REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 55


A Encíclica dedicou os parágrafos finais do capítulo segundo o que chamou de “Olhar de Jesus” registrada pelos evangelistas. Em (Mt 11,25) o evangelista reafirma a fé bíblica de que Deus é o Criador  do universo e de tudo que nele existe e vive. Além disso Ele não somente é o Criador mas o Pai da Criação. Como tal  Jesus insistia com seus discípulos nessa relação paterna de Deus com Natureza por Ele criada. Cada criatura é importante pelo simples fato de existir e fazer parte integrante e exercer uma função no projeto da Criação. Na avaliação de Edward Wilson, mais vezes citado nas páginas anteriores, as milhões de micro e nano espécies que povoam a terra, pincipalmente os solos, chamados de “bichinhos” segundo a terminologia das pessoas comuns, são de fundamental importância para manter o equilíbrio do todo. E o Papa referindo-se às mesmas criaturas afirmando que, sendo seu Criador, Deus mantem uma relação paterna com elas, pois cada uma é importante aos Seus olhos. “Não se vendem cinco pássaros por pequenas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus”. (Lc 12,6). Vistas de perspectiva diferentes o Cientista e “humanista secular” e o Papa chegaram à mesma conclusão. Aos seres vivos todos, não importa a categoria taxonômica a que pertencem, são de alguma forma  criaturas de Deus, portanto, cabe um lugar e uma atribuição, tanto no plano espiritual quanto no científico.

Salvo melhor juízo, tanto filósofos quanto teólogos fariam bem em descerem dos seus olimpos de especulação teórica para prestarem um pouco mais de atenção à profundidade do significado da narração dos evangelhos. A disputa entre os que teorizam sobre a “imanência” ou “transcendência” de Deus na Natureza perdem muito da sua importância, diante da afirmação do Papa quando chama a atenção de  que,

O Senhor podia convidar os outros a estar atentos à beleza que existe no mundo, porque Ele vivia em contato permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e admiração. Quando percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-se a contemplar a beleza semeada por seu Pai  e convidava os discípulos a individuarem, nas coisas, uma mensagem divina: “Levantai os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa”. (Jo 4,35). (Laudato si, 97)
Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com grande admiração dos outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”. (Mt8,27). (Laudato si, 98)

Não é aqui nem o momento nem o lugar para entrar mais a fundo nas razões que municiam os defensores da “imanência” de um lado e do outro, da “transcendência”. Tomando em consideração as conclusões de não poucos dos cientistas mais renomados em diversas especialidades e frente as conclusões que a Encíclica sugere, concluem que as duas posições teológicas se complementam. Pela imanência Deus se manifesta nas suas criaturas mas, em não se confundindo com elas Ele, e de alguma forma Criador de todas coisas, “transcende-as”.

Continuando o Papa toca numa questão que já deu e ainda dá muita munição aos teólogos doutrinadores e às pessoas de todas as categorias sociais e de todos os níveis de formação. Novamente citando o Evangelho segundo Mateus, Jesus

não se apresentava como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de Si mesmo, declarou ‘Veio o Filho do Homem que come e bebe, e dizem: Aí está um glutão e bebedor de vinho’ (Mt 11, 19). Encontrava-se longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história, esses dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns pensadores cristão e desfiguraram o Evangelho. Jesus trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em contato com matéria criada por Deus para a moldar com a sua capacidade de  artesão. É digno de nota que a maior parte da sua existência terrena tenha sido consagrada a essa tarefa, levando uma vida simples que não despertava maravilha alguma. “não é ele o carpinteiro, o filho de Maria?” (Mt 6,39) -  (Laudato si, 98).

A citação que acabamos de registrar lembra a doutrina que Jesus Cristo como segunda  pessoa da Santíssima Trindade participou da criação do universo, da natureza e seus recursos, as plantas, os animais e o homem. Portanto, como Deus está presente na criação como um todo, em cada um dos seus componentes, especialmente  nos seres vivos e de forma especialíssima em cada uma das pessoas que formam essa grande família da humanidade. “Segundo a compreensão cristã da realidade, o destino da criação inteira passa  pelo mistério de Cristo, que nela está presente desde a sua origem. ‘Todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele’, ensina João Paulo II na Encíclica  “Laborem exercens  de 14 de setembro de 1981”. (Laudato si, 99)

Complementando esse aspecto da doutrina cristã sobre a participação de Jesus Cristo na Criação, soma-se um segundo aspecto  que é de fundamental importância na prática do Cristianismo pelas pessoas e as organizações, práticas que se foram consolidando no decorrer dos 2000 anos de sua existência. A Encíclica depois de afirmar que  Cristo como Deus, é, de fato o criador de tudo o que existe no universo, insiste também que pela encarnação, assumiu a condição humana,  a “Menschlichkeitt”,  no sentido pleno do conceito. Em continuação às reflexões o Papa explicita detalhadamente o alcance do significado da encarnação de Deus na Natureza.

O destino da criação inteira passa pelo mistério de Cristo que nela está presente desde a origem. ( ... ). O prólogo do Evangelho de João (1, 1-18) mostra a atividade criadora de Cristo como palavra divina (Logos). Mas o mesmo prólogo surpreende ao afirmar que esta Palavra “se fez carne (Jo 1, 14). Uma pessoa da Santíssima Trindade inseriu-se no universo criado, partilhando a própria sorte com ele até a cruz. Desde o início do mundo, mas de modo peculiar a partir da encarnação, o mistério de Cristo opera veladamente no conjunto da realidade natural, sem com isso afetar a sua autonomia. (Laudato si, 99)

Penso que aqui é o lugar para fazer  referência à reflexão de Francis Collins, diretor do Projeto Genoma humano, nosso conhecido por citações mais acima, um dos mais conceituados genetecistas da atualidade, ao encontrar  uma alternativa para os conceitos como “criação”, “inteligente”, “fundamental”, “planejador” e outros na mesma linha, sujeitos à  forte rejeição da parte dos cientistas.

Minha modesta proposta é rebatizar a evolução teísta como “Bios pelo Logos”, ou simplesmente “BioLogos”. Os acadêmicos  reconhecerão “bios” como “vida” em grego (prefixo de Biologia, Bioquímica e assim por diante) e “logos” como “palavra” em grego. Para muitos que acreditam em Deus, “Verbo”, sinônimo de “palavra”, também é sinônimo de “Deus”, como expressou de maneira impressionante e poética nas primeiras e majestosas linhas do evangelho de João: “No princípio era o Verbo e o Verbo era “Deus” (João 1,1). BioLogos expressa a crença de que Deus é fonte de toda a vida, e a vida expressa a vontade de Deus. (Collins, 2,007, p. 209)

A proposta de conciliação entre a Ciência e a crença em Deus proposta por Collins com o conceito de BioLogos, assim como ele  explica  o seu sentido, abre caminho para uma possível saída para formular  uma Teologia da Natureza coerente e que satisfaça ambos os lados. Mas o próprio autor da proposta do BioLogos aponta para algumas dificuldades que sua aceitação enfrenta, tanto da parte do lado científico quanto do filosófico-teológico. “Do lado religioso da divisão, poucos teólogos de destaque conhecem, hoje em dia, detalhes suficientes da ciência biológica para respaldar essa perspectiva com convicção, diante das enormes objeções dos defensores do criacionismo ou do Design Inteligente”. (Collins, 2007, p. 208). Collins, porém, observou que se vislumbram sinalizações importantes de que na cúpula da Igreja Católica, por exemplo desenham-se perspectivas de uma aliança com as Ciências Naturais para uma compreensão  que concilia a ambos os lados. Para tanto cita nada mais nada menos do que João Paulo II numa mensagem à Pontifícia Academia de Ciências. Ele como crente, porém não católico, que classificou de inteligente e corajosa a afirmação do Pontífice: “que novas descobertas nos guiam ao reconhecimento da evolução como mais do que hipótese”. Na mesma mensagem João Paulo II teve o cuidado de não  contestar nem por em risco  a posição católica definida por Pio XII na Encíclica Humani  Generis, de que “se a origem do corpo humano vem de matéria viva que existiu  anteriormente, a alma espiritual é criada diretamente por Deus”.(Mensagem à Pontifícia Academia de Ciências sobre Evolução, 22 de outubro de 1996).

Não há necessidade de insistir que a mensagem de João Paulo II tenha  merecido uma avaliação entusiasta da parte  dos cientistas que creem em Deus como também da parte dos teólogos, filósofos, humanistas, literatos e  artistas, abertos e sedentos de um diálogo sério e isento de preconceitos sobre as questões de fundo,  implícitas no universo e na natureza. A mensagem do Papa aos cientistas, na verdade, não é nada mais do que a reafirmação e a explicitação da posição oficial da Igreja definida nas encíclicas “Divino Afflante Spiritu” de 1943 e “Humani Generis” de 1950 de Pio II. Altas autoridades da Igreja Católica, como por ex. o Card. Schönborn de Viena, minimizaram depois da morte de João Paulo II, o valor doutrinário do conteúdo da sua mensagem. Schönborn classificou-a como “um tanto imprecisa e irrelevante” e insistiu em levar mais a sério a orientação proposta pelo “Design Inteligente”. Acontece que o Design Inteligente enfrenta uma série  de restrições. A teoria não foi formulada por um cientista que crê em Deus, nem por um teólogo nem filósofo, mas por um jurista cristão da Universidade da Califórnia em Berckeley, no final do século XX. Gozou de uma enorme popularidade e sua inclusão nos currículos escolares ao se tratar da Evolução,  chegou a ser recomendada até pelo Presidente dos Estados  Unidos.

Para começar põe-se uma séria dificuldade  que se relaciona com o exato sentido do conceito do que seja o Design Inteligente. À primeira vista no entender de Francis Collins, parece sugerir diversas formas de interpretação de como a “vida veio a acontecer neste planeta e a função que Deus pode ter tido nesse processo”. (Collins, 2007, p. 188). Terminou, por fim, predominando a ideia de que o Design Inteligente  serve de resposta para as implicações inerentes ao conceito de “complexidade irredutível”. Parte do pressuposto  de que na natureza existem certos sistemas biológicos de complexidade tão alta que sua origem não  pode ser atribuída a processos mais simples e menos complexos como são as mutações espontâneas, ocasionais, vantajosas e perpetuadas pela seleção natural. A complexidade estrutural e funcional desses sistemas biológicos é de tal ordem que só pode ser explicada pela intervenção de alguma inteligência. Acontece que a maioria dos cientistas não aceita essa teoria como válida. O principal obstáculo para a aceitação do Design Inteligente como teoria científica é o fato de que, ela, bem considerada, não é uma teoria científica pois, uma teoria científica prevê a possibilidade de outras descobertas e deixa o caminho aberto para  verificações  complementares. A tudo isso acresce o enorme a avanço das ciências depois da apresentação do Design Inteligente. Desde então foram identificados muitos dos processos na natureza que até então pareciam de “complexidade irredutível”. Os  avanços científicos  alertam para o fato de que o Design Inteligente esconde a armadilha de confundir o “desconhecido” com o “desconhecível”. 

Se de um lado, o DI não consegue oferecer uma sustentação científica  consistente, assim também não convence como solução teológica. Parece-se mais como o “deus ex machina” do teatro clássico, um recurso extraordinário e alheio, portanto, invocado para socorrer na solução de um impasse quando as ferramentas usuais já não conta do recado. Traduzindo para a  linguagem atual da ciência, o DI, o “deus ex machina” dos  antigos, corresponde ao “deus das lacunas”. No momento em que a ciência se defronta com um impasse sério na identificação de um fenômeno de importância crucial para a investigação, recorre a uma explicação fora do âmbito da ciência, um “deus ex machina”, uma causa extraordinária, uma intervenção externa, um ato criador, para preencher “a lacuna”. Na sua essência não difere da posição do  pastor de cabras e ovelhas  do neolítico ao observar  e ao apreciar a coreografia celeste em noites de vigília solitária, ou o agricultor da pré-história observando a trajetória diária ou os ciclos mensais da lua.

Mas há um outro aspecto no DI que, segundo Collins, colide frontalmente com a onipotência, a onipresença e a onisciência. Levado às últimas consequências, “o DI apresenta o Todo-Poderoso como um criador atrapalhado que, de tempos em tempos, precisa intervir para corrigir as insuficiências do projeto original, do qual se originou a complexidade da vida” ”. (Collins, 2007, p. 200). Diante desse quadro, a lógica leva a concluir que o DI não se sustenta como uma solução para dirimir o aparente impasse em que se encontram as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito

Duas questões ainda merecem destaque. Em primeiro lugar, não se questiona a sinceridade dos adeptos convictos do DI, normalmente fieis seguidores de denominações confessionais que interpretam as Sagradas Escrituras ao pé da letra e a mão da Criação de Deus, e ao mesmo tempo respeitam e aceitam os resultados das pesquisas científicas. Em meio a essa polêmica, a avassaladora  influência da teoria da evolução de Darwin ocupa um lugar importante. Em segundo lugar, o fundamentalismo científico de muitos seguidores de Darwin, não do próprio Darwin, com destaque para Ernest Haeckel que o evolucionismo leva necessariamente ao materialismo ateu. A defesa irredutível de cada uma das posições ignorando-se ou combatendo-se mutuamente, ambas terminam num beco sem saída. Richard Dawkins, cientista e apóstolo do ateísmo  citado  por Collins, mostra em que terminam posições excludentes. “O universo que observamos tem, exatamente, as propriedade que esperaríamos que existissem, na verdade, sem “design”, sem finalidade, sem ala e sem bem, nada além de uma indiferença cega a impiedosa?”. Collins responde a Dawkins. ”Que jamais seja assim!. Afirmo tanto ao que crê em Deus quanto ao cientista que existe uma solução nítida, obrigatória e satisfatória intelectualmente para essa busca pela verdade” (Collins, 2007).


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 54

O Solidarismo

Acima insistimos mais do que uma vez que o solidarismo não consiste em sua essência de uma composição do que há de positivo, tanto no individualismo quanto no coletivismo. Falamos de uma alternativa que parte de fundamentos ontológicos essencialmente diversos das duas propostas. Por princípio no individualismo, mais ou menos indivíduos comprometem-se por meio de um pacto ou qualquer outro vínculo a formar uma unidade que recebe o nome de sociedade. O compromisso não passa de um acerto pactuado com a finalidade de produzir bens, garantir os serviços, estabelecer as regras de conduta, montar o aparelhamento de defesa externa e, acima de tudo, a garantia da liberdade individual e o seu livre exercício como valor maior. Numa sociedade organizada sobre tal fundamento, a produção e distribuição dos bens é entregue à livre iniciativa e estimulada pela livre concorrência. As constituições e as leis ordinárias  dos Estados que adotaram o individualismo liberal como paradigma limitam-se  em proteger o efetivo exercício da liberdade. Nos modelos mais acerbados a prática do mais forte termina no devoramento mútuo das pessoas, bem no entender do ”homo homini lúpus.”- “ homem lobo do do seu semelhante.

O Solidarismo apresenta-se aqui como alternativa, como uma “terceira via” entre os dois extremos de que  acabamos de falar. A essência do Solidarismo fundamenta-se nas seguintes bases. O jesuíta Heinrich Pesch resumiu a sua essência, ensinando que  que se trata de um “sistema que se interpõe – Vermitteldes System” – entre o coletivismo e o individualismo. Outro jesuíta, Gustav Gundlach, discípulo de Pesch, apontou para a mesma direção e explicou mais detalhadamente  a condição de terceira via do Solidarismo ao afirmar que se coloca  como meio termo entre os “ismos” que se lhe opõem. Na verdade aponta para uma linha intermediária, um terceiro caminho – uma “Linie der Mitte”, conforme a definição de Gundlach, que supera as contradições implícitas na natureza das duas outras vias. O cardeal Döffner confirmou que se trata de uma terceira via e não de um arranjo, uma conciliação entre o coletivismo e o individualismo opostos. Chamou  atenção que o princípio do Solidarismo não pode ser entendido como meio termo entre os “ismos” de que se acaba de falar, porque o princípio da solidariedade  tem, ao mesmo tempo, como ponto de partida a dignidade da pessoa humana e a natureza social do homem. Assim entendido, o Solidarismo constitui-se numa terceira via essencialmente  diversa das outras. (cf. Bohnen-Ullmann, 1993, p. 125).

O cardeal Döffner identificou o fundamento que confere a solidez e originalidade da terceira via, como sendo: A dignidade  pessoal e individual da pessoa humana e sua dimensão social. Como individualidade ontologicamente pessoal vem dotada de uma dignidade que não lhe pode ser contestada por argumentos de espécie alguma. De outra parte, a natureza pessoal, individual é, ao mesmo tempo, também pela sua natureza social. A consequência lógica não pode ser outra. A realização  plena a individualidade está condicionada ao pertencimento a uma sociedade, a qual lhe garante a subsidiariedade indispensável para suprir as suas limitações em termo de realização. Essa situação define como ponto de partida uma relação de todo diferente  entre as pessoas inseridas numa determinada sociedade. Começa pelo fato de que a sociedade não se origina a partir de um pacto acertado entre seus membros, estabelecendo as regras, os ordenamentos e os dispositivos legais, para elaborar projetos de qualquer natureza. Tão pouco a sociedade é um ente inventado por alguma filosofia ou ideologia no qual as individualidades  pessoais são degradadas a peças que movimentam a máquina social  em função de uma utopia de igualdade radical impossível. Concebido nesses termos o Solidarismo apresenta-se, de fato, como uma “terceira via” de caráter essencialmente humano capaz de concretizar o ontologicamente humano – “die Menschlichkeit”, como foi definido pelo Pe. Balduino Rambo. Penetrando um pouco mais a fundo na natureza dessa “linha do meio –Linie der Mitte de Gustav Gundlach os autores de “O Solidarismo” resumiram-na didaticamente em quatro.

1.           Seu fundamente natural  e real assenta na dependência  recíproca do ser humano com relação ao outro;  seu bem-estar e estar bem dependem do bem estar dos outros, por causa do mútuo influxo para o aperfeiçoamento  da natural carência humana.
2.           Como princípio jurídico social,  o Solidarismo conduz à responsabilidade pelo bem comum. Envolve, pois, um dever ético, o qual defende e salvaguarda a autonomia  dos indivíduos e associações intra-estatais; subordina os interesses particulares aos da comunidade; enquadra o direito privado no direito da sociedade, segundo o  princípio de colisão dos direitos, sem abolir, nem limitar, arbitrariamente, nem reprimir a economia privada. A solidariedade representa  sínteses de todas as forças individuais se sociais, para colimar os objetivos do Estado, ao qual cabe zelar pela parte mais fraca da sociedade.
3.           A solidariedade, como principal formador da sociedade propicia e dá origem, d acordo com as condições históricas  as necessidades dos diversos segmentos sociais associações, agremiações, etc.) A solidariedade não favorece nem patrocina interesses unilaterais, porém, como força cultural atuante, visa, tendo por meta a construção da harmonia social, na busca do equilíbrio de interesses conflitantes.
4.           Finalmente, não se pode silenciar que a solidariedade é, também, um princípio criativo, com fundamento no amor de Cristo, o qual vê no outro um irmão. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 126-127)

Parece que, com que vínhamos expondo, ficaram suficientemente claras as fronteiras, os marcos divisórios entre o Coletivismo, o Individualismo e o Soliarismo. São como água e azeite. Não se misturam. São três vias paralelas, mutuamente excludentes. No Solidarismo, pretende-se que a justiça garanta os direitos de todos os cidadãos igualmente, sem privilegiar uma ou outra classe e deixar no abandono a outra. Da mesma forma, todas as forças  e energias, tanto dos indivíduos, quanto das agremiações privadas e o aparelhamento do Estado, são canalizados em favor do corpo social como um todo. E o corpo social como um todo sadio, robusto, progressista e bem aparelhado, favorece na outra ponta, a realização, a satisfação e a harmonia entre as pessoas. Por essas e outras razões “a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada” (Laudato si, 93)

Passando do plano teórico para a prática do Solidarismo, põe-se logicamente a pergunta: O Solidarismo é viável na prática? É certo que desde a sua proposição como alternativa de organização social ao Individualismo e Coletivismo, há 170 anos passados, não consta que algum Estado ou nação como um todo se tenha moldado ao modelo do Solidarismo. Seus princípios, porém, serviram de referência a um grande número de associações, agremiações e outras formas de organização social em não poucos países, entre eles a Alemanha, a Suídadmente a pergunta: O Soloça, Áustria, Inglaterra, Itália, Argentina, Brasil  e outros.

A fim de não estender-me demais  sobre essa terceira via no contexto dessas reflexões inspiradas na “Eníclica Laudato si” do Papa Francisco, chamo a atenção de duas associações que comprometeram os agricultores do sul do Brasil com projetos de desenvolvimento e promoção humana na primeira metade do século XX. Na concepção dos projetos, na finalidade das propostas, nos instrumentos escolhidos e nas estratégias  utilizadas, inseriu-as na vertente do “catolicismo social proposto por Wilhelm Ketteler e nas décadas que se seguiram formuladas num corpo doutrinário coerente por Heinrich Pesch, Gustav Gundlach, Oswald von Nell Brreuning e o cardeal Höffner. A proposta foi elevada à categoria de ”Doutrina Social oficial da Igreja”, pelas Encíclicas “Rerum Novarum” de Leão XIII, “Quadragesimo Anno” de Pio XI, “Mater et Magistra” de João XXIII e “Populorum Progressio de Paulo VI., além de muitos outros  documentos e declarações de autoridades eclesiásticas.

Como já lembramos mais acima, ao que consta nenhum Estado moderno tem como fundamento constitucional o Solidarismo. Ou estão organizados e funcionam sobre as bases do individualismo ou do coletivismo. Isso não impediu que muitas organizações, sociedades, associações, agremiações e outras do gênero adotassem  a doutrina do Solidarismo como referência dos seus objetivos de desenvolvimento social, cultural, econômico, enfim de promoção humana. Como aqui não nem o lugar nem  a ocasião de examinar exaustivamente as associações a que nos referimos mais acima limitamo-nos  a um breve esboço de cada uma.. A primeira delas foi a “Associação Riograndense de Agricultores”. Fundada em 1900 no Congresso dos Católicos em São José do Hortêncio. A Associação adotou como guia mestra o lema “viribus Unitis” – “Somando Forças”. Além do seu caráter solidário a Associação foi interconfessional e inter étnica, algo surpreendente para as circunstâncias do começo do século XX. Em poucas palavras a Associação Riograndense de Agricultores foi pensada para enfrentar e resolver solidariamente os desafios que se punham para os imigrantes de seus descendentes, tanto alemães protestantes e católicos, quanto italianos, poloneses e outros. As iniciativas tomadas e os projetos desenvolvidos até a transformação em 1909 em sindicato e, com isso, a perda da sua identidade com organização solidária, encontram-se largamente detalhadas pelo autor dessas reflexões num livro intitulado: “Somando Forças – O  Projeto Social dos Jesuítas no sul do Brasil” – Edit. Unisinos. 2011.

Depois de encerrada a breve mas extremamente fecunda história da Associação Riograndense de  Agricultores, as lideranças católicas, com os jesuítas à sua frente, fundaram em 1912 em Venâncio Aires a Sociedade União Popular – o “Volksverein für die deutschen Katholiken”. Como se pode perceber uma associação confessional e étnica mas essencialmente fundamentada na doutrina social da Igreja e com o mesmo objetivo de desenvolvimento econômico e promoção humana. Como lema escolheu o “omnibus omnia” – “um por todos e todos por um”. A Sociedade União popular, inspirada nos “Volksvereine da Alemanha, Suíça e Áustria, executou projetos de fundamental importância no plano da saúde e assistência social, na abertura de novas fronteiras de colonização, na educação, nas diversas formas de cooperativismo, com destaque para o cooperativismo de poupança e empréstimo, conhecido como “Caixas Rurais”, até o começo da década de 1960. Considerando a temática de que se ocupa a encíclica Laudato si, já no começo da década de 1930 a Sociedade União Popular  propôs a formação de uma cooperativa para reflorestar  áreas degradas pelo uso. A história e os feitos da Sociedade União Popular foram exaustivamente analisadas e detalhadas, na obra acima citada: “Somando Forças”.

Depois de analisar e avaliar a doutrina social da Igreja sobre o direito à propriedade e seus limites e as duas modalidades concretas praticadas pelos pequenos agricultores no sul do Brasil na primeira metade do século XX, fechamos a questão da propriedade privada com a observação da Encíclica Laudato si.

O rico e o pobre tem igual dignidade, porque “quem fez a ambos foi o Senhor” (Pr 22,2). “Ele criou  o pequeno e o pequeno” (Sab 6, 7) e  “faz com que o sol se levante os bons e os maus” (Mt 5,45). Isto tem consequências  práticas como explicitaram os bispos do Paraguai: Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja ilusório mas real. isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado. (Laudato si, 94)


Sendo assim, o direito à propriedade privada vem a ser o pressuposto para suprir decentemente as necessidades do proprietário e sua família. Isso confere segurança e estímulo para produzir e realizar-se como pessoa, amparado pela lei e as instâncias burocráticas responsáveis pelo bom andamento do desenvolvimento econômico, social e espiritual da população. Mas, tomando sempre em consideração que “o meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para administrar em benefício de todos”. (Laudato si, 95).