Identidade e entorno geográfico
“Toda a cultura é síntese”, escreveu Alexandro Serrano Caldera. Por analogia, é lícito afirmar que toda “identidade é síntese” pois, os elementos que entram na composição da síntese cultural são os mesmos que definem o perfil da identidade étnica. Desta forma, cultura e identidade são os dois lados da mesma realidade. A cultura vem a ser o cenário sobre o qual, no qual e a partir do qual, se esboçam os traços que definem as identidades individuais e coletivas. Evidentemente essa afirmação implica num universo de desdobramentos que assumem características próprias e peculiares em cada caso particular. Uma observação superficial dificilmente perceberá afinidades ou parentescos mais significativos, por ex., entre a cultura dos patagônios da Argentina e os tiroleses da Áustria; entre os esquimós do Alasca e os pigmeus de Angola; entre os escoceses e os nativos da Austrália. Há, porém, evidências inegáveis que apontam para uma unidade radical da espécie humana. O homem é uma espécie zoológica que exibe todas as características de natureza biológica inerentes a esse conceito. Existiu e existe uma única espécie como prova tanto a paleontologia humana, quanto os critérios usuais de classificação zoológica das raças humanas historicamente conhecidas, quanto o mapeamento do genoma humano. Uma identidade a nível taxonômico e a nível biogenético une, portanto, todas as raças humanas.
A constatação que se acaba de fazer leva a uma conclusão importante quando se pretende estabelecer a extensão e os limites na formação da identidade étnica e cultural. O homem como espécie biológica insere-se ontologicamente no mundo natural e isto de várias formas. Em primeiro lugar, o corpo humano é constituído pelos mesmos elementos químicos que entram na formação da natureza mineral em todos os seus níveis. Em segundo lugar os mesmos processos e as mesmas leis químico-fisiológicas básicas que mantém em funcionamento qualquer ser vivo, garantem as funções vitais do organismo humano. Em terceiro lugar, como qualquer outro ser vivo o homem vive numa relação existencial com o meio geográfico que o abriga. O conjunto das atividades fisiológicas necessárias à vida buscam em a natureza a reposição das matérias primas processadas pelas atividades vitais. Da mesma forma a sobrevivência da espécie humana depende das condições climáticas e das matérias primas e dos recursos naturais que lhe garantem abrigo e proteção contra as intempéries e as ameaças oriundas da parte de inimigos humanos e animais predadores. Essa realidade põe-nos frente ao primeiro dos grandes conjuntos de componentes que determinam a gênese de uma identidade étnica e cultural.
A relação primária com o meio geográfico pelo fato de o homem emergir dele e nele sobreviver, como uma espécie taxonômica igual a qualquer outro mamífero, não pode ser considerado como ponto de partida da identidade étnica e cultural. Este ponto de partida deve ser procurado num outro momento e num outro nível. A identidade étnico-cultural primigênia começa a se esboçar no momento em que entrou em cena o primeiro ser humano em cujo cérebro faiscava a centelha da “inteligência reflexa”. Pouca diferença faz se o fato ocorreu há milhares ou milhões de anos, se foi na África, na Ásia ou em outro lugar qualquer do planeta terra. Pouco importa também, se aquele ser exibia uma fisionomia mais ou menos teromorfa ou antropomorfa. As regras, as leis e as dinâmicas que até hoje regem a construção da identidade começaram a tomar forma, a partir do momento em que despontou no cenário desta terra o homem que, com olhar curioso e inquiridor embrenhava-se nas florestas, cruzava estepes, adentrava os desertos, escalava montanhas, percorria as planícies e se banhava nos rios. Observando, experimentando, comparando, distinguindo, refletindo, foi aprendendo a identificar e a selecionar o que a natureza lhe oferecia em alimentos, em vestuário, abrigo e proteção. Sem demora as observações e as reflexões levaram esses humanos que, ainda hoje, rotulamos erroneamente de “primitivos”, a equipar as mãos com artefatos e instrumentos que tornavam o acesso e o manuseio dos alimentos mentos trabalhoso, mais rendosa caça, mais segura a defesa contra os animais ferozes e mais eficiente a proteção contra as intempéries.
E assim, estavam postas as premissas para começar, lentamente, numa dinâmica auto alimentada, num ritmo cada vez mais acelerado, a simbiose entre o homem e suas florestas, rios e montanhas, entre o homem e as estepes, os desertos, os gelos polares, os trópicos e os climas temperados. Ao mesmo tempo em que foi aperfeiçoando e diversificando as tecnologias de fabricação de ferramentas para assegurar a sua sobrevivência física, cresceu o interesse pela compreensão dos fenômenos, das incógnitas e mistérios com que deparava no seu cotidiano. O nascer, o viver e morrer dos animais e dos homens, os ciclos da natureza, a alternância das estações do ano, o curso diário do sol, as fases da lua, o germinar, o crescer, o florescer, o amadurecer dos frutos das plantas, tudo desafiava a curiosidade primigênia. E, na procura de respostas tomou forma todo um corpo de crenças, mitologias e simbologias que terminaram por formar uma cosmovisão peculiar para cada situação concreta.
Levado pelo instinto de sobrevivência, o homem foi buscar no seu entorno geográfico os alimentos de que necessitava. E, desde logo, o próprio ato de alimentar-se, vital para a sobrevivência, ultrapassaria o ato elementar instintivamente compulsório, para fazer-se revestir de procedimentos de natureza cultural, como hábitos, costumes, etiquetas, proibições ou tabus. O ato de alimentar-se foi assumindo entre todos os povos as características de um ritual. Mais. Os próprios alimentos passaram a fazer parte integrante das respectivas culturas, ou tratados como algo sagrado, dotado de poderes mágicos, milagrosos, ou então proibidos como maléficos, impuros ou simplesmente nocivos à saúde.
O convívio do homem com a natureza ensinou-lhe caminhos e formas de como melhor consolidar uma parceria com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história.
E, neste esforço, três tipos de desafios estimularam a criatividade do homem. Em primeiro lugar, encontrar na natureza os alimentos, abrigos e defesas para garantir a sobrevivência física. Em segundo lugar desenvolver tecnologias cada vez mais eficientes para facilitar a obtenção de alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. Em terceiro lugar, penetrar os mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo e desvendar as incógnitas da própria existência.
A relação imediata, íntima e diuturna com a natureza despertou no homem a clara percepção de fazer parte integrante dela. Além de dela depender para a vida e a morte, a sua vida desenrola-se na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E, nesse conviver simbiótico, a humanidade foi construindo suas culturas, suas identidades, suas histórias, seus imaginários, suas simbologias, suas mitologias, suas crenças, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim suas cosmovisões. Tudo que rodeava os homens, por assim dizer, animava-se, personalizava-se de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. As realidades e fenômenos naturais assumia vida e importância pelo que representavam no cotidiano e pelo que sugeriam ao imaginário. Aconteceu dessa maneira, um espelhar-se recíproco entre o homem e os fatos, fenômenos e realidades do entorno geográfico em que vivia e em meio a esse processo de interação, as culturas foram desenhando seus perfis, as identidades individuais e coletivas definindo suas características e a História traçando seu rumo
Dispensam-se Teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a História, a fim de nos convencermos do acerto da constatação com que concluímos a postagem anterior. Entre os povos agricultores, o sol e a lua, imprimindo com seus ciclos regulares a cadência da natureza, tornaram-se referência da própria dinâmica da história. Em torno do nascer do sol, da alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o homem foi elaborando e construindo todo um universo simbólico, todo um universo de costumes, de hábitos, de valores, de crenças, cultos e rituais. O sol definia os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comandava a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento, o florescimento, a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio a esse perpétuo fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer, fenômenos pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos, climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade dos povos e culturas. A primavera veio a simbolizar o germinar da vida; o verão o vigor e plenitude adulta; o outono a colheita dos frutos, o inverno o declínio e, finalmente, a morte para, em seguida germinar nova vida e recomeçar o interminável ir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e as fases da vida confundem-se simbolicamente numa única dinâmica. E neste sentido que se fala em primavera da vida ou a idade é contada em primaveras. Pela sua importância, o sol será cultuado como divindade e a lua como deusa.
No mesmo sentido vai toda uma compreensão de outras realidades naturais. Apenas alguns exemplos mais. A água indispensável à vida figura como objeto de veneração e não poucas culturas. Água e vida chegam ser sinônimos. As fontes que brotam das entranhas da terra, vem revestidas de propriedades especiais, inclusive mágicas, para curar doenças, rejuvenescer ou regenerar. Por exemplo, banhar-se no primeiro dia do ano numa fonte promete vida longa e saudável. A água entra como elemento simbólico no batismo, na água benta e muitas outras ocasiões.
Pelo mistério natural que costuma envolver montanhas, vulcões, lagos, mares, florestas, desertos, oceanos, etc., eles terminaram pro personificar figuras mitológicas ou representar lugares sagrados, que passaram para o imaginário dos povos na foram de crenças, mitos, tabus e outros significados mais. Os deuses e deusas do universo mitológico grego no monte Olimpo, entregavam-se às suas intrigas e pouco se importavam com o que acontecia no cotidiano dos mortais. Uma atitude olímpica tornou-se sinônimo de postura sobranceira, distante, alienada e desprezadora da realidade, acima do bem e do mal. O vulcão Fuji simboliza a própria história do povo japonês. Espíritos que não toleram a presença do homem povoam lagos como o de Lhanguihe no sul do Chile, fazendo com que as proximidades permanecessem despovoadas até a chegada dos imigrantes alemães em meados do século XIX.
Poderíamos continuar enumerando ao indefinido os vínculos e as relações das culturas e identidades como entorno físico-ambiental. Não é objetivo aqui pois, esta é apenas uma das condicionantes da identidade étnica e cultural. Outros elementos de importância decisiva não podem ser esquecidos.
Não há a mínima possibilidade de formar uma ideia, nem mesmo superficial, do perfil dos primeiros grupos humanos. As pegadas deixadas por eles apagaram-se a tal ponto, que até nós chegaram apenas alguns vestígios da sua fisionomia física e praticamente nada da sua identidade cultural. A curiosidade, portanto, para saber como eram esses humanos quanto aos seus traços físicos e, principalmente, quanto à sua identidade cultural, não ultrapassam o nível das hipóteses, das teorias e especulações, possíveis com os dados objetivos precários de que dispomos. Uma coisa, porém, é certa. A matriz original de todas as culturas e identidades étnicas foi apenas, pelo que se pode deduzir, o ponto de partida de uma dinâmica que acelerou o ritmo e multiplicou as formas, na medida em que a história avançava. O modelo gráfico do globo terrestre utilizado por Teilhard de Chardin para visualizar a evolução da espécie humana, torna mais fácil a compreensão da gênese e multiplicação das formas étnico-culturais. Os meridianos simbolizando as diversas formas culturais partem do mesmo ponto no “polo Sul”. Abrem-se, multiplicam-se e diversificam-se na medida em que se aproximam do equador. Do equador em direção ao “polo Norte” seguem uma dinâmica inversa. Aproximam-se, fundem-se e tendem a terminar num ponto só no “polo”. Do “alfa”, do ponto de partida tanto geográfico como filético, em algum lugar da África, segundo Teilhard, a humanidade começou a sua trajetória de expansão e ocupação da terra.
Os dados paleoantropológicos e culturais de que dispomos de momento não são suficientes ao ponto de permitir uma reconstituição, passo a passo, da expansão da espécie humana, desde o seu foco de irradiação original. Os indícios apontam para uma ocupação, em ondas sucessivas, de toda a África com uma concentração maior na orla do Mediterrâneo. Seguiu o povoamento, também na forma de vagas sucessivas do oeste para o leste, tomando de assalto toda a Euro-Ásia. Teilhard de Chardin observou três “pulsações” sucessivas, tendo como ponto de partida na pré-história, passando pela proto-história para, finalmente, entrar nos tempos históricos propriamente ditos. A primeira dessas pulsações ou ondas alastrou-se do Sul para o norte pela costa do Pacífico até os contrafortes da Mongólia. Pouca coisa se sabe sobre o nível cultural dessa humanidade primitiva. Sabe-se, entretanto, que o extremo norte desse avanço, em Chukutien, o Sinântropo com domínio sobre o fogo e técnicas de lascamento de pedras, encontrava-se relativamente bem organizado em grupos sociais e, por isso mesmo, dotado de uma considerável força de penetração em novos territórios. A segunda pulsação partiu do norte dos Alpes e não parou de avançar para o leste, até encontrar a costa do Pacífico. Seus vestígios bem caracterizados encontram-se mais visíveis no vale fértil do rio Amarelo na China. Essas vagas humanas tem como protagonistas o homem de Aurignac do Paleolítico Superior. Além do fogo e das técnicas rudimentares de lascamento de pedra, já eram cultores da arte. Sobrepõe-se numa sequência brusca aos depósitos do paleolítico antigo e médio e povoou os espaços que as populações anteriores, pouco numerosas, ainda não tinham ocupado.
A terceira onda começou na entrada do neolítico, com a predominância absoluta do “Homo sapiens” e a saída de cena definitiva de todas as outras raças humanas mais arcaicas. Sempre conforme Teilhard de Chardin, duas grandes áreas geográficas serviram de cenário para o novo estágio civilizatório que teve seu começo com a agricultura e a domesticação de animais. Estas duas formas de subsistência, superando de vez a necessidade constante de os coletores e caçadores se deslocarem, sem parar, por vastos territórios, fazendo com que os agrupamentos humanos não passassem do nível de bandos e hordas nômades. A nova situação trouxe consigo o sedentarismo, pelo menos relativo. Em seu lugar multiplicaram-se coletividades mais numerosas e mais bem organizadas. O fenômeno evoluiu em duas grandes áreas geográficas. A primeira, na África do norte mediterrânea e a outra na Euro-Ásia central e norte, desde a Europa Central até a Ásia Central e do Norte.
A essa altura a humanidade encontrava-se no limiar da Pré-História para a História, por volta de 15000 a 20000 anos passados. Demorei-me propositadamente um pouco mais na caracterização da fase que costumamos chamar de Pré-História, para mostrar como a identidade étnica e cultural é uma realidade em permanente construção e em constante evolução, motivada pelas diversas contingências em que a humanidade como um todo e seus grupos individualmente considerados, são obrigados a passar. E para entender melhor essa dinâmica destacamos alguns fatores mais determinantes que atuam na história.
O mais importante foi, sem dúvida, o fato de o homem distinguir-se e distanciar-se de todas as outras espécies de animais, também dos antropoides, pela “Inteligência Reflexa”. Sob o aspecto físico, anatômico, fisiológico, biogenético e instintivo, o homem tem suas raízes fincadas ontologicamente na Biosfera. Mas distancia-se dela e a ultrapassa de vez pela Inteligência Reflexa, ou pela capacidade de Reflexão. Esta eleva a espécie humana a uma esfera inteiramente nova: a Noosfera como a chamou Teilhard. O potencial dessa novidade é de tal ordem que sobre a Litosfera, a Biosfera e a Hidrosfera, envoltas na atmosfera, alastra-se pela terra, em progressão geométrica, a urdidura da trama da Noosfera. Se a espécie humana tivesse sido apenas mais uma espécie de antropoide, de há muito as leis implacáveis da evolução a teriam varrido do cenário da vida, ou então, reduzida a uma espécie condenada a sobreviver sem grandes perspectivas. Suas mãos não especializadas servem para tudo e, por isso mesmo, não servem para nada de específico. Seus dentes caninos servem para pouca coisa mais do que completar a arcada dentária. Seus sentidos pouco apurados não garantem os alertas e alarmes indispensáveis num entorno no qual, atrás de cada árvore, cada rocha, cada arbusto ou na correnteza dos rios e fundo dos lagos, espreitam ameaças de toda a ordem.