A
Encíclica dedicou os parágrafos finais do capítulo segundo o que chamou de
“Olhar de Jesus” registrada pelos evangelistas. Em (Mt 11,25) o evangelista
reafirma a fé bíblica de que Deus é o Criador
do universo e de tudo que nele existe e vive. Além disso Ele não somente
é o Criador mas o Pai da Criação. Como tal
Jesus insistia com seus discípulos nessa relação paterna de Deus com
Natureza por Ele criada. Cada criatura é importante pelo simples fato de
existir e fazer parte integrante e exercer uma função no projeto da Criação. Na
avaliação de Edward Wilson, mais vezes citado nas páginas anteriores, as
milhões de micro e nano espécies que povoam a terra, pincipalmente os solos,
chamados de “bichinhos” segundo a terminologia das pessoas comuns, são de
fundamental importância para manter o equilíbrio do todo. E o Papa referindo-se
às mesmas criaturas afirmando que, sendo seu Criador, Deus mantem uma relação
paterna com elas, pois cada uma é importante aos Seus olhos. “Não se vendem
cinco pássaros por pequenas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido
diante de Deus”. (Lc 12,6). Vistas de perspectiva diferentes o Cientista e
“humanista secular” e o Papa chegaram à mesma conclusão. Aos seres vivos todos,
não importa a categoria taxonômica a que pertencem, são de alguma forma criaturas de Deus, portanto, cabe um lugar e
uma atribuição, tanto no plano espiritual quanto no científico.
Salvo
melhor juízo, tanto filósofos quanto teólogos fariam bem em descerem dos seus
olimpos de especulação teórica para prestarem um pouco mais de atenção à profundidade
do significado da narração dos evangelhos. A disputa entre os que teorizam
sobre a “imanência” ou “transcendência” de Deus na Natureza perdem muito da sua
importância, diante da afirmação do Papa quando chama a atenção de que,
O Senhor podia convidar os
outros a estar atentos à beleza que existe no mundo, porque Ele vivia em
contato permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e
admiração. Quando percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-se a
contemplar a beleza semeada por seu Pai
e convidava os discípulos a individuarem, nas coisas, uma mensagem
divina: “Levantai os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa”.
(Jo 4,35). (Laudato si, 97)
Jesus vivia em plena
harmonia com a criação, com grande admiração dos outros: “Quem é este, a quem
até o vento e o mar obedecem?”. (Mt8,27). (Laudato si, 98)
Não
é aqui nem o momento nem o lugar para entrar mais a fundo nas razões que
municiam os defensores da “imanência” de um lado e do outro, da
“transcendência”. Tomando em consideração as conclusões de não poucos dos
cientistas mais renomados em diversas especialidades e frente as conclusões que
a Encíclica sugere, concluem que as duas posições teológicas se complementam.
Pela imanência Deus se manifesta nas suas criaturas mas, em não se confundindo
com elas Ele, e de alguma forma Criador de todas coisas, “transcende-as”.
Continuando
o Papa toca numa questão que já deu e ainda dá muita munição aos teólogos
doutrinadores e às pessoas de todas as categorias sociais e de todos os níveis
de formação. Novamente citando o Evangelho segundo Mateus, Jesus
não se apresentava como um
asceta separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de
Si mesmo, declarou ‘Veio o Filho do Homem que come e bebe, e dizem: Aí está um
glutão e bebedor de vinho’ (Mt 11, 19). Encontrava-se longe das filosofias que
desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo
da história, esses dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns
pensadores cristão e desfiguraram o Evangelho. Jesus trabalhava com suas mãos,
entrando diariamente em contato com matéria criada por Deus para a moldar com a
sua capacidade de artesão. É digno de
nota que a maior parte da sua existência terrena tenha sido consagrada a essa
tarefa, levando uma vida simples que não despertava maravilha alguma. “não é
ele o carpinteiro, o filho de Maria?” (Mt 6,39) - (Laudato si, 98).
A
citação que acabamos de registrar lembra a doutrina que Jesus Cristo como
segunda pessoa da Santíssima Trindade
participou da criação do universo, da natureza e seus recursos, as plantas, os
animais e o homem. Portanto, como Deus está presente na criação como um todo,
em cada um dos seus componentes, especialmente
nos seres vivos e de forma especialíssima em cada uma das pessoas que
formam essa grande família da humanidade. “Segundo a compreensão cristã da
realidade, o destino da criação inteira passa
pelo mistério de Cristo, que nela está presente desde a sua origem.
‘Todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele’, ensina João Paulo II na
Encíclica “Laborem exercens de 14 de setembro de 1981”. (Laudato si, 99)
Complementando
esse aspecto da doutrina cristã sobre a participação de Jesus Cristo na
Criação, soma-se um segundo aspecto que
é de fundamental importância na prática do Cristianismo pelas pessoas e as
organizações, práticas que se foram consolidando no decorrer dos 2000 anos de
sua existência. A Encíclica depois de afirmar que Cristo como Deus, é, de fato o criador de
tudo o que existe no universo, insiste também que pela encarnação, assumiu a
condição humana, a
“Menschlichkeitt”, no sentido pleno do
conceito. Em continuação às reflexões o Papa explicita detalhadamente o alcance
do significado da encarnação de Deus na Natureza.
O destino da criação
inteira passa pelo mistério de Cristo que nela está presente desde a origem. (
... ). O prólogo do Evangelho de João (1, 1-18) mostra a atividade criadora de
Cristo como palavra divina (Logos). Mas o mesmo prólogo surpreende ao afirmar
que esta Palavra “se fez carne (Jo 1, 14). Uma pessoa da Santíssima Trindade
inseriu-se no universo criado, partilhando a própria sorte com ele até a cruz.
Desde o início do mundo, mas de modo peculiar a partir da encarnação, o
mistério de Cristo opera veladamente no conjunto da realidade natural, sem com
isso afetar a sua autonomia. (Laudato si, 99)
Penso
que aqui é o lugar para fazer referência
à reflexão de Francis Collins, diretor do Projeto Genoma humano, nosso
conhecido por citações mais acima, um dos mais conceituados genetecistas da
atualidade, ao encontrar uma alternativa
para os conceitos como “criação”, “inteligente”, “fundamental”, “planejador” e
outros na mesma linha, sujeitos à forte
rejeição da parte dos cientistas.
Minha modesta proposta é
rebatizar a evolução teísta como “Bios pelo Logos”, ou simplesmente “BioLogos”.
Os acadêmicos reconhecerão “bios” como
“vida” em grego (prefixo de Biologia, Bioquímica e assim por diante) e “logos”
como “palavra” em grego. Para muitos que acreditam em Deus, “Verbo”, sinônimo
de “palavra”, também é sinônimo de “Deus”, como expressou de maneira
impressionante e poética nas primeiras e majestosas linhas do evangelho de
João: “No princípio era o Verbo e o Verbo era “Deus” (João 1,1). BioLogos
expressa a crença de que Deus é fonte de toda a vida, e a vida expressa a
vontade de Deus. (Collins, 2,007, p. 209)
A
proposta de conciliação entre a Ciência e a crença em Deus proposta por Collins
com o conceito de BioLogos, assim como ele
explica o seu sentido, abre caminho
para uma possível saída para formular
uma Teologia da Natureza coerente e que satisfaça ambos os lados. Mas o
próprio autor da proposta do BioLogos aponta para algumas dificuldades que sua
aceitação enfrenta, tanto da parte do lado científico quanto do
filosófico-teológico. “Do lado religioso da divisão, poucos teólogos de
destaque conhecem, hoje em dia, detalhes suficientes da ciência biológica para
respaldar essa perspectiva com convicção, diante das enormes objeções dos
defensores do criacionismo ou do Design Inteligente”. (Collins, 2007, p. 208).
Collins, porém, observou que se vislumbram sinalizações importantes de que na
cúpula da Igreja Católica, por exemplo desenham-se perspectivas de uma aliança
com as Ciências Naturais para uma compreensão
que concilia a ambos os lados. Para tanto cita nada mais nada menos do
que João Paulo II numa mensagem à Pontifícia Academia de Ciências. Ele como
crente, porém não católico, que classificou de inteligente e corajosa a
afirmação do Pontífice: “que novas descobertas nos guiam ao reconhecimento da
evolução como mais do que hipótese”. Na mesma mensagem João Paulo II teve o
cuidado de não contestar nem por em
risco a posição católica definida por
Pio XII na Encíclica Humani Generis, de
que “se a origem do corpo humano vem de matéria viva que existiu anteriormente, a alma espiritual é criada
diretamente por Deus”.(Mensagem à Pontifícia Academia de Ciências sobre
Evolução, 22 de outubro de 1996).
Não
há necessidade de insistir que a mensagem de João Paulo II tenha merecido uma avaliação entusiasta da
parte dos cientistas que creem em Deus
como também da parte dos teólogos, filósofos, humanistas, literatos e artistas, abertos e sedentos de um diálogo
sério e isento de preconceitos sobre as questões de fundo, implícitas no universo e na natureza. A
mensagem do Papa aos cientistas, na verdade, não é nada mais do que a
reafirmação e a explicitação da posição oficial da Igreja definida nas
encíclicas “Divino Afflante Spiritu” de 1943 e “Humani Generis” de 1950 de Pio
II. Altas autoridades da Igreja Católica, como por ex. o Card. Schönborn de
Viena, minimizaram depois da morte de João Paulo II, o valor doutrinário do
conteúdo da sua mensagem. Schönborn classificou-a como “um tanto imprecisa e
irrelevante” e insistiu em levar mais a sério a orientação proposta pelo
“Design Inteligente”. Acontece que o Design Inteligente enfrenta uma série de restrições. A teoria não foi formulada por
um cientista que crê em Deus, nem por um teólogo nem filósofo, mas por um
jurista cristão da Universidade da Califórnia em Berckeley, no final do século
XX. Gozou de uma enorme popularidade e sua inclusão nos currículos escolares ao
se tratar da Evolução, chegou a ser
recomendada até pelo Presidente dos Estados
Unidos.
Para
começar põe-se uma séria dificuldade que
se relaciona com o exato sentido do conceito do que seja o Design Inteligente.
À primeira vista no entender de Francis Collins, parece sugerir diversas formas
de interpretação de como a “vida veio a acontecer neste planeta e a função que
Deus pode ter tido nesse processo”. (Collins, 2007, p. 188). Terminou, por fim,
predominando a ideia de que o Design Inteligente serve de resposta para as implicações
inerentes ao conceito de “complexidade irredutível”. Parte do pressuposto de que na natureza existem certos sistemas
biológicos de complexidade tão alta que sua origem não pode ser atribuída a processos mais simples e
menos complexos como são as mutações espontâneas, ocasionais, vantajosas e
perpetuadas pela seleção natural. A complexidade estrutural e funcional desses
sistemas biológicos é de tal ordem que só pode ser explicada pela intervenção
de alguma inteligência. Acontece que a maioria dos cientistas não aceita essa
teoria como válida. O principal obstáculo para a aceitação do Design
Inteligente como teoria científica é o fato de que, ela, bem considerada, não é
uma teoria científica pois, uma teoria científica prevê a possibilidade de
outras descobertas e deixa o caminho aberto para verificações
complementares. A tudo isso acresce o enorme a avanço das ciências
depois da apresentação do Design Inteligente. Desde então foram identificados
muitos dos processos na natureza que até então pareciam de “complexidade
irredutível”. Os avanços
científicos alertam para o fato de que o
Design Inteligente esconde a armadilha de confundir o “desconhecido” com o
“desconhecível”.
Se
de um lado, o DI não consegue oferecer uma sustentação científica consistente, assim também não convence como
solução teológica. Parece-se mais como o “deus ex machina” do teatro clássico,
um recurso extraordinário e alheio, portanto, invocado para socorrer na solução
de um impasse quando as ferramentas usuais já não conta do recado. Traduzindo
para a linguagem atual da ciência, o DI,
o “deus ex machina” dos antigos,
corresponde ao “deus das lacunas”. No momento em que a ciência se defronta com
um impasse sério na identificação de um fenômeno de importância crucial para a
investigação, recorre a uma explicação fora do âmbito da ciência, um “deus ex machina”,
uma causa extraordinária, uma intervenção externa, um ato criador, para
preencher “a lacuna”. Na sua essência não difere da posição do pastor de cabras e ovelhas do neolítico ao observar e ao apreciar a coreografia celeste em noites
de vigília solitária, ou o agricultor da pré-história observando a trajetória
diária ou os ciclos mensais da lua.
Mas
há um outro aspecto no DI que, segundo Collins, colide frontalmente com a
onipotência, a onipresença e a onisciência. Levado às últimas consequências, “o
DI apresenta o Todo-Poderoso como um criador atrapalhado que, de tempos em
tempos, precisa intervir para corrigir as insuficiências do projeto original,
do qual se originou a complexidade da vida” ”. (Collins, 2007, p. 200). Diante
desse quadro, a lógica leva a concluir que o DI não se sustenta como uma
solução para dirimir o aparente impasse em que se encontram as Ciências
Naturais e as Ciências do Espírito
Duas
questões ainda merecem destaque. Em primeiro lugar, não se questiona a
sinceridade dos adeptos convictos do DI, normalmente fieis seguidores de
denominações confessionais que interpretam as Sagradas Escrituras ao pé da
letra e a mão da Criação de Deus, e ao mesmo tempo respeitam e aceitam os
resultados das pesquisas científicas. Em meio a essa polêmica, a
avassaladora influência da teoria da
evolução de Darwin ocupa um lugar importante. Em segundo lugar, o
fundamentalismo científico de muitos seguidores de Darwin, não do próprio
Darwin, com destaque para Ernest Haeckel que o evolucionismo leva
necessariamente ao materialismo ateu. A defesa irredutível de cada uma das
posições ignorando-se ou combatendo-se mutuamente, ambas terminam num beco sem
saída. Richard Dawkins, cientista e apóstolo do ateísmo citado
por Collins, mostra em que terminam posições excludentes. “O universo
que observamos tem, exatamente, as propriedade que esperaríamos que existissem,
na verdade, sem “design”, sem finalidade, sem ala e sem bem, nada além de uma
indiferença cega a impiedosa?”. Collins responde a Dawkins. ”Que jamais seja
assim!. Afirmo tanto ao que crê em Deus quanto ao cientista que existe uma
solução nítida, obrigatória e satisfatória intelectualmente para essa busca
pela verdade” (Collins, 2007).