REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 54

O Solidarismo

Acima insistimos mais do que uma vez que o solidarismo não consiste em sua essência de uma composição do que há de positivo, tanto no individualismo quanto no coletivismo. Falamos de uma alternativa que parte de fundamentos ontológicos essencialmente diversos das duas propostas. Por princípio no individualismo, mais ou menos indivíduos comprometem-se por meio de um pacto ou qualquer outro vínculo a formar uma unidade que recebe o nome de sociedade. O compromisso não passa de um acerto pactuado com a finalidade de produzir bens, garantir os serviços, estabelecer as regras de conduta, montar o aparelhamento de defesa externa e, acima de tudo, a garantia da liberdade individual e o seu livre exercício como valor maior. Numa sociedade organizada sobre tal fundamento, a produção e distribuição dos bens é entregue à livre iniciativa e estimulada pela livre concorrência. As constituições e as leis ordinárias  dos Estados que adotaram o individualismo liberal como paradigma limitam-se  em proteger o efetivo exercício da liberdade. Nos modelos mais acerbados a prática do mais forte termina no devoramento mútuo das pessoas, bem no entender do ”homo homini lúpus.”- “ homem lobo do do seu semelhante.

O Solidarismo apresenta-se aqui como alternativa, como uma “terceira via” entre os dois extremos de que  acabamos de falar. A essência do Solidarismo fundamenta-se nas seguintes bases. O jesuíta Heinrich Pesch resumiu a sua essência, ensinando que  que se trata de um “sistema que se interpõe – Vermitteldes System” – entre o coletivismo e o individualismo. Outro jesuíta, Gustav Gundlach, discípulo de Pesch, apontou para a mesma direção e explicou mais detalhadamente  a condição de terceira via do Solidarismo ao afirmar que se coloca  como meio termo entre os “ismos” que se lhe opõem. Na verdade aponta para uma linha intermediária, um terceiro caminho – uma “Linie der Mitte”, conforme a definição de Gundlach, que supera as contradições implícitas na natureza das duas outras vias. O cardeal Döffner confirmou que se trata de uma terceira via e não de um arranjo, uma conciliação entre o coletivismo e o individualismo opostos. Chamou  atenção que o princípio do Solidarismo não pode ser entendido como meio termo entre os “ismos” de que se acaba de falar, porque o princípio da solidariedade  tem, ao mesmo tempo, como ponto de partida a dignidade da pessoa humana e a natureza social do homem. Assim entendido, o Solidarismo constitui-se numa terceira via essencialmente  diversa das outras. (cf. Bohnen-Ullmann, 1993, p. 125).

O cardeal Döffner identificou o fundamento que confere a solidez e originalidade da terceira via, como sendo: A dignidade  pessoal e individual da pessoa humana e sua dimensão social. Como individualidade ontologicamente pessoal vem dotada de uma dignidade que não lhe pode ser contestada por argumentos de espécie alguma. De outra parte, a natureza pessoal, individual é, ao mesmo tempo, também pela sua natureza social. A consequência lógica não pode ser outra. A realização  plena a individualidade está condicionada ao pertencimento a uma sociedade, a qual lhe garante a subsidiariedade indispensável para suprir as suas limitações em termo de realização. Essa situação define como ponto de partida uma relação de todo diferente  entre as pessoas inseridas numa determinada sociedade. Começa pelo fato de que a sociedade não se origina a partir de um pacto acertado entre seus membros, estabelecendo as regras, os ordenamentos e os dispositivos legais, para elaborar projetos de qualquer natureza. Tão pouco a sociedade é um ente inventado por alguma filosofia ou ideologia no qual as individualidades  pessoais são degradadas a peças que movimentam a máquina social  em função de uma utopia de igualdade radical impossível. Concebido nesses termos o Solidarismo apresenta-se, de fato, como uma “terceira via” de caráter essencialmente humano capaz de concretizar o ontologicamente humano – “die Menschlichkeit”, como foi definido pelo Pe. Balduino Rambo. Penetrando um pouco mais a fundo na natureza dessa “linha do meio –Linie der Mitte de Gustav Gundlach os autores de “O Solidarismo” resumiram-na didaticamente em quatro.

1.           Seu fundamente natural  e real assenta na dependência  recíproca do ser humano com relação ao outro;  seu bem-estar e estar bem dependem do bem estar dos outros, por causa do mútuo influxo para o aperfeiçoamento  da natural carência humana.
2.           Como princípio jurídico social,  o Solidarismo conduz à responsabilidade pelo bem comum. Envolve, pois, um dever ético, o qual defende e salvaguarda a autonomia  dos indivíduos e associações intra-estatais; subordina os interesses particulares aos da comunidade; enquadra o direito privado no direito da sociedade, segundo o  princípio de colisão dos direitos, sem abolir, nem limitar, arbitrariamente, nem reprimir a economia privada. A solidariedade representa  sínteses de todas as forças individuais se sociais, para colimar os objetivos do Estado, ao qual cabe zelar pela parte mais fraca da sociedade.
3.           A solidariedade, como principal formador da sociedade propicia e dá origem, d acordo com as condições históricas  as necessidades dos diversos segmentos sociais associações, agremiações, etc.) A solidariedade não favorece nem patrocina interesses unilaterais, porém, como força cultural atuante, visa, tendo por meta a construção da harmonia social, na busca do equilíbrio de interesses conflitantes.
4.           Finalmente, não se pode silenciar que a solidariedade é, também, um princípio criativo, com fundamento no amor de Cristo, o qual vê no outro um irmão. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 126-127)

Parece que, com que vínhamos expondo, ficaram suficientemente claras as fronteiras, os marcos divisórios entre o Coletivismo, o Individualismo e o Soliarismo. São como água e azeite. Não se misturam. São três vias paralelas, mutuamente excludentes. No Solidarismo, pretende-se que a justiça garanta os direitos de todos os cidadãos igualmente, sem privilegiar uma ou outra classe e deixar no abandono a outra. Da mesma forma, todas as forças  e energias, tanto dos indivíduos, quanto das agremiações privadas e o aparelhamento do Estado, são canalizados em favor do corpo social como um todo. E o corpo social como um todo sadio, robusto, progressista e bem aparelhado, favorece na outra ponta, a realização, a satisfação e a harmonia entre as pessoas. Por essas e outras razões “a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada” (Laudato si, 93)

Passando do plano teórico para a prática do Solidarismo, põe-se logicamente a pergunta: O Solidarismo é viável na prática? É certo que desde a sua proposição como alternativa de organização social ao Individualismo e Coletivismo, há 170 anos passados, não consta que algum Estado ou nação como um todo se tenha moldado ao modelo do Solidarismo. Seus princípios, porém, serviram de referência a um grande número de associações, agremiações e outras formas de organização social em não poucos países, entre eles a Alemanha, a Suídadmente a pergunta: O Soloça, Áustria, Inglaterra, Itália, Argentina, Brasil  e outros.

A fim de não estender-me demais  sobre essa terceira via no contexto dessas reflexões inspiradas na “Eníclica Laudato si” do Papa Francisco, chamo a atenção de duas associações que comprometeram os agricultores do sul do Brasil com projetos de desenvolvimento e promoção humana na primeira metade do século XX. Na concepção dos projetos, na finalidade das propostas, nos instrumentos escolhidos e nas estratégias  utilizadas, inseriu-as na vertente do “catolicismo social proposto por Wilhelm Ketteler e nas décadas que se seguiram formuladas num corpo doutrinário coerente por Heinrich Pesch, Gustav Gundlach, Oswald von Nell Brreuning e o cardeal Höffner. A proposta foi elevada à categoria de ”Doutrina Social oficial da Igreja”, pelas Encíclicas “Rerum Novarum” de Leão XIII, “Quadragesimo Anno” de Pio XI, “Mater et Magistra” de João XXIII e “Populorum Progressio de Paulo VI., além de muitos outros  documentos e declarações de autoridades eclesiásticas.

Como já lembramos mais acima, ao que consta nenhum Estado moderno tem como fundamento constitucional o Solidarismo. Ou estão organizados e funcionam sobre as bases do individualismo ou do coletivismo. Isso não impediu que muitas organizações, sociedades, associações, agremiações e outras do gênero adotassem  a doutrina do Solidarismo como referência dos seus objetivos de desenvolvimento social, cultural, econômico, enfim de promoção humana. Como aqui não nem o lugar nem  a ocasião de examinar exaustivamente as associações a que nos referimos mais acima limitamo-nos  a um breve esboço de cada uma.. A primeira delas foi a “Associação Riograndense de Agricultores”. Fundada em 1900 no Congresso dos Católicos em São José do Hortêncio. A Associação adotou como guia mestra o lema “viribus Unitis” – “Somando Forças”. Além do seu caráter solidário a Associação foi interconfessional e inter étnica, algo surpreendente para as circunstâncias do começo do século XX. Em poucas palavras a Associação Riograndense de Agricultores foi pensada para enfrentar e resolver solidariamente os desafios que se punham para os imigrantes de seus descendentes, tanto alemães protestantes e católicos, quanto italianos, poloneses e outros. As iniciativas tomadas e os projetos desenvolvidos até a transformação em 1909 em sindicato e, com isso, a perda da sua identidade com organização solidária, encontram-se largamente detalhadas pelo autor dessas reflexões num livro intitulado: “Somando Forças – O  Projeto Social dos Jesuítas no sul do Brasil” – Edit. Unisinos. 2011.

Depois de encerrada a breve mas extremamente fecunda história da Associação Riograndense de  Agricultores, as lideranças católicas, com os jesuítas à sua frente, fundaram em 1912 em Venâncio Aires a Sociedade União Popular – o “Volksverein für die deutschen Katholiken”. Como se pode perceber uma associação confessional e étnica mas essencialmente fundamentada na doutrina social da Igreja e com o mesmo objetivo de desenvolvimento econômico e promoção humana. Como lema escolheu o “omnibus omnia” – “um por todos e todos por um”. A Sociedade União popular, inspirada nos “Volksvereine da Alemanha, Suíça e Áustria, executou projetos de fundamental importância no plano da saúde e assistência social, na abertura de novas fronteiras de colonização, na educação, nas diversas formas de cooperativismo, com destaque para o cooperativismo de poupança e empréstimo, conhecido como “Caixas Rurais”, até o começo da década de 1960. Considerando a temática de que se ocupa a encíclica Laudato si, já no começo da década de 1930 a Sociedade União Popular  propôs a formação de uma cooperativa para reflorestar  áreas degradas pelo uso. A história e os feitos da Sociedade União Popular foram exaustivamente analisadas e detalhadas, na obra acima citada: “Somando Forças”.

Depois de analisar e avaliar a doutrina social da Igreja sobre o direito à propriedade e seus limites e as duas modalidades concretas praticadas pelos pequenos agricultores no sul do Brasil na primeira metade do século XX, fechamos a questão da propriedade privada com a observação da Encíclica Laudato si.

O rico e o pobre tem igual dignidade, porque “quem fez a ambos foi o Senhor” (Pr 22,2). “Ele criou  o pequeno e o pequeno” (Sab 6, 7) e  “faz com que o sol se levante os bons e os maus” (Mt 5,45). Isto tem consequências  práticas como explicitaram os bispos do Paraguai: Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja ilusório mas real. isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado. (Laudato si, 94)


Sendo assim, o direito à propriedade privada vem a ser o pressuposto para suprir decentemente as necessidades do proprietário e sua família. Isso confere segurança e estímulo para produzir e realizar-se como pessoa, amparado pela lei e as instâncias burocráticas responsáveis pelo bom andamento do desenvolvimento econômico, social e espiritual da população. Mas, tomando sempre em consideração que “o meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para administrar em benefício de todos”. (Laudato si, 95). 

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