REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 94

A Natureza como inspiradora

E para concluir as reflexões inspiradas nos três primeiros capítulos da Encíclica Verde, quero demorar-me mais um pouco num aspecto da Natureza, que para muitos passa despercebido. Faz parte do quotidiano de qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e de percepção o que há de arte e de belo nas milhões de modalidades em que ela pode ser apreciada. Mais acima já chamei a atenção como os poetas, os músicos, os artistas plásticos e outros mais foram buscar a inspiração para se expressar nas suas peças artísticas, nas florestas, nos campos naturais, nas flores, nas montanhas, nos rios, nos mares e oceanos, nos fenômenos grandiosos e/ou assustadores, nos animais e plantas e em incontáveis outras  realidades  oferecidas pela natureza. Refiro-me ao potencial de obras de arte à espera da revelação pelo gênio dos artistas plásticos que, além da beleza e da perfeição dos traços em si, vem carregadas de simbolismos, significados históricos, cosmovisões, o imaginário despertado pelo transitório e, principalmente, pelo perene que perpassa a história da humanidade. Alguns exemplos para ilustrar. 

Os pedreiros que extraíram os blocos de mármore da montanha encomendados por Miguel Ângelo, provavelmente não tinham a menor ideia de que o artista esculpiria a famosa “Pietá”, o “Moisés” e o “Davi”. Vivi a experiência ímpar de ficar recolhido em silêncio em frente à “Pietá” protegida com vidro blindado no seu recanto no Vaticano. A música suave de fundo foi um estímulo a mais para despertar todo o sentido histórico e todo o simbolismo humano e religioso incarnado naquela obra de arte esculpida num bloco de rocha nobre oferecido pela mãe terra. Melhor, buscada no quintal da “nossa casa”. Os traços do rosto marcados pela dor, mas não pelo desespero, da mãe da cristandade, com o filho morto nos braços, o corpo massacrado e o rosto maltratado e, contudo, sereno depois de cumprida a missão da Redenção. Recolhido no canto do recinto, com esse cenário na minha frente e a música inspiradora de fundo, deixei correr livre a imaginação. Miguel Angelo foi capaz de desvelar de um bloco de mármore bruto, o cenário que marca o epicentro dos séculos e mais séculos da gênese da civilização judaico-cristã. Não menos significativo e sugestivo vem a ser a escultura de Moisés também revelada num monobloco de mármore pelo mesmo artista. A figura de Moisés impressiona por retratar o personagem que, segurando as tábuas do decálogo, simboliza a revelação do norte ético e moral que deveria orientar a conduta de qualquer ser humano que mereça este nome. Diz a tradição que, concluída a obra e observando a sua perfeição, o artista teria dado de leve uma martelada no joelho do personagem de sua obra e feita a provocação: “Parla Moises – Fala Moisés”. Não menos emblemático como simbolismo histórico, vem a ser o “Davi” do mesmo artista esculpido também num bloco de mármore. 

A arte e o belo à espera de serem desvelados pelos artistas podem ser encontrados nas realidades mais singelas como nas mais vistosas e mais impactantes que compõem os múltiplos e mais inusitados cenários da “nossa mãe e pátria”. Lembro mais algumas outras obras clássicas, além do mármore outros tipos de rochas tendo como matéria prima o granito. O artista português Noel Monteiro esculpiu num bloco de granito amarelo uma estátua de Nossa Senhora de Fátima de 3,50 m. de altura, uma de Nossa Senhora da Paz de 4,20 m. e uma terceira de Nossa Senhora Auxiliadora de 5,0 m. O obelisco na praça de São Pedro no Vaticano de granito vermelho mede 40 metros de altura. Igualmente monoblocos de granito são as colunas que sustentam a cúpula da catedral de Porto Alegre. Impressionantes são os rostos dos presidentes fundadores e consolidadores dos Estados Unidos da América do Norte, Washington, Jefferson, Th. Roosevelt e A. Lincoln, esculpidos diretamente na rocha no alto do monte Rushmore na Dakota do Sul. Medem 18 m. de altura e 5,5 na maior largura do rosto. Entre os monumentos historicamente famosos e mundialmente admirados não poderíamos omitir as pirâmides do Egito e junto a elas a grande esfinge que, com um olhar enigmático contempla há milhares de anos, a misteriosa vastidão do grande deserto. O basalto foi utilizado pelos escultores como matéria prima para inúmeras obras de arte que na sua mudez pétrea incarnam e contam a história de personagens e eventos que falam do perene e do transitório da marcha da história da humanidade através dos séculos e milênios. Merecem destaque o faraó Tutancamon, a rainha Nefredete, o Leão da Babilônia e muitos outros. Emblemáticas são também as estátuas da Ilha da Páscoa. Os artistas anônimos que as esculpiram na rocha vulcânica há séculos deixaram a ilha e até hoje não temos vestígios seguros da sua identidade e do seu destino. As enormes cabeças com o restante do corpo enterrado no chão, pesando toneladas, enfileiradas nas encostas da ilha, contemplam o oceano que, lá longe, se confunde com o horizonte. Parecem acompanhar com o olhar enigmático e nostálgico os últimos habitantes da ilha que partiram para uma terra que, até o momento, os arqueólogos, os etnógrafos e os historiadores não conseguiram localizar. E não podemos deixar a ocasião de lembrar o Aleijadinho o artista plástico brasileiro que marca toda uma época na arte da escultura valendo-se da “pedra sabão” como matéria prima.

Chamo a atenção à riqueza artística que nos oferecem os monumentos tumulares que podem ser apreciados em qualquer cemitério de toda e qualquer procedência étnica e religiosa. A natureza característica de cada local costuma oferecer a matéria prima, isto é, o tipo de rocha que foi utilizada pelos artífices para moldar os símbolos, entalhar as datas e perpetuar em prosa ou verso os valores cultivados pelos que aí estão sepultados. Os túmulos revestidos com mármore, basalto, granito, arenito, ou outra pedra qualquer, com seus símbolos, inscrições e formatos alertam o observador atento e dotado de um mínimo de sensibilidade humana, para o perene e o transitório da existência humana, como já lembramos mais acima. Os “campos santos” como também são chamados, significam incomparavelmente mais do que outras formas de perpetuar a memória da caminhada da humanidade, para intuir e compreender na sua essência ontológica o significado da profundidade do conceito do “humano no homem” – “die Menschlichkeit”. 

E, para fechar a série de reflexões feitas até aqui, inspiradas nos três primeiros capítulos da “Encíclica Verde”, falta a referência aos simbolismos inspirados pela natureza nas suas manifestações intocadas pelo homem. Mais acima já nos referimos em várias ocasiões de alguma forma a esse potencial que a “nossa casa”, oferece à nossa capacidade de percepção e intuição. Em linhas muitos gerais falamos dos monumentos naturais merecedores de proteção como componentes significativos nas paisagens naturais. Nesse conceito enquadram-se cadeias de montanhas, montanhas isoladas, florestas, árvores de grande porte e/ou beleza, quedas de água, cataratas, lagos, rios, desertos, campos naturais, cânions, precipícios, a imensidão dos oceanos e inúmeras outras manifestações que, de alguma forma, compõem o cenário em que a espécie humana moldou a sua história. 

A gênese histórica das civilizações trai em muitos dos seus aspectos e, por vezes, na própria identificação que distingue umas das outras, os significados culturais emprestados a fatos e fenômenos naturais. As formações geológicas no entorno do Grand Canyon do Colorado assumem personalidade pela forma e a perspectiva em que foram vistas pelos estudiosos do parque. Encontramos nelas as personificações, o encontro de figuras históricas e personagens mitológicos que, por assim dizer, incarnam a índole e a alma de culturas e civilizações que evoluíram em ambientes e situações completamente diferentes e vão encontrar-se, como que numa síntese, naquele cenário milhares de quilômetros longe da sua origem. Destacamos aí o Templo de Schiva, as figuras de Brahma e Buda e o Templo de Confúcio, representantes emblemáticos das civilizações do Oriente remoto; o Templo de Zaratustra da mitologia persa; o Walhalla dos deuses germânicos e o Trono de Siegfried, personagem épico da canção alemã. No parque nacional Sequoia localizamos a Pirâmide Quéops representante da cultura egípcia, o Nariz de Homero, representando as civilizações consolidadas em torno do Mediterrâneo. Este é um exemplo emblemático de como tradições culturais histórica e geograficamente tão distantes umas das outras encontraram-se em situação tão inusitada como nas formações geológicas do parque do Grand Canyon e outros parques nacionais. A explicação para entender que um encontro nesses moldes fosse possível é preciso recorrer a lei que criou os parques americanos. O objetivo fundamental, além de proteger esses monumentos naturais e declará-los patrimônio nacional foi, colocar à disposição das pessoas comuns, como operários, pequenos empresários, funcionários públicos, alunos das escolas, colégios e universidades e seus professores e responsáveis, um ambiente que oferecesse condições para usufruir um lazer barato e tranquilo e um deliciar-se sadio em meio à natureza. À noite costumam-se programar-se sessões conduzidas por professores e especialistas também em férias, informando o público sobre a história, a formação geológica, a vegetação, os animais e a importância da preservação desses verdadeiros santuários naturais. Ao lazer do cotidiano esses ambientes assumem também o papel de autênticas universidades ao ar livre. Nesses encontros o povo comum vem a ser informado sobre a razão de ser dos nomes dados a montanhas, vales, árvores, fontes, grutas, cavernas, lagos, fontes quentes, e por aí vai. Ao lazer sadio alia-se um usufruir importante também da ampliação dos conhecimentos e, com isso, a elevação cultural dos veranistas. Os parques, portanto, como escolas e/ou universidades ao ar livre contribuem para ampliar os conhecimentos e o nível cultural dos seus frequentadores.

No parque nacional “Sequoia” encontra-se outro exemplo de como o imaginário cultural e a memória histórica pode ser perpetuada em realidades naturais características oferecidas pelo parque. A sequoias gigantes daquele parque incorporaram personalidades de figuras importantes da história do país. Em uma decisão histórica carregada de significados simbólicos os administradores do parque deram nomes aquelas árvores gigantescas, entre as quais, algumas contam com mais de cinco mil anos e, se nada de anormal lhes acontecer, continuarão ainda firmes por séculos e, quem sabe, por milênios. A maior e a mais possante delas foi contemplada com o nome do general “Sherman”; a segunda em tamanho é “o President” e, ao lado do “President”, um terceiro gigante contempla o cacique Cherochee “Chief Sequoia”; uma outra ainda imortaliza o general “Grant”. As árvores chamam a atenção aos frequentadores do parque sobre os generais responsáveis pela consolidação do Estado, o presidente e o cacique cherochee que, apesar dos desencontros e, quem sabe, exatamente pelos desencontros históricos, entraram de alguma forma, na síntese da identidade americana em formação. Na mesma floresta o visitante pode passar em revista, simbolizados nos seus gigantes, personagens determinantes da história do País: Washington, Lincoln, Mac Kinley, o general Lee, Theodor Roosevelt, Cleveland e outros. Para não ficar insistindo demais na lembrança de uma fase histórica desagradável que foi a guerra civil  e para poupar os parques do clima de disputas político partidárias, a preferência centrou-se em denominações históricas como “as Colunas de Hércules” ou metáforas sugeridas  pela peculiaridades dos diversos gigantes: a Chaminé, a Flecha Quebrada, o Gigante fulminado pelo Raio, Árvore Janela, Árvore Buraco da Fechadura, os Trigêmeos, o Nursery, o emblemático Casal Fiel, dois gigantes concrescidos  na base até três metros acima do chão, as Três Graças, o Solteirão, o Urso Gigante, a Árvore Estrebaria, os Soldados Sentinelas, a Árvore Telescópio. O parque de Yosemite, reúne talvez mais que qualquer outro os elementos que põem em ebulição o humano no homem e resultam numa harmoniosa  sinfonia colocando o observador num panorama que vai do Belo sutil das flores das ervas rasteiras, passando pelo Belo tranquilo dos arbustos e árvores da floresta e o rio Merced povoado de trutas brincando na água cristalina, rumorejando sobre os escolhos deixados pelo eterno lapidar das forças telúricas de milhares e milhões de anos, para terminar no Belo majestoso e arrebatador da moldura das montanhas de granito esculpidas no inconfundível  formato de “U” pela passagem das geleiras da era glacial. Permito-me reproduzir o estado de espírito do Pe. Rambo ao passar pelo portal de entrada do “do mais belo vale do mundo”, como anotou em seu diário. Depois de descrever a viagem de ônibus de São Francisco, depois de descrever os pomares do vale da Califórnia, a subida da Sierra Nevada, lembrar a epopeia da exploração do ouro naquela encosta em meados do século XIX, anotou:

Acontece que não viajei para a Sierra Nevada a procura de ouro, mas em busca do mais belo vale do mundo, o Vale de Yosemite. As montanhas aproximam-se cada vez mais uma das outras. O rio troveja com crescente força sobre os escombros das pedras, por entre florestas escuras, cada vez mais fechadas. De súbito, abre-se o portal de rochas, a floresta permite a visão livre e eu contemplo um cenário de fadas, como não existe outro igual. O Merced aqui reduzido a um arroio largo, rumoreja aos meus pés. As águas são tão cristalinas que permitem contar as pedras no fundo e observar a dança das trutas. Mais para longe, abre-se um prado coberto de capim verde, de canas com pontas reluzentes na cor do ouro e, no meio delas, milhares de flores brancas, vermelhas, amarelas e azuis. Mais adiante, segue a floresta formada por árvores majestosas, cedros, pinheiros, pinheiros Douglas. À direita, precipita-se uma cascata, a partir de um vale de mil metros e se desfaz em neblina. É a cascata véu da noiva. À esquerda sobe, mil metros de altura, um bloco de granito tingido de vermelho pelo sol da tarde. Chama-se “el Capitán”. É o rochedo sentinela do portal da entrada do vale das maravilhas, E, bem no fundo do vale, o cume de outro rochedo sobressai às montanhas. É o mais famoso de toda a Sierra Nevada: o “Half Dome”. E, acima de tudo estende-se o céu azul e, sobre ele deslizam suavemente os brancos veleiros de Deus. (Rambo, 2015, p. 255-256).

Numa outra passagem do diário escrito no parque de Yosemity, deixou outra reflexão que deixa o observador atento e sensível, perplexo e, ao mesmo tempo empolgado, parecendo flagrar-se num mundo em que as ambições e os valores, melhor, desvalores vendidos pela grande mídia, reduzem-se a pó. É de Einstein, seguramente um dos físicos mais importantes do século XX como continua sendo até hoje, a afirmação surpreendente: “Quero conhecer a mente de Deus, o resto é detalhe” ou então: “As ideias que iluminaram o meu caminho são a bondade, a beleza e a verdade”. Em outras palavras Rambo externa a mesma sensação, acomodado no Glacier Point um rochedo na extremidade do vale de Yosemite:

Com certeza devem existir poucos lugares na Terra, de onde se descortinam paisagens tão deslumbrantes. Para a direita, a vista alonga-se por sobre as serras intocadas até os cumes cobertos de neve das montanhas mais altas. Do lago Merced sai o rio do mesmo nome, precipitando-se em duas cascatas: o Nevada Fall, de 160 metros, e o Vernal Fall, com 97 metros. Em frente, no lado oposto, ergue-se o maior bloco de granito do mundo, o Half Dome, 2.760 metros acima do nível do mar e 1.500 a prumo sobre o chão do vale. Para a esquerda, desfruta-se de uma visão de todo o vale e, mais adiante, dos altiplanos de ambos os lados. Milhares de pinheiros Jeffrey, isolados, em grupos ou em florestas fechadas se parecem com um exército de soldados, aprestando-se para o assalto aos cumes das montanhas. Onde quer que haja uma saliência, uma fenda, um lugar para um pé, os arbustos se agarram: carvalhos anões, castanheiras anãs, azaleias anãs. Essas últimas vestem na primavera os gigantes das montanhas com o manto real de púrpura de suas cores esplendorosas. Aos meus pés o paredão de rochas precipita-se perpendicularmente por 976 metros. As fitas de azul negro das estradas, com os carros multicoloridos se movimentando nelas; a faixa azul clara do rio, entre a floresta escura e prados cor de ouro; as cidades de barracas, ao pé da grande cascata; as multiformes rochas na beirada; o Domo Fendido, os Arcos Reais, o Pináculo das Águias, a Torre de Observação, as Torres da Catedral, o Capitão Sentinela – tudo compõe um quadro que somente um foi capaz de conceber: Aquele que, no canto de Habacuc, “caminha sobre as montanhas e as faz tremer sob o passo marcial de suas eternidades”. 

Depois do almoço, fomos até o Sentinel Dome, uma cúpula de granito que se eleva em muito acima da floresta. Em cima do cume, cresce agarrado a uma fenda um pinheiro Jeffrey. O vento constante dobrou-o, horizontalmente, a cinco metros de altura, símbolo da vida vitoriosa sobre o rochedo morto. Tenho na minha frente, uma grande fotografia a cores, que comprei em Yosemite. Jamais apreciei uma imagem mais bela de uma árvore. A luz clara da tarde cintila sobre esse sublime cenário de montanhas. Mais uma vez ecoa o canto de vitória de Habacuc: “O Eterno caminha como um caçador sobre as montanhas; o sol e a lua escondem-se em suas moradas perante o faiscar da sua flecha e do brilho de fogo refletido na lâmina da sua espada. Sobre o altar-mor do mundo das montanhas, sobre os pináculos do mundo ondula, flutua e se embala o reflexo daquela luz eterna, mais antiga que todas as auroras e mais jovem que todos os poentes do sol”. (Rambo, 2.015, p. 159-260)


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 93

              

Os limites da inovação biológica a partir da pesquisa.
As reflexões que precederam tiveram como uma das intenções básicas insistir no fato de que a humanidade não apenas vive e subsiste na natureza, mas nela se encontra ontologicamente inserida como espécie biológica. Entretanto, ocupa uma posição peculiar por ser dotada de inteligência reflexa que lhe garante a capacidade observar a natureza que a cerca e perguntar como ela funciona, como se originou, porque ela é assim, para onde caminha e qual o lugar e o papel que cabe ao homem fazendo parte dela? A Encíclica resumiu em poucas linhas o poder e, ao mesmo tempo, o limite do seu exercício posto nas mãos do homem quando lhe foi confiado o “cultivo do jardim” no qual foi colocado pelo Criador. 

Na visão filosófica e teológica do ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um fator externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os animais só são legítimas ‘desde que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas’. (Laudato si, 130).

Com essa posição a Encíclica reafirma, de um lado, a peculiaridade do homem dentre todas a demais criaturas pela “razão e sua sabedoria”, sua “inteligência reflexa” conceito recorrente de que nos valemos nas reflexões acima quando está em jogo o relacionamento do homem com a natureza. Essa peculiaridade “não é um fator   externo”, que deve ser excluído, melhor, ignorado como limitador ao avanço científico e a aplicação dos seus resultados. É nessa perspectiva que se coloca a experimentação recorrendo a animais como “cobaias” para desenvolver novos medicamentos, transgênicos, modificações genéticas e todas demais experiências partindo dessa base. Não se trata somente de fazer novas descobertas e desenvolver nova técnicas se não forem legitimadas pela ética que, como em qualquer intervenção na natureza, deve ser a baliza que orienta as ações humanas. A Encíclica chama a atenção que “o poder humano tem limites e é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente de suas vidas”. (Laudato si, 130). Como se pode perceber encontramo-nos frente a um desafio de dimensões incomuns. Em princípio toda e qualquer atividade científica tem como motivação conhecer como funciona a natureza. Uma vez de posse desses conhecimentos permite-lhe desenvolver tecnologias para “cultivar o jardim” no qual passa a sua existência. O “cultivar” pressupõe ações que, pela sua natureza são de alguma forma invasivas. Em outros termos, interferem na natureza, desde um nível quase imperceptível até o limite da quebra do equilíbrio de inúmeros ecossistemas, comprometendo o equilíbrio biológico do planeta como um todo. Mas, essa história já foi de alguma forma objeto das nossas reflexões mais acima.

Ciência e saúde
Chegou o momento de nos ocuparmos com as tecnologias desenvolvidas para o tratamento dos mais diversos males que afetam a saúde das pessoas, desenvolvendo medicamentos cada vez mais diversificados e mais eficientes. Nessa área os últimos 150 anos foram decisivos para a melhora da saúde do planeta, dobrando em não poucos países a expetativa de vida. Tomando por base o recenseamento do Brasil de 1940, considerado o primeiro  confiável, a expectativa de vida média do brasileiro oscilava em torno dos 42 anos e no de 2000 subiu para 70,4 e em 2015 para 75,5. A partir de 1850, ano de referência desses dados a pesquisa e a tecnologia correspondente deu um salto, uma revolução para melhor, de dimensões difíceis de avaliar.

O primeiro grande nome de cientista nessa verdadeira guerra contra os males responsáveis pela morte de milhões de pessoas, a consequente baixa média da expectativa de vida, foi Louis Pasteur (1822-1895). Pasteur já era um nome de destaque na pesquisa científica antes de centrar sua atenção na área médica e da saúde em 1865. Em 1861 recebera o prêmio da Academia de Ciências por ter desenvolvido técnicas para controlar o desenvolvimento de micro-organismos em alimentos e bebidas, método hoje conhecido como Pasteurização. Depois dessa memorável conquista da ciência e criados os meios de a por em prática, Pasteur foi requisitado para descobrir o motivo da mortandade que acometeu as larvas do bicho da seda, causando prejuízos enormes à produção de seda na França. Em 1850 haviam sido colhidas 20000 toneladas na França. O volume foi caindo até 4000 toneladas em 1865. Depois de examinar os sintomas pôs-se a procurar a causa da epidemia. Chegou à conclusão de que os responsáveis eram micro-organismos presentes na poeira do ar dos recintos em que as larvas eram criadas, contaminando as folhas da amoreira de que se alimentavam, levando à morte aquelas que apresentavam predisposição genética para desenvolver a “peprina” nome dado ao desenvolvimento de pontos negros nas lavras, inclusive em seus órgãos internos. Pasteur ensinou os produtores de seda como identificar os ovos defeituosos e eliminá-los e evitar que as folhas da amoreira fossem contaminadas. A partir de todas essas pesquisas Pasteur chegou à conclusão que as doenças eram causadas por micróbios específicos para cada uma.  Comprovou que os estafilococos eram os responsáveis pelo desenvolvimento dos furúnculos, poliomielite e outras doenças.

Com esses dados na mão Pasteur convenceu-se de que a causa de muitas doenças era externa ao organismo. Com isso, estava criada a possibilidade de desenvolver técnicas de esterilização e assepsia diminuindo drasticamente as infecções pós cirúrgicas, a obstetrícia, ferimentos, injeções, e qualquer intervenção invasiva no organismo. Aos méritos enumerados creditados a Pasteur soma-se mais um tão ou mais benéfico do que os outros. Falamos da descoberta do princípio de como se desenvolve e como funciona a vacina. Não é aqui o lugar para entrar nas particularidades científicas e as técnicas da vacina. O fato é que se trata de uma descoberta que abriu um leque sem limites posto à disposição da saúde da humanidade como meio eficaz para prevenir-se contra todo tipo de enfermidades que têm como causa agentes externos como os micróbios. A técnica manual e em pequena quantidade do começo desenvolveu-se numa velocidade e diversificação espantosa. Hoje a descoberta do cientista francês anima centenas de laboratórios especializados para atender a demanda de sempre novas modalidades de agentes microbianos externos. Inclusive bioreatores são utilizados para atender a demanda em plena expansão.

Louis Pasteur é uma dessas personalidades emblemáticas de cientista que revolucionou com suas descobertas o campo da saúde, lançou os fundamentos que moldaram o panorama no qual se lida com ela nas muitas modalidades em que é praticada. Sobre este princípio o médico pesquisador Albert Sabin (1906-1993) desenvolveu a famosa vacina das “duas gotinhas” contra a poliomielite ou paralisia infantil causada por um vírus que se instala nos intestinos e ataca o sistema nervoso, levando à paralisia parcial ou total. Temos aqui mais um exemplo da importância das descobertas de Louis Pasteur e o desenvolvimento de procedimentos para melhorar a saúde pública. Milhões de crianças ficaram livres dos efeitos degenerativos da paralisia infantil desde a década de 1940, quando essa vacina se popularizou e se tornou um prática  rotineira imunizando as crianças por meio de campanhas de vacinação. No mesmo patamar de importância de Pasteur e Sabin, Alexander Fleming contribuiu no combate a muitas formas de doenças até então incuráveis. Por um desses acasos que foram revolucionários em outras descobertas, em 1928, ao estudar culturas do Staphylococcus aureus Fleming constatou, numa amostra que esquecera sobre a mesa durante suas férias, o desenvolvimento de um fungo do gênero Penicillium que apresentava espaços transparentes. Fleming concluiu que os fungos liberavam algum tipo de substância que matava as bactérias. Depois de comprovado que afetava as células de animais, foi alguns anos mais tarde purificado e concentrado em laboratório por dois outros cientistas: Howard Florey e Ernst Chain. Ficou mundialmente famosa com o nome de “Penicilina” e usada em grande escala durante a Segunda Guerra Mundial para tratar ferimentos infectados por bactérias. Na década de 1940, os três cientistas foram contemplados com o prêmio Nobel de medicina e o antibiótico passou a ser posto à disposição da população civil.

As conquistas de Pasteur, Sabin e Fleming muniram a medicina com poderosos e eficientes armas para combater doenças que causavam constante preocupação e não havia medicamentos eficazes para combate-las. Entre muitas vale destacar a pneumonia, sífilis, difteria, meningite, bronquite, e outras infecções das mais diversas modalidades. A Revolução dos três na área da medicina em nada fica a dever a Galileu, Copérnico e Keppler na astronomia, Newton na física e matemática, Darwin na evolução,  Max Plank na Física, Einstein na Física, Mendel e Dobzhansky na genética, Marconi na telegrafia sem fio, Francis Collins na genética médica, Edward Wilson no estudo dos ecossistemas e a importância dos insetos e inúmeros outros.

Não se podem esquecer os “senões” inevitavelmente relacionados como os aspectos questionáveis que acompanham as descobertas científicas de dimensão planetária sobre o controle dos agentes causadores de não poucas enfermidades graves. Mas, o lado positivo que acabamos de mencionar merece ser saudado com entusiasmo. Há, porém, o outro lado que de maneira alguma pode ser ignorado ou relativizado. Referimo-nos aos experimentos que se valem de animais como “cobaias” para desenvolver e testar os novos medicamentos para serem, uma vez confirmada sua eficácia e inocuidade, recomendadas pelas autoridades sanitárias e postos à disposição do público em farmácias, drogarias, postos de saúde, etc. A Encíclica chama a atenção que o recurso a animais e plantas não pode ser indiscriminada e tem seus limites. “O poder humano tem limites e que é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas. Todo o uso e experimentação exige um respeito religioso pela integridade da criação”. (Laudadto si, 130). A essa consideração a Encíclica acrescenta as ponderações de João Paulo II que resume o tamanho e o número de implicações sobre outros campos induzidas pela manipulação da natureza, de modo especial a genética.

Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que ‘manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus’, mas ao mesmo tempo recordava que ‘que toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir  da consideração das suas consequências noutras áreas’. Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição ‘do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria’, embora dissesse também que isso não deve levar a uma ‘indiscriminada manipulação genética’ que ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a uma artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para progresso científico e tecnológico, cuja capacidade foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar, os efeitos, o contexto e os limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de poder de grandes riscos. (Laudato si, 131).

Mais acima já chamamos a atenção que todo o avanço tecnológico significa uma contribuição para aperfeiçoar as ferramentas que impulsionam o progresso. Mas, ao mesmo tempo, se a produção e comercialização dessas “ferramentas” forem controladas e monopolizadas por empresas privadas ou governos, transformam-se em instrumentos de “poder”. Os preços são estabelecidos por eles e, com isso, dificultam que uma grande porcentagem da população se beneficie dos resultados. Laboratórios de porte internacional detêm as patentes exclusivas dos medicamentos, da manipulação genética responsáveis pela modificação de organismos. A tudo isso soma-se à produção de transgênicos e o complexo de pesticidas, herbicidas, adubos químicos e por aí vai. Os efeitos em termos ecológicos já foram objeto de reflexões mais acima. A tudo isso acresce outro “senão” de difícil dimensionamento. Com o poder da tecnologia sob controle, seus donos dificultam ou simplesmente impedem o registro de novos medicamentos, com destaque para os fitoterápicos cujo potencial de eficácia está sendo comprovado na prática em não poucas modalidades de enfermidades das quais as drogas químicas não dão conta. Fato similar acontece com o combate biológico das “pragas” que reduzem a produtividade das lavouras.

Com esse panorama como fundo somos levados a insistir que a pesquisa científica faz parte indispensável da missão do homem ao “cultivar” a “sua casa”, a “sua mãe e pátria”, que o sustenta e abriga para cumprir com sucesso a sua jornada existencial. No discurso proferido por João Paulo II na sessão por ocasião da solene assembleia da Pontifícia Academia de Ciências em homenagem a Einstein por ocasião do centenário do seu nascimento, o pontífice confirmou que esse também é o entendimento da Igreja.  “A Sé Apostólica quer também prestar a Albert Einstein a homenagem que lhe é devida pela contribuição eminente que trouxe ao progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade, presente no mistério do universo”. (João Paulo II, 10 de novembro de 1979). Continua depois relembrando a missão de Pio XI dada aos sábios integrantes da Pontifícia Academia de Ciências, recriada por ele: “a fazerem progredir, cada vez mais nobre e intensamente, as ciências, sem lhes pedir a mais; isto porque, neste excelente propósito e neste labor, consiste a missão de servir a verdade, da qual nós  os encarregamos”. (Motu próprio, 28 de outubro de 1936). Em seguida o pontífice resumiu o significado central do conceito “fazer ciência”.

A investigação da verdade é a tarefa fundamental da ciência. O investigador, que se move nesta primeira vertente da ciência, sente toda a fascinação das palavras de Santo Agostinho: “Intellectum valde ama” – “Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria, de conhecer a verdade. A ciência pura é um bem, digno de ser muito amado, porque ela é conhecimento e, portanto, perfeição do homem na sua inteligência. Antes mesmo das suas aplicações técnicas, deve ela ser honrada por si mesma, como parte integrante da cultura. A ciência fundamental é bem universal, que todos os povos devem poder cultivar em plena liberdade de qualquer forma de servidão internacional ou de colonialismo intelectual.
A investigação fundamental deve ser livre diante dos poderes político e econômico, que hão de colaborar para o desenvolvimento dela, sem a deter na sua criatividade nem a fazer servir aos próprios interesses. Como toda outra verdade, a verdade científica não tem, como efeito, de dar contas senão a si mesma e à Verdade suprema que é Deus, criador do homem e de todas as coisas”.
Na sua vertente, volta-se a ciência para as aplicações práticas, que encontram o pleno desenvolvimento nas diversas tecnologias. Na fase das suas realizações concretas a ciência é necessária à humanidade para satisfazer as justas exigências da vida e vencer os diferentes males que a ameaçam. Não há dúvida que a ciência aplicada prestou e prestará aos homens serviços imensos, contanto que seja, ao menos um tanto, inspirada pelo amor, regulada pela sabedoria e acompanhada pela coragem que a defende   contra ingerência indevida de todos os poderes tirânicos. A ciência aplicada deve aliar-se à consciência para que, no trinômio ciência-tecnologia-consciência, seja servida a causa do verdadeiro bem do homem. (João Paulo II, discurso para os integrantes da PAC, em assembleia comemorativa do centenário de nascimento de Albert Einstein, 10 de novembro de 1979)

Essa passagem do discurso de João Paulo II dirigida aos membros da Pontifícia Academia de Ciências, resume o tripé sobre o qual se fundamenta o conceito “fazer ciência”. O “fazer ciência”, a investigação, a curiosidade de conhecer a complexidade do universo e da natureza, faz parte da própria condição humana. Dotado de intelecto, ou se preferirmos, de inteligência reflexa, o homem não se contenta apenas em viver e sobreviver, como também procurar entender “como” o mundo funciona e “porque” afinal é assim e o “sentido” de tudo que nele se encontra. Em outras palavras, pela investigação, pelo fazer ciência, cultiva-se a inteligência em busca da Verdade, independentemente da aplicação por meio de tecnologias desenvolvidas a partir do potencial prático que oferece. Entendida assim a ciência como resultado da atividade do intelecto é um bem em si. Ela se basta si mesma independentemente de alguma aplicação prática. Neste nível ela se resume numa demonstração do que é capaz a mente humana quando se conscientiza da magnificência, da beleza, do belo e do sublime revelado em milhões de formas e cores, nos matizes mais inusitados do universo e da natureza.  Desperta nela então a curiosidade, a ânsia de procurar entender a multiplicidade, a complexidade e a urdidura que faz com que a natureza mineral, os micro-organismos, a flora, a fauna e nela a espécie humana se relacionam formando uma grande síntese. A Ciência assim entendida constitui-se num dos elementos de todas as culturas. Acontece que as muitas culturas e subculturas moldaram os seus perfis em condições físico geográficas as mais variadas. Sendo assim, a prática da investigação científica percorre caminhos diversos e assume formas próprias. Mas todas elas partem do mesmo fundamento enunciado por Sto. Agostinho citado mais acima: “Intellectum valde ama – Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria e que converge para o objetivo comum: a busca da Verdade. 







REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 92


Os limites da inovação biológica a partir da pesquisa.

As reflexões que precederam tiveram como uma das intensões básicas insistir no fato de que a humanidade não apenas vive e subsiste na natureza, mas  nela se encontra ontologicamente inserida como espécie biológica. Entretanto, ocupa uma posição  peculiar por ser dotada de inteligência que lhe garante  a capacidade observar observar a natureza que o cerca e perguntar como ela funciona,  como se originou, porque ela é assim, para onde caminha e qual o lugar e o papel que cabe ao homem  fazendo parte dela? A Encíclica resumiu em poucas linhas o poder e, ao mesmo tempo, o limite do seu exercício posto nas mãos do homem quando lhe foi confiado o “cultivo do jardim” no qual foi colocado pelo Criador. 

Na visão filosófica e teológica o ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria,  não é um fator externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os animais só são legítimas ‘desde que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas’. (Laudato si, 130).

Nessa posição da Encíclica afirma-se, de um lado, a peculiaridade do homem dentre todas a demais criaturas pela “razão e sua sabedoria”, sua “inteligência reflexa” conceito recorrente  de que nos valemos nas reflexões acima quando está em jogo o relacionamento do homem com a natureza. Essa peculiaridade “não é um fator   externo”, que deva ser excluído, melhor, ignorado como limitador ao avanço científico e a aplicação dos seus resultados. É nessa perspectiva que se coloca a experimentação recorrendo a animais como “cobaias” para desenvolver novos medicamentos, transgênicos, modificações genéticas e todas demais experiências partindo dessa base. Não se trata somente de fazer novas descobertas e nova técnicas se não forem legitimadas pela ética que, como em qualquer intervenção na natureza, deve ser a baliza que orienta as ações  humanas. A Encíclica chama a atenção  que “o poder humano tem limites e é contrário à dignidade humana  fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente de sus vidas”. (Laudato si, 130). Como se pode perceber encontramo-nos frente a um desafio de dimensões incomuns. Em princípio toda e qualquer atividade científica tem como motivação conhecer  como funciona a natureza. Uma vez de posse desses conhecimentos permite-lhe desenvolver tecnologias para “cultivar o jardim” no qual passa a sua  existência. O “cultivar” pressupõe ações que, pela sua natureza são de alguma forma invasivas. Em outros termos, interferem na natureza, desde um nível quase imperceptível até o limite da quebra do equilíbrio de inúmeros ecossistemas, comprometendo o equilíbrio biológico do planeta como um todo. Mas, essa história já foi de alguma forma objeto das nossas reflexões mais acima.


Ciência e saúde
Chegou o momento de nos ocuparmos com as tecnologias desenvolvidas para o tratamento dos mais diversos males que afetam a saúde das pessoas, desenvolvendo medicamentos cada vez mais diversificados e mais eficientes. Nessa área os últimos 150 anos  foram decisivas para a melhora da saúde do planeta, dobrando em não poucos países a expetativa de vida. Tomando por base o recenseamento do Brasil de 1940, considerado o primeiro recenseamento confiável,  a expectativa de vida média o brasileiro ficava em 40,2 anos e no de 2000 subiu para 70,4 e em 2015 para 75,5. A partir de 1850, ano de referência desses dados a pesquisa e a tecnologia correspondente deu um salto, uma revolução para melhor,  de dimensões difíceis de avaliar.

O primeiro grande  nome de cientista nessa verdadeira guerra contra os males responsáveis pela morte de milhões de pessoas  e a consequente baixa média da expectativa de vida, foi Louis Pasteur (1822-1895). Pasteur já era um nome de destaque na pesquisa científica antes de centrar suas atenção na área médica em 1865. Em 1861 recebera o prêmio da Academia de Ciências por ter desenvolvido técnicas para controlar o desenvolvimento de micro-organismos em alimentos e bebidas, método hoje conhecido como Pasteurização. Depois dessa memorável conquista da ciência e criados os meios de a por em prática, Pasteur foi requisitado para descobrir o motivo da mortandade que acometeu as larvas do bicho da seda, causando prejuízos enormes a produção de seda na França. Em 1850 haviam sido produzidas 20000 toneladas  na França. O volume foi caindo até 4000 toneladas em 1865. Depois de examinar os sintomas pôs-se a procurar a causa da epidemia. Chegou à conclusão que os responsáveis eram micro-organismos presentes na poeira do ar dos recintos em que as larvas eram criadas, contaminando as folhas da amoreira de que se alimentavam, levando à morte aquelas que apresentavam predisposição genética para desenvolver a “peprina” nome dado ao desenvolvimento de pontos negros nas lavras, inclusive em sus órgãos internos. Pasteur ensinou os produtores de seda como identificar os ovos defeituosos e eliminá-los e evitar que as folhas da amoreira fossem contaminadas. A partir de de todas essas pesquisas Pasteur  chegou à conclusão que as doenças eram causadas por micróbios específicos para cada uma.  Comprovou que os estafilococos eram os responsáveis pela desenvolvimento dos furúnculos, osteomielite  e outras doenças.

Com esses dados na mão Pasteur convenceu-se de que a causa  de muitas doenças era externa ao organismo. Com isso, estava criada a possibilidade de desenvolver técnicas de esterilização e assepsia diminuindo drasticamente  as infecções pós cirúrgicas, a obstetrícia, ferimentos, injeções, e qualquer intervenção invasiva no organismo. Aos méritos enumerados creditados a Pasteur soma-se mais um tão ou mais benéfico do que os outros. Falamos da descoberta do princípio de como se desenvolve e como funciona a vacina. Não é aqui o lugar para entrar nas particularidades científicas e as técnicas da vacina. O fato é que se trata de uma descoberta que abriu um leque sem limites posto à disposição da saúde da humanidade como meio eficaz para se prevenir contra todo tipo de enfermidades que têm como causa agentes externos como os micróbios. A técnica manual e em pequena quantidade do começo desenvolveu-se numa velocidade e diversificação espantosa. Hoje a descoberta do cientista francês anima centenas de laboratórios especializados para atender a demanda de sempre novas modalidades de agentes microbianos externos. Inclusive bioreatores são utilizados para a demanda em plena expansão.

Louis Pasteur é uma dessas personalidades emblemáticas de cientista que revolucionou com suas descobertas o campo da saúde, lançou os fundamentos que moldaram o panorama no  qual se lida com a ela nas muitas modalidades em que é praticada. Sobre este princípio  o médico pesquisador Albert Sabin (1906-1993) desenvolveu a famosa vacina das “duas gotinhas” contra a poliomielite ou paralisia infantil causada por um vírus que se instala nos intestinos e ataca o sistema nervoso, levando à paralisia parcial ou total. Temos aqui mais um exemplo da importância das descobertas de Louis Pasteur e o desenvolvimento de procedimentos para melhorar a saúde  pública. Milhões de crianças ficaram livres dos efeitos degenerativos da paralisia infantil desde a década de 1940, quando essa vacina se popularizou e se tornou um prática rotineira  imunizando as crianças por meio de campanhas  de vacinação. No mesmo patamar de importância de Pasteur e Sabin, Alexander Fleming contribuiu no combate a muitas formas de doenças até então incuráveis. Por um desses acasos que foram revolucionários em outras descobertas, em 1928, ao estudar culturas Staphylococcus aureus Fleming constatou, numa amostra que esquecera sobre a mesa durante suas férias, o desenvolvimento do um fungo do gênero Penicillium que apresentava  espaços transparentes. Fleming concluiu que que os fungos liberavam algum tipo de substância  que matava as bactérias. Depois de comprovado que afetava as células de animais, foi alguns anos mais tarde purificado e concentrado em laboratório por dois outros cientistas: Howard Florey e Ernst Chain. Ficou mundialmente famosa com o nome de “Penicilina” e usada em grande escala durante a Segunda Guerra Mundial para tratar ferimentos infectados por bactérias. Na década de 1940, os três cientistas  foram contemplados com o prêmio Nobel de medicina e o antibiótico passou a ser  posto à disposição da população civil.

As conquistas de Pasteur, Sabin e Fleming  muniram a medicina com poderosos e eficientes armas para combater doenças que causavam constante preocupação e não havia medicamentos eficazes para combate-las. Entre muitas vale destacar a pneumonia, sífilis, difteria, meningite, bronquite, e outras infecções das mais diversas modalidades. A Revolução dos três na área da medicina em nada ficam a dever a Galileu, Copérnico e Keppler na astronomia, Newton na física e matemática, Darwin na evolução,  Max Plank na Física, Einstein na Física, Mendel na genética, Marconi na telegrafia sem fio, Francis Collins com o mapeamento do genoma humano, e não poucos outros.

Não se podem esquecer os “senões” inevitavelmente relacionados como os aspectos questionáveis que acompanham as descobertas científicas de dimensão planetária sobre o controle dos agentes causadores de não poucas enfermidades graves. Mas, esse é o lado da medalha que merece ser saudado com entusiasmo. Há, porém, o outro lado que de maneira alguma pode ser ignorado ou relativizado. Essa outra face do progresso da ciência e tecnologia oferece uma questão que de forma alguma pode ser desprezada. Referimo-nos aos experimentos que se valem de animais como “cobaias” para desenvolver e testar os novos medicamentos para serem, uma vez confirmada sua eficácia e inocuidade, recomendadas pela autoridades sanitárias e postos à disposição do público em farmácias, drogarias, postos de saúde, etc. A Encíclica chama a atenção que o recurso a animais e plantas não pode ser indiscriminada e tem seus limites. “o poder humano tem limites e que é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente  os animais e dispor indiscriminadamente  das suas vidas. Todo  o uso e experimentação exige um respeito religioso pela integridade da criação”. (Laudadto si, 130). A essa consideração a Encíclica acrescenta as ponderações de João Paulo II que resume o tamanho e o número de implicações sobre outros campos induzidas pela manipulação da natureza, de modo especial a genética.

Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que ‘manifestam  quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus’, mas ao mesmo tempo recordava que ‘que toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir  da consideração das suas consequências noutras áreas’. Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição ‘do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação  tecnológica na agricultura e na indústria’, embora disse também que isso não deve levar  uma ‘indiscriminada manipulação genética’ que ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a uma artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se pode proibir a um artista que exprima sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para progresso científico e tecnológico, cuja capacidade foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar, os efeitos, o contexto e os limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de poder de grandes riscos. (Laudato si, 131).

Mais acima já chamamos a atenção que todo o avanço tecnológico significa uma contribuição para aperfeiçoar as ferramentas que impulsionam o  progresso. Mas, ao mesmo tempo, se a produção e comercialização dessas “ferramentas” forem controladas e monopolizadas por empresas privadas ou governos, transformam-se em instrumentos de “poder”. Os preços são  estabelecidos por eles e, com isso, dificultam que uma grande porcentagem da população se beneficie dos resultados. Laboratórios de porte internacional detêm as patentes exclusivas dos medicamentos, da manipulação genética responsáveis pela modificação de organismos. A tudo isso soma-se à produção de transgênicos e o complexo de pesticidas, herbicidas, adubos químicos e por aí vai. Os efeitos em termos ecológicos já foram objeto de reflexões mais acima. A tudo isso acresce outro “senão” de difícil dimensionamento. Com o poder da tecnologia sob controle, dificultam ou simplesmente impedem o registro de novos medicamentos, com destaque para os fitoterápicos cujo potencial de eficácia já foi comprovado na prática em não poucas modalidades de enfermidades das quais as drogas químicas não dão conta. Fato similar acontece com o combate biológico das “pragas” que reduzem a produtividade das lavouras.

Com esse panorama como fundo somos levados a insistir que a pesquisa científica faz parte indispensável  da missão do homem de “cultivar” a “sua casa”, a “sua mãe e pátria”, que o sustenta e abriga para cumprir a sua jornada existencial. No discurso proferido por João Paulo II na sessão por ocasião da solene assembleia da Pontifícia Academia de Ciências em homenagem a Einstein por ocasião do centenário do seu nascimento, o pontífice confirmou que esse também é o entendimento da Igreja.  “A Sé Apostólica quer também prestar a Albert Einstein a homenagem que lhe é devida pela contribuição eminente que trouxe ao progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade, presente no mistério do universo”. (João Paulo II, 10 de novembro de 1979). Continua depois relembrando a missão de Pio XI dada aos sábios integrantes da Pontifícia Academia de Ciências, recriada por ele: a fazerem “progredir, cada vez mais nobre e intensamente, as ciências, sem lhes pedir a mais; isto porque, neste excelente  propósito e neste labor, consiste a missão de servir a verdade, da qual nós  os encarregamos”. (Motu próprio,  28 de outubro de 1936). Em seguida o pontífice resumiu o significado central do conceito “fazer ciência”.

A investigação da verdade é a tarefa fundamental da ciência. O investigador, que se move nesta primeira vertente da ciência, sente toda a fascinação das palavras de Santo Agostinho: “Intellectum valde ama” – “Ama muito  a inteligência” e a função que lhe é própria, de conhecer a verdade. A ciência pura é um bem, digno de ser muito amado,  porque ela é conhecimento e portanto perfeição do homem na sua inteligência. Antes mesmo das suas aplicações técnicas, deve ela ser honrada por si mesma, como parte integrante da cultura. A ciência fundamental é bem universal, que todos os povos devem poder cultivar em plena liberdade de qualquer forma de servidão internacional ou de colonialismo intelectual.
A investigação fundamental deve ser livre diante dos poderes político e econômico, que hão de colaborar para o desenvolvimento dela, sem a deter na sua criatividade nem a fazer servir aos próprios interesses. Como toda outra verdade, a verdade científica não tem, como efeito, de dar contas senão a si mesma e à Verdade suprema que é Deus, criador do homem  e de todas as coisas”.
Na sua vertente, volta-se a ciência para as aplicações práticas, que encontram o pleno desenvolvimento nas diversas tecnologias. Na fase das suas realizações concretas a ciência é necessária à humanidade para satisfazer as justas exigências da vida e vencer  os diferentes males  que ameaçam. Não há dúvida que a ciência aplicada prestou e  prestará aos homens serviços imensos, contato que seja, ao menos um tanto, inspirada pelo amor, regulada pela sabedoria e acompanhada pela coragem que a defende   contra ingerência indevida de todos os poderes tirânicos. A ciência aplicada deve aliar-se à consciência para que, no trinômio ciência-tecnologia-consciência, seja servida  a causa do verdadeiro bem do homem. (João Paulo II, discurso para os integrantes da PAC, em assembleia comemorativa do centenário de nascimento de Albert Einstein, 10 de novembro de 1979))

Essa passagem do discurso de João Paulo II dirigida aos membros da Pontifícia Academia de Ciências, resume o tripé sobre o qual se fundamenta o conceito de “fazer ciência”. Em primeiro lugar, o “fazer ciência”, a investigação, a curiosidade de conhecer a complexidade do universo e da natureza, faz parte da própria condição humana. Dotado de intelecto, ou se preferirmos, de inteligência reflexa, o homem não se contenta apenas em viver e sobreviver, como também procurar entender “como” o mundo funciona  e “porque” afinal é assim. Em outras palavras, pela investigação, pelo fazer ciência, cultiva-se a inteligência em busca da Verdade, independentemente da aplicação por meio de tecnologias desenvolvidas a partir do potencial prático que oferece. Entendida assim a ciência como resultado da atividade do intelecto é um bem em si. Ela se basta si mesma independentemente de alguma aplicação prática. Neste nível ela se resume numa demonstração do que é capaz a mente humana quando toma consciência da magnificência, da beleza, do belo e do sublime revelado em  milhões de formas e cores,  nos matizes mais inusitados do universo e da natureza.  Desperta nela então a curiosidade, a ânsia de procurar entender a multiplicidade, a complexidade e a urdidura que faz com que a natureza mineral, os micro organismos, a flora, a fauna e nela espécie humana se relacionam formando uma grande síntese. A Ciência assim entendida constitui-se num dos elementos de todas as culturas. Acontece que as muitas culturas e subculturas moldaram os seus perfis em condições físico geográficas as mais variadas, a prática da investigação científica percorre caminhos diversos e assume formas próprias. Mas todas elas partem do mesmo fundamento enunciado na citação acima por Sto. Agostinho: “Intellectum valde ama – Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria e converge para o objetivo comum: a busca da Verdade.