O Solidarismo
Acima
insistimos mais do que uma vez que o solidarismo não consiste em sua essência
de uma composição do que há de positivo, tanto no individualismo quanto no
coletivismo. Falamos de uma alternativa que parte de fundamentos ontológicos essencialmente
diversos das duas propostas. Por princípio no individualismo, mais ou menos
indivíduos comprometem-se por meio de um pacto ou qualquer outro vínculo a
formar uma unidade que recebe o nome de sociedade. O compromisso não passa de
um acerto pactuado com a finalidade de produzir bens, garantir os serviços,
estabelecer as regras de conduta, montar o aparelhamento de defesa externa e,
acima de tudo, a garantia da liberdade individual e o seu livre exercício como
valor maior. Numa sociedade organizada sobre tal fundamento, a produção e
distribuição dos bens é entregue à livre iniciativa e estimulada pela livre
concorrência. As constituições e as leis ordinárias dos Estados que adotaram o individualismo
liberal como paradigma limitam-se em
proteger o efetivo exercício da liberdade. Nos modelos mais acerbados a prática
do mais forte termina no devoramento mútuo das pessoas, bem no entender do
”homo homini lúpus.”- “ homem lobo do do seu semelhante.
O
Solidarismo apresenta-se aqui como alternativa, como uma “terceira via” entre
os dois extremos de que acabamos de
falar. A essência do Solidarismo fundamenta-se nas seguintes bases. O jesuíta
Heinrich Pesch resumiu a sua essência, ensinando que que se trata de um “sistema que se interpõe –
Vermitteldes System” – entre o coletivismo e o individualismo. Outro jesuíta,
Gustav Gundlach, discípulo de Pesch, apontou para a mesma direção e explicou
mais detalhadamente a condição de
terceira via do Solidarismo ao afirmar que se coloca como meio termo entre os “ismos” que se lhe
opõem. Na verdade aponta para uma linha intermediária, um terceiro caminho –
uma “Linie der Mitte”, conforme a definição de Gundlach, que supera as
contradições implícitas na natureza das duas outras vias. O cardeal Döffner
confirmou que se trata de uma terceira via e não de um arranjo, uma conciliação
entre o coletivismo e o individualismo opostos. Chamou atenção que o princípio do Solidarismo não
pode ser entendido como meio termo entre os “ismos” de que se acaba de falar,
porque o princípio da solidariedade tem,
ao mesmo tempo, como ponto de partida a dignidade da pessoa humana e a natureza
social do homem. Assim entendido, o Solidarismo constitui-se numa terceira via
essencialmente diversa das outras. (cf.
Bohnen-Ullmann, 1993, p. 125).
O
cardeal Döffner identificou o fundamento que confere a solidez e originalidade
da terceira via, como sendo: A dignidade
pessoal e individual da pessoa humana e sua dimensão social. Como
individualidade ontologicamente pessoal vem dotada de uma dignidade que não lhe
pode ser contestada por argumentos de espécie alguma. De outra parte, a
natureza pessoal, individual é, ao mesmo tempo, também pela sua natureza
social. A consequência lógica não pode ser outra. A realização plena a individualidade está condicionada ao
pertencimento a uma sociedade, a qual lhe garante a subsidiariedade
indispensável para suprir as suas limitações em termo de realização. Essa
situação define como ponto de partida uma relação de todo diferente entre as pessoas inseridas numa determinada
sociedade. Começa pelo fato de que a sociedade não se origina a partir de um
pacto acertado entre seus membros, estabelecendo as regras, os ordenamentos e
os dispositivos legais, para elaborar projetos de qualquer natureza. Tão pouco
a sociedade é um ente inventado por alguma filosofia ou ideologia no qual as
individualidades pessoais são degradadas
a peças que movimentam a máquina social
em função de uma utopia de igualdade radical impossível. Concebido
nesses termos o Solidarismo apresenta-se, de fato, como uma “terceira via” de
caráter essencialmente humano capaz de concretizar o ontologicamente humano –
“die Menschlichkeit”, como foi definido pelo Pe. Balduino Rambo. Penetrando um
pouco mais a fundo na natureza dessa “linha do meio –Linie der Mitte de Gustav
Gundlach os autores de “O Solidarismo” resumiram-na didaticamente em quatro.
1.
Seu
fundamente natural e real assenta na
dependência recíproca do ser humano com
relação ao outro; seu bem-estar e estar
bem dependem do bem estar dos outros, por causa do mútuo influxo para o
aperfeiçoamento da natural carência
humana.
2.
Como
princípio jurídico social, o Solidarismo
conduz à responsabilidade pelo bem comum. Envolve, pois, um dever ético, o qual
defende e salvaguarda a autonomia dos
indivíduos e associações intra-estatais; subordina os interesses particulares
aos da comunidade; enquadra o direito privado no direito da sociedade, segundo
o princípio de colisão dos direitos, sem
abolir, nem limitar, arbitrariamente, nem reprimir a economia privada. A
solidariedade representa sínteses de
todas as forças individuais se sociais, para colimar os objetivos do Estado, ao
qual cabe zelar pela parte mais fraca da sociedade.
3.
A
solidariedade, como principal formador da sociedade propicia e dá origem, d
acordo com as condições históricas as
necessidades dos diversos segmentos sociais associações, agremiações, etc.) A
solidariedade não favorece nem patrocina interesses unilaterais, porém, como
força cultural atuante, visa, tendo por meta a construção da harmonia social,
na busca do equilíbrio de interesses conflitantes.
4.
Finalmente,
não se pode silenciar que a solidariedade é, também, um princípio criativo, com
fundamento no amor de Cristo, o qual vê no outro um irmão. (Bohnen-Ullmann,
1993, p. 126-127)
Parece
que, com que vínhamos expondo, ficaram suficientemente claras as fronteiras, os
marcos divisórios entre o Coletivismo, o Individualismo e o Soliarismo. São
como água e azeite. Não se misturam. São três vias paralelas, mutuamente
excludentes. No Solidarismo, pretende-se que a justiça garanta os direitos de
todos os cidadãos igualmente, sem privilegiar uma ou outra classe e deixar no
abandono a outra. Da mesma forma, todas as forças e energias, tanto dos indivíduos, quanto das
agremiações privadas e o aparelhamento do Estado, são canalizados em favor do
corpo social como um todo. E o corpo social como um todo sadio, robusto,
progressista e bem aparelhado, favorece na outra ponta, a realização, a
satisfação e a harmonia entre as pessoas. Por essas e outras razões “a tradição
cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade
privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada”
(Laudato si, 93)
Passando
do plano teórico para a prática do Solidarismo, põe-se logicamente a pergunta:
O Solidarismo é viável na prática? É certo que desde a sua proposição como
alternativa de organização social ao Individualismo e Coletivismo, há 170 anos
passados, não consta que algum Estado ou nação como um todo se tenha moldado ao
modelo do Solidarismo. Seus princípios, porém, serviram de referência a um
grande número de associações, agremiações e outras formas de organização social
em não poucos países, entre eles a Alemanha, a Suí e outros. ça, Áustria, Inglaterra,
Itália, Argentina, Brasil
A
fim de não estender-me demais sobre essa
terceira via no contexto dessas reflexões inspiradas na “Eníclica Laudato si”
do Papa Francisco, chamo a atenção de duas associações que comprometeram os
agricultores do sul do Brasil com projetos de desenvolvimento e promoção humana
na primeira metade do século XX. Na concepção dos projetos, na finalidade das
propostas, nos instrumentos escolhidos e nas estratégias utilizadas, inseriu-as na vertente do
“catolicismo social proposto por Wilhelm Ketteler e nas décadas que se seguiram
formuladas num corpo doutrinário coerente por Heinrich Pesch, Gustav Gundlach,
Oswald von Nell Brreuning e o cardeal Höffner. A proposta foi elevada à
categoria de ”Doutrina Social oficial da Igreja”, pelas Encíclicas “Rerum
Novarum” de Leão XIII, “Quadragesimo Anno” de Pio XI, “Mater et Magistra” de
João XXIII e “Populorum Progressio de Paulo VI., além de muitos outros documentos e declarações de autoridades
eclesiásticas.
Como
já lembramos mais acima, ao que consta nenhum Estado moderno tem como
fundamento constitucional o Solidarismo. Ou estão organizados e funcionam sobre
as bases do individualismo ou do coletivismo. Isso não impediu que muitas
organizações, sociedades, associações, agremiações e outras do gênero
adotassem a doutrina do Solidarismo como
referência dos seus objetivos de desenvolvimento social, cultural, econômico,
enfim de promoção humana. Como aqui não nem o lugar nem a ocasião de examinar exaustivamente as
associações a que nos referimos mais acima limitamo-nos a um breve esboço de cada uma.. A primeira
delas foi a “Associação Riograndense de Agricultores”. Fundada em 1900 no
Congresso dos Católicos em São José do Hortêncio. A Associação adotou como guia
mestra o lema “viribus Unitis” – “Somando Forças”. Além do seu caráter
solidário a Associação foi interconfessional e inter étnica, algo surpreendente
para as circunstâncias do começo do século XX. Em poucas palavras a Associação
Riograndense de Agricultores foi pensada para enfrentar e resolver
solidariamente os desafios que se punham para os imigrantes de seus
descendentes, tanto alemães protestantes e católicos, quanto italianos,
poloneses e outros. As iniciativas tomadas e os projetos desenvolvidos até a
transformação em 1909 em sindicato e, com isso, a perda da sua identidade com
organização solidária, encontram-se largamente detalhadas pelo autor dessas
reflexões num livro intitulado: “Somando Forças – O Projeto Social dos Jesuítas no sul do Brasil”
– Edit. Unisinos. 2011.
Depois
de encerrada a breve mas extremamente fecunda história da Associação
Riograndense de Agricultores, as
lideranças católicas, com os jesuítas à sua frente, fundaram em 1912 em
Venâncio Aires a Sociedade União Popular – o “Volksverein für die deutschen
Katholiken”. Como se pode perceber uma associação confessional e étnica mas
essencialmente fundamentada na doutrina social da Igreja e com o mesmo objetivo
de desenvolvimento econômico e promoção humana. Como lema escolheu o “omnibus
omnia” – “um por todos e todos por um”. A Sociedade União popular, inspirada
nos “Volksvereine da Alemanha, Suíça e Áustria, executou projetos de
fundamental importância no plano da saúde e assistência social, na abertura de
novas fronteiras de colonização, na educação, nas diversas formas de
cooperativismo, com destaque para o cooperativismo de poupança e empréstimo,
conhecido como “Caixas Rurais”, até o começo da década de 1960. Considerando a
temática de que se ocupa a encíclica Laudato si, já no começo da década de 1930
a Sociedade União Popular propôs a
formação de uma cooperativa para reflorestar
áreas degradas pelo uso. A história e os feitos da Sociedade União
Popular foram exaustivamente analisadas e detalhadas, na obra acima citada:
“Somando Forças”.
Depois
de analisar e avaliar a doutrina social da Igreja sobre o direito à propriedade
e seus limites e as duas modalidades concretas praticadas pelos pequenos
agricultores no sul do Brasil na primeira metade do século XX, fechamos a
questão da propriedade privada com a observação da Encíclica Laudato si.
O rico e o pobre tem igual
dignidade, porque “quem fez a ambos foi o Senhor” (Pr 22,2). “Ele criou o pequeno e o pequeno” (Sab 6, 7) e “faz com que o sol se levante os bons e os
maus” (Mt 5,45). Isto tem consequências
práticas como explicitaram os bispos do Paraguai: Cada camponês tem
direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o
seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança
existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício
não seja ilusório mas real. isto significa que, além do título de propriedade,
o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e
acesso ao mercado. (Laudato si, 94)
Sendo
assim, o direito à propriedade privada vem a ser o pressuposto para suprir
decentemente as necessidades do proprietário e sua família. Isso confere segurança
e estímulo para produzir e realizar-se como pessoa, amparado pela lei e as
instâncias burocráticas responsáveis pelo bom andamento do desenvolvimento
econômico, social e espiritual da população. Mas, tomando sempre em
consideração que “o meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a
humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para
administrar em benefício de todos”. (Laudato si, 95).