conceito aceitável do que seja uma floresta, registramos a opinião de mais três estudiosos do assunto. É de Rosegger a afirmação de que somente o solitário encontra a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e só ficam árvores. Para Welh a floresta é vida intensa. Mesmo durante a noite e sob a neve, continua acontecendo a vida nas suas milhares de formas e Riehl observa que mesmo quando já não necessitamos da madeira seca, tanto mais o homem sentirá falta da madeira verde, com a sua seiva e sua vida.

Como se pode ver, as florestas oferecem o ambiente natural que talvez reúna, numa síntese praticamente todos os elementos que, de alguma forma, acompanharam o homem na sua trajetória histórica e moldaram o perfil das suas culturas. Em meio ao grande cinturão de florestas subárticas que cobriram e cobrem ainda vastas áreas do hemisfério norte, tanto da Ásia, como da Europa, como da América do Norte, as florestas temperadas e as possantes florestas tropicais, gestaram-se dezenas de milhares de culturas, entre elas das mais importantes e mais decisivas, na moldagem histórica do mundo. Nas florestas os ciclos anuais e mensais adquirem significa todo especial. Nelas fervilha a vida  numa abundância, numa espantosa profusão e numa enorme variedade de formas. Nela brotam milhões de fontes, são percorridas por córregos, arroios rios caudalosos. No seu interior escondem-se lagos misteriosos. Em suas planícies, planaltos e montanhas, a vegetação rasteira, os arbustos e os gigantes da floresta exibem toda a sua exuberância, oferecem seus frutos e essências e convidam o homem a viver à sua sombra e ao seu abrigo, a fantástica história da sua existência. A prodigalidade da floresta lhe garante o alimento, a matéria prima para construir os abrigos, a segurança contra os inimigos naturais e contra os próprios homens. Entre os povos das florestas, revela-se com nitidez, talvez maior do que em outras circunstâncias, o convívio simbiótico, a relação existencial do homem com seu hábitat. As fontes tornam-se sagradas, nos lagos moram espíritos e monstros, fadas, duendes e deuses povoam a florestas e as grandes árvores transformam-se em símbolos. Os ciclos que regem a dinâmica do multicolorido e multifacetado mundo animal e vegetal terminam por traçar a trajetória do homem que nelas vive a sua história.