[ Reflexões ]

A lógica que preside o esforço do homem no entender o que ocorre em seu derredor e de alguma forma prever e escolher caminhos e assim consolidar uma parceria com ele, nada mais é do que a via pela qual se consolida o conhecimento. Conhecimento no sentido rigoroso conceito, portanto, só é possível quando consegue formular uma explicação compreensiva, possível somente com o concurso de todas as formas de aproximação possíveis, com o potencial dos instrumentos teóricos e metodológicos disponíveis. 

Colocada a questão nessa perspectiva, quanto mais se recua na história, tanto menos “científico” e tanto menos “racional” se mostra o conhecimento. Isso não significa, porém, que sua eficácia tenha sido menos importante e menos determinante para a função do que lhe cabia na vida individual e coletiva. Aliás a importância do conhecimento que com certo desprezo, com ar de superioridade e até com certa complacência, não poucos rotulam de “pré-científico”, é muito maior do que se quer admitir. Basta percorrer qualquer um dos corpos do conhecimento consolidados durante milênios pelas culturas do oriente, com destaque para a chinesa, japonesa, da indiana, coreana e outras mais. Mesmo Ernst Bloch, um dos mais respeitados pensadores ocidentais do século XX, despertou para a ideia-motriz que impulsionou e norteou todo o seu pensamento, nos romances de aventura de Karl May, descrevendo os índios da América do Norte. Aquela paisagem intocada de pradarias sem fim, povoadas por índios caçando búfalos em total liberdade, forneceu-lhe o conceito-chave de todo o seu pensamento; “Heimat”, que poderíamos traduzir por “querência”. Sua concretização só é possível onde reina a absoluta liberdade e harmonia. Onde há liberdade existem possibilidades onde há possibilidade existe esperança, onde há esperança, a harmonia entre todas as coisas faz com que o homem se sinta “em casa”, numa querência, numa Heimat”. E deixando de lado o racionalismo científico, o rigor da lógica aristotélica-tomista e a doutrina teológica do Deus Criador, Bloch colocou “a matéria animada” orientada para um objetivo final por ele denominado de “Ideal do Bem”. Chegado ao término do processo evolutivo “o Bem como tal” estará realizado. Paul Heinz Koesters resumiu assim o pensamento de Bloch:

No momento em que a matéria tiver concluído o processo da evolução ao nível em que se encontra de momento, o “bem como tal” estará concretizado. O cosmos, o nosso mundo, os animais e os homens, todos feitos de matéria, ao final do processo estarão reconciliados. Reinará então a situação para a qual tudo – as pedras como o homem, as estrelas como as moscas na parede – convergem (sehnen sich) consciente ou inconscientemente: a Harmonia. Nesse momento finalmente o cosmos inteiro tornou-se “Heimat – Querência”. (Kösters, 1981, p. 300).

Essa abertura para uma cosmovisão que percebe a unidade nas partes, o todo na diversidade, a verdade na multiplicidade das doutrinas, bate de frente na contramão com a pós-modernidade. Para ela o que interessa são as partes. Nos laboratórios dos pesquisadores, nos gabinetes dos analistas da sociedade e da economia, nas redações dos meios de comunicação, nos discursos e manifestações dos políticos e burocratas, nas preocupações dos governantes, não há lugar para o Todo e a Verdade. O que decide são os fatos do momento, as ocorrências da hora, a oportunidade senão o puro oportunismo. Não há nenhuma, ou no máximo pouca preocupação em buscar as raízes históricas, o significado mais profundo dos acontecimentos. O que importa é o impacto do momento, o barulho, o estardalhaço, a dissonância. A preocupação por paradigmas, balizas norteadoras e princípios que presidem as ações dos indivíduos e das coletividades, senão ignorados acham-se em cotação baixa. 

O alerta contra essa opção generalizada para o comportamento das massas, vem sendo dado exatamente por representantes de áreas científicas nas quais os métodos e instrumentos de investigação avançaram mais em especialização. Por enquanto trata-se de vozes isoladas. Mas o que autoriza a esperança da reversão do quadro descrito acima, é a autoridade e o peso desses cientistas. Um deles é nada menos do que Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do código genético do homem. O próprio título da sua obra “A Linguagem de Deus”, sinaliza para o rompimento dos paradigmas e dogmas intocáveis do racionalismo científico. A certa altura das suas reflexões o Dr. Collins nos deixa um parágrafo que convida a pensar, a refletir e meditar.

Ironicamente, outro motivo importante para a visibilidade da posição do Bio-Logos é justamente a harmonia que essa cria entre as facções beligerantes. Como sociedade, não parecemos atraídos pela harmonia, mas pelo conflito. Em parte, a culpa é dos meios de comunicação; entretanto eles apenas atendem aos desejos do público. Por meio dos telejornais, você provavelmente fica sabendo de colisões envolvendo inúmeros carros, furacões destrutivos, crimes violentos, divórcios conturbados de celebridades e debates ásperos entre professores sobre ensinar a teoria da evolução. Provavelmente você não ouviu nada a respeito de reuniões de grupos de vizinhança de credos diferentes para tentar resolver os problemas da comunidade, nem sobre a transformação de Anthony Flew, que por toda vida foi ateu e passou a acreditar em Deus, e com certeza nada sobre a evolução teísta ou sobre o arco íris duplo desta tarde sobre a cidade. Adoramos conflito e discórdia, e quanto mais cruel, melhor.  No meio acadêmico, música e arte produzidos com seriedade pelos seus membros parecem festejar sua dificuldade em serem ouvidas e apreciadas. A harmonia é chata.  (Collins, p. 209-210)

E os noticiários confirmam cada vez mais a preocupação do Dr. Collins. Enquanto redijo essas linhas uma fatia predominante dos noticiários de todos os meios de comunicação do País, volta-se para o julgamento do casal Nardoni, acusado de ter asfixiado e ter jogado a filha do sexto andar de um prédio em São Paulo. A movimentação da policia, o translado dos acusados da prisão para o recinto do julgamento, o aparato do tribunal, o frenesi das rádios e canais de  televisão, as manchetes de primeira página dos jornais, o acotovelar-se  dos curiosos, as opiniões emocionadas e emocionais, beirando à histeria, dos entrevistados nas ruas, as fisionomias de apocalipse de alguns apresentadores de telejornais, envolve o caso num cenário no qual um  misto de sadismo, masoquismo e prazer mórbido, comandam a cacofonia. Na mesma direção e no mesmo nível foi anunciado um acidente provocado, pelo que se presume, por duas camionetas praticando racha numa das rodovias mais movimentadas do Rio Grande do Sul. Uma delas perdeu o controle e o radialista escolhendo os termos foi descrevendo: O motorista perdeu o controle do veículo, atravessou o canteiro central da  rodovia, derrubou todas as placas de sinalização que encontrou pela frente e despedaçou um carro que vinha na direção contrária, matando as três pessoas que se encontravam nele, a si próprio e seu acompanhante. Na sequência das notícias do começo do dia, constam ainda mortes por assassinato, assaltos, etc., etc. Nenhuma notícia que fosse capaz de munir as pessoas com um pensamento positivo para enfrentar a rotina do novo dia. E ai daquele que se atreve a lembrar aos comunicadores que já estaria na hora de baixar um pouco o volume das trombetas que saciam a curiosidade do povo avesso à harmonia, ao sossego e ao lado humano da sociedade. A resposta vem pronta e cortante: É o público que assim o exige!” Não há como não concordar com o Dr. Collins: “A harmonia é chata”. 

Outra autoridade reconhecida como um dos biólogos mais respeitados mundialmente, é Edward Wilson. Em 1978 ele publicou o livro “On Human Nature (Cambridge Harvard University Press, 1978). Nele faz uma observação que o Dr. Collins classificou como “palavra forte”. Wilson citado por Collins escreveu naquela obra:

A arma decisiva apreciada pelo naturalismo científico virá com sua capacidade de explicar a religião tradicional, sua competição entre líderes, como um fenômeno totalmente material. Não é provável que a Teologia sobreviva como uma disciplina intelectual independente. 

Em 2006 Edward Wilson publicou um novo livro com o título: “The Creation – an appeal to save live on Earth”. Salvo melhor juízo, essa obra revela uma radical mudança de posição do autor. O livro em forma de diálogo dirigido a um pastor evangélico, convida-o para um esforço comum entre a ciência e a teologia, a fim de salvar a vida sobre a terra. Não se notam mais vestígios das “palavras fortes” de trinta anos passados. Pelo contrário. O ilustre professor e cientista de Harvard faz um convite, melhor talvez, um apelo a um pastor fundamentalista, para de mãos dadas, Ciência, Religião e Teologia, resolverem as intrincadas questões que envolvem o binômio Homem-Natureza. Rendeu-se, ao que parece, à evidência de que as abordagens unilaterais não bastam para entender e, consequentemente, para enfrentar com sucesso as grandes questões que dizem respeito à relação do homem com a natureza. Eis o resumo de sua posição e o apelo ao esforço mútuo:

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas tem um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é de que somos ambos pessoas éticas, patrióticas altruístas, mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós dois serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos, com a mesma intensidade, santificar a vida humana, compartilharmos o amor pela Criação. (Wilson, Edward, 2007, p. 188)

A mesma convicção de que está na hora de deixar de lado as reivindicações dos donos da verdade, tanto do lado das Ciências do Espírito quanto das Ciências Naturais, é partilhada por muitos outros cientistas. Fundaram até uma associação cujos associados creem em Deus: a “American Scientific Affiliation”. 

Os gigantescos avanços dos conhecimentos nos campos da química, física, astronomia, biogenética e outros, tornados possíveis por um complexo e sofisticado arsenal de tecnologias de investigação, vem multiplicando as manifestações de reconhecidas autoridades científicas, sinalizando para uma convergência no entendimento das questões de fundo. Pondo de lado uma linguagem feita de conceitos completamente fora do alcance da compreensão dos não especialistas, nota-se um sincero esforço para tornar as conquistas científicas compreensíveis para o comum dos mortais, fora dos laboratórios e longe dos congressos de especialistas. Para o grande público conceitos como Big Bang, fóton, elétron, quark, quanta, etc., etc., localizam-se fora do âmbito da compreensão. Para os cientistas o desvendar progressivo das incógnitas da natureza, abre caminho para entender o comportamento dos fenômenos naturais, a inter-relação entre eles e o papel que lhes cabe nos níveis superiores de complexidade nos quais se inserem. Passo por passo a própria Ciência e representantes paradigmáticos do seu meio, formulam alternativas de interpretação nada convencionais, melhor talvez, impensáveis há não muitas décadas atrás. A convicção que se percebe nas entrelinhas do livro do Dr. Francis Collins, permite mais um testemunho seu: 

Apesar de eu, no fim das contas, passar da ciência física à biologia, essa experiência de originar equações universais tão simples e belas, que descrevem a realidade do mundo natural, deixou em mim uma impressão profunda, em especial porque o resultado definitivo tinha um grande apelo estético. Isso levantou a primeira de várias perguntas filosóficas acerca da natureza do universo físico. Por que a matéria se comporta dessa maneira? Citando a frase de Eugen Wigner, qual seria a explicação para a “inexplicável eficiência da matemática?” Não seria nada além de um feliz acidente ou referência a alguma intuição profunda na natureza e como outros ter encontrado o divino? (Collins,  2007, p.)

Collins cita ainda “Uma breve História do Tempo” de Stephen Hawking, e como observa, “em geral nada dado a contemplações metafísicas”. 

No entanto, se de fato descobrirmos uma teoria completa, todos acabarão compreendendo seus princípios amplos, não apenas alguns cientistas. Então poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns, participar da discussão sobre a questão de o    por-que de nós e o universo existirmos. Se descobrirmos a respostas para isso, será o triunfo supremo da razão humana – pois, então, conheceremos a mente de Deus. (Hawking, 2015, p. 229)

Interrogações, interrogações e mais interrogações, perguntas e mais perguntas. E destinam-se a responder o que? Resumindo, externam a ânsia do homem em saber como surgiu o universo cósmico e nele o mundo que nos rodeia; como surgiu o homem, o que é o homem, qual a sua razão de ser e qual o seu destino; qual é o lugar ou não lugar de Deus nesse cenário de tantas incógnitas. Encontrar enfim a Verdade, o Todo na multiplicidade das doutrinas, eis o desafio maior.

This entry was posted on quinta-feira, 10 de novembro de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.