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Algumas reflexões

Analisando com um pouco mais de atenção o que significa a “Natureza como um fato objetivo”, percebe-se que esse conceito, coincide na essência com o de “Sistema” de Ludwig von Bertalanffy e o de “Biologos” de Francis Collins. Por vias de aproximação diferentes os três cientistas chegaram a mesma conclusão  final. Os resultados dos modelos matemáticos utilizados por  Bertalanffy, as descobertas genéticas e o mapeamento do genoma humano por Collins, a observação dos ecossistemas  naturais e humanizados de Wilson, convergem  para o consenso de que a natureza é um sistema, a natureza é uma unidade biológica, a natureza é um fato objetivo. Esses três pesquisadores representam o contexto em que se pratica ciência de alto nível sem nenhum compromisso com alguma filiação filosófica e ou religiosa. Apesar disso Collins, depois de  passar pela experiência do agnosticismo e do ateísmo, terminou como crente convicto na existência de Deus; Wilson declara-se um “humanista secular”; Bertalanffy não declara suas convicções filosóficas, mas dá a entender que pelo menos admite algo nessa direção ao incluir em sua concepção sistêmica todas as áreas do conhecimento.
Edward Wilson, além de fazer ciência de alto nível alimenta uma preocupação paralela de fundamental importância para as circunstâncias atuais. Quer colaborar com os esforço generalizado que está sendo feito em todos os níveis e das formas mais diversas, para enfrentar o avanço desenfreado da deterioração da natureza. Na sua obra “A Criação – como salvar a vida na terra”, persegue um nítido propósito pedagógico, isto é, oferecer o fundamento científico sólido e coerente para servir de base para as ações concretas a serem postas em prática na cruzada pela preservação do meio ambiente.

Mais.  Acima já apontamos para a intenção expressa do autor de, na forma de um diálogo com um pastor fundamentalista, encontrar um caminho comum entre a Ciência e a Fé para chegar a um consenso sobre o que é a Natureza e, partindo dai, sugerir estratégias da ação fundamentadas e consistentes. Para tanto é preciso ter em vista, em primeiro lugar, que a “Natureza é uma realidade objetiva”, um fato objetivo, o resultado final de uma grande síntese. Parece que essa dimensão da Natureza  ficou suficientemente clara nas considerações feitas até aqui. Entretanto, o “fato objetivo” que esse “ente” que é a Natureza é, é surpreendentemente limitado e frágil. “O Homo sapiens é uma espécie confinada a um nicho extremamente pequeno”. (A Criação, p. 35). Para Wilson esse é o “Primeiro Princípio da Ecologia Humana”. Depois de formulado esse Primeiro Princípio, chama a atenção às duas dimensões que caracterizam a espécie humana: a mente e o corpo. Os voos da mente não são limitados nem pelo tempo nem pelo espaço. No tempo a mente é capaz de retroceder bilhões de anos e imaginar como foi o começo do universo, como a energia original  deu origem  a tudo que se pode encontrar em nossa volta; como se formaram os continentes, os mares e suas ilhas; como em um dado momento sugiram as primeiras formas de vida; como a evolução   povoou a terra com  incontáveis nano- micro- e macro espécies vivas de plantas e animais; como num determinado momento entra em cena o Homo sapiens; como os nossos antepassados, na condição de caçadores e coletores, passaram dezenas e dezenas de milhares de anos limitados pela fontes de alimentação;  como  penosamente  desenvolveram as primitivas tecnologias de lascar  pedras, instalar abrigos e confeccionar vestes; como se organizaram em sociedades sedentárias ou nômades; como construíam o seu imaginário mágico e/ou religioso; como foi a evolução da história desde os povos agricultores e caçadores do neolítico até hoje. 

Se a mente humana é capaz de percorrer os incontáveis milênios do passado do universo e do nosso planeta terra, também não encontra limites para se movimentar livremente no universo em que estamos confinados. Numa fração de segundos a nossa mente ultrapassa os confins do sistema solar, cruza todas as galáxias e vai em busca dos limites do universo. Com a mesma velocidade percorre continentes, florestas, desertos, mares,  oceanos e regiões polares, ou desce pela cratera de um vulcão até as entranhas da terra. Resumindo, não há barreiras nem temporais nem espaciais capazes de parar a mente humana. Para a mente humana o tempo e o espaço não oferecem barreiras. Quem sabe é por aí que temos um argumento em favor da imortalidade. Se a mente é capaz de ultrapassar as limites impostos pelo tempo e o espaço, ela não necessita necessariamente de um corpo limitado pelo tempo e o espaço. O problema é o corpo. Seu universo de movimentação é inversamente proporcional ao da mente. Sua trajetória de vida consuma-se nos limites de “uma bolha microscópica de restrições físicas”. (A Criação, p. 36).  Wilson resumiu essa realidade nos termos que seguem.

A Terra oferece uma bolha auto regulada que nos sustenta indefinidamente, sem nenhum raciocínio ou artifício da nossa parte. Esse escudo de proteção é a biosfera – a totalidade da vida, criadora  de todo ar, purificadora de todas as águas, administradora de todo o solo; mas ela é, em si  mesma, uma frágil membrana que mal se consegue se agarrar à superfície de planeta. Da sua delicada saúde nós dependemos para cada momento da nossa vida. (...) nascemos aqui como espécie, somos intimamente adaptados às suas condições severas – não a todas, apenas àquelas reinantes em alguns regimes climáticos encontrados em certas partes da área terrestre. (Wilson, 2008,  p. 36),

A permanência temporária do homem, porém, é possível encerrado em bolhas artificiais, que lhe possibilitam viver em ambientes climáticos extremos aqui na terra, como também na lua e futuramente quem sabe em Marte ou outros  planetas do sistema solar. Acontece que para realizar essas façanhas é obrigado a se confinar em cápsulas nas quais estão reproduzidas as condições climáticas da terra. Qualquer falha na manutenção desse artifício, significa a morte certa dos inquilinos. E há um segundo detalhe a ser considerado. Mesmo que tecnicamente seja viável mandar para a Lua  ou, quem sabe para Marte, os equipamentos necessários para montar um acampamento permanente, ou como é o sonho de não poucos cientistas, instalar uma colônia, a própria condição humana impede uma permanência mais longa nessas condições totalmente artificiais. Mesmo física e tecnicamente possível, psicologicamente se tornaria insuportável. Não nos iludamos, a querência do homem é o planeta terra e mesmo este só em parte. A verdade é que a evolução equipou o homem para viver e sobreviver na frágil, porém, espantosamente complexa e finamente calibrada biosfera. Essa realidade  deveria servir de advertência para que não passe se dos limites ao se servir dos recursos que a Natureza  põe à disposição.  

Durante todo o Paleolítico, o período mais longo da história – desde que surgiu o homem até aproximadamente 20000 anos – ele pouco ou nada ameaçou os ecossistemas naturais. Caçando, pescando e coletando raízes, tubérculos e frutas, sua agressão ao meio ambiente não foi maior do que das manadas de búfalos nas pradarias do Mississipi ou as matilhas de lobos do hemisfério norte ou dos leões nas savanas da África. Abrigava-se em cavernas e outros refúgios naturais, protegia-se com peles e folhas ou andava nu nos ambientes de clima mais quente. Antes da descoberta do fogo consumia os alimentos in natura como os animais. Acontece que o homo sapiens não era uma espécie zoológica igual às demais. Em seu cérebro faiscava a centelha da inteligência reflexa. Desde que surgiu em alguma savana da África ou em qualquer outro ambiente da terra, o primeiro  homem, sua relação com  o mundo natural, foi tomando um rumo e assumindo características ausentes nas demais espécies, por mais que seu DNA  se aproxime, por ex., ao do chimpanzé – 97%. A dinâmica ímpar que levou o homem  desde o começo a impor-se  ativamente aos desafios do entorno geográfico, tem o seu motor na inteligência reflexa, essa maravilhosa prerrogativa que faz com que  seja capaz de “saber os porquês do seu saber” ou ter “conhecimento” de si mesmo, enquanto as demais  espécies apenas “sabem” ou “conhecem”. Munido com essa ferramenta   única, os seres  humanos  não se limitavam ao ato instintivo de caçar, coletar ou abrigar-se em refúgios disponíveis em sua volta. Observando a natureza, examinando e comparando  os dados, fatos e fenômenos que encontrava, tirando conclusões sobre o que o rodeava, deu os primeiros passos que lançaram as bases sobre as quais evoluíram as culturas e civilizações.


Desde muito cedo caçadores e coletores começaram a fabricar instrumentos de pedra lascada, osso, chifre e madeira. O mais antigo vem a ser o “machado de punho” lascado de sílex. Tosco, pouco eficiente, servindo a muitos usos mas para nenhum especializado, foi o protótipo do qual evoluíram as ferramentas para cortar, cavar, bater, arremessar, além de muitos outros usos. É legítimo deduzir que paralelamente à  indústria lítica desenvolveu-se, aperfeiçoou-se e diversificou-se a indústria de ferramentas e utensílios a partir da madeira, chifre e osso como matéria prima. Por uma  razão muito simples os vestígios dessa indústria fica evidente bem depois da indústria lítica. Não resistem a milênios de exposição às intempéries e demais agentes de degradação. No andar e evoluir progressivo dessa história, a descoberta do fogo com suas múltiplas utilidades, veio a imprimir um dinamismo fora do comum com um leque de múltiplas novas oportunidades de sobrevivência  e progresso. Não parece exagerado falar numa autêntica revolução operada pela incorporação do fogo no quotidiano do paleolítico. Pouco importa se  descoberta do fogo aconteceu com uma erupção vulcânica, uma queda de raio, batendo um no outro dois fragmentos de sílex, por fricção, etc. O fato é que ele significou uma poderosa revolução no quotidiano do homem paleolítico, abrindo um leque sem fim de novas opções de vida e sobrevivência. O reflexo mais importante fez-se sentir no que para a sobrevivência é o mais fundamental: o alimento. Um série de recursos vegetais que precisam ser cozidos ou assados para se tornarem comestíveis puderam ser aproveitados. Raízes, tubérculos, frutas não aproveitáveis in natura, passaram a integrar a rotina do cardápio diário. Algumas delas tornaram-se a base da alimentação de povos inteiros e determinaram o perfil da sua cultura alimentar. A mandioca e o inhame passaram, por assim dizer, a significar abundância ou carestia em não poucos grupos humanos na América do Sul ou nas ilhas tropicais do Pacífico. A carne assada  melhora em muito  o sabor e torna-se mais digesta do que a  crua. Com o auxílio do fogo abriram-se novas e importantes perspectivas para a expansão territorial do homem.  Inesgotáveis  reservas de caça povoavam as regiões frias da Europa, Ásia e América. A permanência dos caçadores do paleolítico, sobretudo no inverno, tornou-se possível com o fogo aquecendo as cavernas e outros abrigos que lhe serviam de moradia. Pela múltiplas aplicações práticas o fogo não tardou em fazer parte do imaginário mágico e religioso desses povos. O culto ao fogo é um prática que pode ser observada de alguma forma em todas culturas de que se tem notícia na história.

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Vivências de Edward Wilson

Mas  voltemos ao que Edward Wilson nos tem a apresentar no seu memorável  livro “A Criação”. Ele relata suas experiências em contato com a complexidade dos ecossistemas mais variados. Interessou-se de maneira toda especial pela micro área do parque nacional do “Boston Harbor Islands”. Desde meados do século XVII o porto de Boston foi uma das portas de entrada mais movimentadas dos Estados Unidos. A movimentação constante de navios vindos de todas as partes do mundo alterou por completo os ecossistemas das suas 34 ilhas. A flora e a fauna originais foram seriamente  danificados pela poluição provocada pelos navios e suas cargas, somados aos dejetos da cidade de Boston despejados na baia do porto. A tudo isso somaram-se as dezenas de espécies de animais e plantas exóticas, procedentes dos cinco continentes. Até 1990 as ilhas do porto de Boston pouca ou nenhuma atração exerciam sobre os moradores da cidade e arredores. A reviravolta para melhor deu-se naquela década. As águas servidas da metrópole passaram por um moderno e eficiente sistema e tratamento antes de serem liberadas na baía. O resultado foi surpreendente. Em questão poucos anos o Parque Nacional do Porto de Boston voltou a ser uma ecossistema  natural semelhante ao que fora 300 anos antes. Antes ignorado pelos moradores da cidade e pelos turistas, suas três dezenas de ilhas oferecem hoje possibilidades disputadas de lazer. Os moluscos repovoaram o leito da baía. Os peixes de grande porte como a anchova, o robalo, o boto e a foca estão de volta. Próximo às ilhas mais exteriores até a baleia jubarte já foi avistada. Além de oferecer ambientes de lazer e recreio disputados a peso de ouro, as ilhas antes ignoradas, desempenham um papel importante como laboratório de pesquisa e aulas ao ar livre para todos os gostos e níveis de formação. Por essas e outras razões Wilson instalou sua tenda de biólogo naquele ambiente privilegiado. O depoimento que segue mostra sem reticências o tipo de biólogo, e porque não, de autêntico sábio que ele é.

(...) fiquei atraído pela perspectiva de ter um laboratório natural e uma sala de aula bem à minha porta – num local que também servisse  a 7 milhões de habitantes da região. E o melhor – aqui estava uma oportunidade para desgrudar as crianças da cidade da televisão e do computador e envolve-las em uma aventura educacional na vida real. Havia  o potencial para fazer uma introdução prática à ciência e, o que não é pouco, ajudar a contrabalançar as atividades de alta tecnologia, tão intimidadoras, da universidade de Harvard e do MIT, que ficam nas proximidades. A mensagem é a seguinte: para fazer ciência de primeira não é preciso começar com jalecos brancos e rabiscos no quadro-negro. (Wilson, 2008,  p. 29)

O parque das ilhas do porto de Boston é um magnífico laboratório de como a natureza reage diante de uma prolongada presença constante e profundamente invasora do homem. Depois de três séculos de saída e entrada ininterrupta de navios, procedentes dos lugares mais impossíveis da terra, aconteceu a extinção ou quase extinção de  milhares de espécies nativas, animais e plantas. De outro lado com os navios e suas cargas povoadores exóticos em grande número terminaram por desfigurar os ecossistemas da baía do porto e suas ilhas. Evidentemente os danos causados à vida original e a intromissão de espécies exóticas obrigou a natureza a reconstruir um novo ecossistema no qual participaram e participam ainda as espécies originais que sobreviveram, associadas às exóticas contrabandeadas pelo intenso trânsito marítimo. Devido a essas características, cientistas e estudiosos interessados nesse tipo de fenômeno encontram no parque das ilhas do porto de Boston, um laboratório perfeito. Sem necessidade de simulações ou o recurso a complexos modelos matemáticos, encontram as condições quase ideais para observar o acontecer da dinâmica da natureza submetida à intromissão de agentes naturais e estranhos que terminam por preservar, mas reorientando, as comunidades de seres vivos. Wilson declarou-se, neste caso e em muitos outros, como um defensor entusiasmado do estudo da natureza armando a tenda nas entranhas de uma floresta tropical, numa ilha perdida no meio do oceano, numa savana cujos limites são o horizonte, ou nas intermináveis florestas de coníferas da taiga canadense, do Alasca, da Sibéria ou da Finlândia. O valor e o papel dos laboratórios de pesquisa em universidades e institutos de pesquisa, não podem ser dispensados, pois as tecnologias de investigação, os modelos matemáticos que desenham são fundamentais para o aprofundamento quantitativo do conhecimento científico.  Mas no momento em se trata de avaliar qualitativamente os fenômenos naturais os laboratórios e os modelos matemáticos já não são suficientes. É preciso percorrer florestas, campos naturais, montanhas, ilhas e desertos, captar pelos cinco sentidos as cores, os sons,  as sensações e os odores que emanam da natureza em pessoa, para começar a farejar, a perceber e a intuir o que faz de uma paisagem uma fisionomia, os sons da natureza uma sinfonia, a floresta uma catedral, o carvalho uma personalidade, cada ser vivo uma maravilhosa obra de arte, as flores símbolos ou uma araucária com os galhos erguidos parecendo em atitude de oração. Em outras palavras é preciso imergir de corpo e alma na natureza para intuir o que ela na verdade é e o que significa. Só então as pessoas se percebem como partes e partícipes do mundo que lhes dá vida material e sugere os símbolos do seu imaginário e da sua espiritualidade. Tanto para os cientistas quanto para  as pessoas comuns que vivem esse tipo de experiência a natureza assume as proporções de uma dádiva preciosa que deve estar de alguma forma à disposição do “lazer e recreio” do povo como se lê no texto da lei que criou os parques e reservas naturais dos Estados Unidos. E o passo seguinte nada mais é do que uma consequência lógica do que vimos refletindo até aqui. De alguma forma a natureza é um bem comum, porque somos também rebentos dela. Dela dependemos para a vida e a morte. A natureza é um bem comum e, portanto, sua preservação,  sua recuperação e seu uso e fruto uma dádiva que pertence a todos, independente de cor, raça, ou  condição social. Desta forma o acesso aos benefícios que a natureza  oferece é um direito de todos e por isso mesmo esse usufruir implica numa postura ética na medida em que a exclusão pelo motivo que for, viola os direitos fundamentais da pessoa humana.

Às experiências e vivências com o as ilhas no porto de Boston, Wilson somou muitas outras vividas em ecossistemas naturais e ou humanizados. Passou uma temporada nas “Florida Keys”, uma sequência de ilhas no sul da Flórida, vasculhou as florestas tropicais da Costa Rica e do Brasil e subiu até o pico mais alto  do maciço de Sarawget na Nova Guiné. Estudou as diferenças profundas entre um ecossistema natural da floresta  virgem com o vizinho que cedeu lugar a pastagens depois da derrubada a floresta original em Rondônia. Somado a tudo isso foram objeto do seu interesse e observação as formigas e demais insetos e de modo especial a micro e nano fauna e flora encontráveis até nos recantos mais improváveis e invadidos pelo homem. E como conclusão de todas essas observações e milhares de outros estudos  durante seus mais de 50 anos de pesquisa e docência, resumiu as conclusões num breve parágrafo que vale por  um testamento.


Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão do mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade objetiva tal como a “Natureza”. Para eles, trata-se de uma dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos mas já atravessei tantas fronteiras nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. (Wilson, 2008, p. 31)

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A   dimensão da questão ambiental

Para Wilson há três empecilhos, ou se quisermos três desafios a considerar quando se trata de encarar a questão ambiental com seriedade, honestidade e objetividade. O primeiro, refere-se à compreensão que as pessoas quando falam da natureza ou do meio ambiente. Toda pessoa razoavelmente informada tem consciência de que se trata de um assunto de grande importância.  Por isso mesmo não tem consciência das razões porque o cuidado com o meio físico-geográfico é de tamanho significado e porque são corresponsável pela sua preservação. Poucos  se dão conta de que lidamos com um assunto que afeta  a própria sobrevivência da espécie humana. Menor é ainda o número que enxerga no zelo para com a natureza um desafio ético-moral pelo fato de os recursos naturais serem um bem comum. Como tal a sua posse e uso tem como limite o direito do uso e fruto dos bens de todos os tipos que ela oferece.  O segundo problema que se  põe tem a ver com o primeiro e encontra-se na raiz do conhecimento precário, superficial e distorcido que muitas  pessoas tem da natureza. Acontece que no ensino em todos os níveis, especialmente no fundamental e médio, o tema, se é contemplado, recebe um tratamento  pouco profundo porque outras disciplinas são ou parecem mais importantes. Sobre essa base precária de informações o assunto ecologia, preservação e outros termos que são correntes, oferece facilmente munição para todo o tipo de manipulação ideológica, política e simplesmente interesseira. A enorme complexidade que os estudos e pesquisas no campo da biologia vem revelando, representa  o terceiro motivo porque as pessoas comuns normalmente não tem um conhecimento suficientemente abrangente e profundo que lhes permita uma avaliação crítica das questões ambientais. Os avanços no campo da biologia são tamanhos que até especialistas na área tem dificuldade em manter-se atualizados com todas as principais novidades que brotam dos laboratórios de pesquisa.
A solução para superar as três dificuldades: ignorância em relação ao ambiente natural,  formação precária das pessoas no assunto e a enorme complexidade do problema podem ser superadas, conforme Wilson, está “em reformulá-las e condensá-las num só problema”. (A Criação, p. 22), e conclui a reflexão com uma proposta ao seu interlocutor.

Pastor, espero que a sua opinião sobre o assunto seja de que toda a pessoa instruída deveria saber alguma coisa sobre a questão. Tanto o professor como o aluno vão se beneficiar ao reconhecer que a Natureza viva abriu um vasto caminho até o coração da própria ciência, que a amplidão da nossa vida e do nosso espírito depende da sobrevivência da Natureza. É necessário compreender e discutir, sobre um terreno comum, este princípio: como fazemos parte da Criação, o destino da Criação é o destino da humanidade. (Wilson, 2008,  p. 22).

Depois de sinalizar o caminho a trilhar para uma correta compreensão da natureza, tomar as atitudes certas  e escolher os meios adequados, nos demais capítulos do livro “A Criação”, Wilson mostra como as pesquisas na área da Biologia, levam à conclusão de que a Natureza resultou de uma grandiosa síntese, num “Fato Objetivo”, como ele próprio a definiu. Bertalanffy fala em “Sistema” e Collins em “BioLogos”, Teilhard de Charden em “Unidade na complexidade”. No fundo o sentido é o mesmo. Para se convencer de que a natureza é um “Fato”, Wilson apoiou-se em conclusões que foi tirando do resultado de suas pesquisas em laboratório, mas principalmente observando ecossistemas naturais e humanizados.  
Wilson começa sus reflexões sobre a natureza alertando para  o fato de que os dados objetivos de que a Biologia em todas as suas ramificações dispõe de momento, são totalmente insuficientes para se fazer uma ideia aproximada do que seja a natureza. Sua complexidade ultrapassa qualquer tentativa de abarcá-la. “Se parece ser impossível conhecer Deus, o mesmo se dá com a maior parte da biosfera”. (A criação, p. 23). Os  animais domésticos propriamente ditos e aqueles, embora selvagens, mas familiares ao homem, são incapazes de oferecer dados mínimos, nem quantitativos, muito menos qualitativos, para desenhar um retrato da natureza que corresponda à realidade objetiva, nem mesmo nos seus traços mais essenciais. De outra parte as simulações mais refinadas dos processos vitais produzidas em laboratório somados a modelos matemáticos, estão a quilômetros de distância daquilo que efetivamente acontece na multiplicidade e nos incontáveis níveis de complexidade que a biosfera oferece. Todas a tentativas de criar em laboratório formas de vida, mesmo as mais rudimentares como as arqueobactérias, foram até agora frustradas. “Novos mundos e descobertas intermináveis se mantêm à espera na Natureza, e entre elas a solução do mistério dos mistérios, o significado da vida humana”. (A Criação, p. 23). Donde viemos, o que somos e para onde vamos?. Esse quadro coloca-nos diante de um desafio de bom tamanho, no momento em que nos arriscamos a condensar num conceito conciso, porém, compreensivo, do que seja a Natureza. Wilson formulou assim esse conceito:  “A Natureza é aquela parte do ambiente original e de suas formas de vida  que permanece depois do impacto humano. Ou – Natureza é tudo aquilo no planeta Terra que não necessita de nós e pode existir por si só” (A Criação, p.23).
Esta, ou qualquer outra definição que procura sintetizar o que é a Natureza, encontra suas dificuldades por uma série de razões. Acontece que a interferência do homem na Natureza e a humanização das paisagens mais remotas, avançou a tal ponto que pouco resta das suas características originais. Sendo assim uma definição como a que acabamos de citar, para muitos não tem grande serventia prática. Isto é, caracteriza uma terra que existiu até que, durante o neolítico, o agricultor e o criador de animais, deram início à humanização progressiva dos ambientes naturais. Os vales de aluvião dos rios e as florestas  nas latitudes temperadas e subtropicais, tiveram sua cobertura vegetal original substituída pelas plantações. as aldeias e cidades de agricultores, interligados por vias de comunicação cortando a paisagem em todas direções. Passados 15000 anos encontramo-nos diante de uma realidade que preocupa e obriga a refletir. Hoje será difícil, senão impossível encontrar uma área geográfica de porte razoável nunca pisada pelo homem.  Quem sabe uma ilha, ou regiões remotas do Alasca, do Canadá, ou da Sibéria ou qualquer outro ponto extremo de um continente ou no interior deles, ou nas montanhas mais difíceis de escalar. De meio milênio para cá a navegação marítima desencadeou uma verdadeira febre para conhecer novas terras, novos continentes, novos mundos com seus habitantes e culturas “exóticas”, suas belezas naturais e, principalmente, seus recursos e riquezas naturais. A revoada de viajantes conquistadores, comerciantes, aventureiros, cientistas, missionários, emigrantes, colonizadores que desembarcou   nas praias mais remotas do mundo, teve o seu clímax no século XIX e começo do século XX. De então para cá  a humanização da paisagem com sua face positiva e negativa avançou até os rincões mais remotos e mais impossíveis do planeta terra. As gigantescas florestas tropicais, os imensos desertos, as savanas, os campos naturais, as estepes, as pradarias, os pampas, as cordilheiras de montanhas, as florestas subpolares, as tundras, as ilhas mais remotas dos oceanos e até os polos da terra, já foram pisados pelo homem. As  pegadas que deixou estão impressas em toda a parte. Sua passagem e sua instalação definitiva  em metrópoles e regiões sempre mais densamente povoadas mascaram os vestígios da natureza original que, cá e lá, conseguem subsistir a muito custo. Nuvens de emissões de gás carbônico toldam o firmamento e o odor do asfalto roubou o lugar da hálito gostoso exalado pela floresta virgem e os campos cobertos de flores silvestres. Somam-se a isso as centenas de milhões de toneladas de lixo industrial e dejetos domésticos que não poupam nem os rios, nem os mananciais de água subterrânea, nem os mares e oceanos, nem as regiões mais remotas perto dos polos. A humanização da grande maioria dos ecossistemas naturais trouxe consigo a ameaça da extinção e da extinção de fato da assim chamada megafauna, isto é, animais com peso superior a 10 quilos. As manadas sem fim de mastodontes, elefantes peludos, varas incontáveis de porcos javalis, milhões de búfalos pastando livres nas pradarias americanas, não passam de registros guardados pela memória histórica fixada porartistas plásticos do paleolítico ou posteriores. Há 12000 anos a fauna das planícies americanas era mais rica do que a da África. Apesar de todo esse panorama desolador que ficou na esteira da intervenção implacável do homem, a natureza resiste. Wilson observa a respeito.

Em seu estado mais puro, ela existe em locais que ainda são chamados legitimamente de áreas naturais intactas. Em linhas gerais, uma área natural em plena escala, com tamanho adequado para sustentar a megafauna, é definida como um agregado relativamente grande e não perturbado de habitats contíguos. Tal como é especificado pela Conservação Internacional (CI), em um estudo recente, trata-se de uma área de 10000 quilômetros quadrados (um milhão de hectares) ou mais, da qual pelo menos 70% contam com vegetação natural. Domínios dessa magnitude abrangem as grandes florestas tropicais da bacia amazônica, da bacia do Congo e a maior parte da ilha da Nova Guiné, além da taiga – o cinturão de florestas, sobretudo de coníferas, que se estende pelo Norte da América e continua pela Sibéria até a Fenoscândia (Finlândia, Suécia e Noruega). Áreas naturais de um tipo muito diferente sãos os grandes desertos da Terra, as regiões  polares, o alto-mar e o leito dos oceanos em grandes profundidades (em contraste são poucos os deltas de rios e águas costeiras que permanecem em seus estado original). (Wilson, 2008,  p. 25)

Somados a esses ecossistemas de grande porte, em condições de salvar da extinção o que ainda subsiste de megafauna  nos termos acima caracterizada, são de suma importância ecossistemas menores como as definidas pelo U.S. Wilderness Act de 1964. Esse documento as define como “livres do homem, onde o próprio homem é um visitante que ali não  permanece”. Essa lei teve como resultado concreto a destinação de 9,1 milhões de acres para “o uso e desfrute do povo americano, de tal maneira que sejam deixados em bom estado para  o futuro uso e desfrute”. O conceito  “áreas livres”, no entender de Wilson, expressa muito bem o que se entende por natureza virgem, por natureza original, por área natural  na qual o homem é apenas um hóspede em busca de um pouco de tranquilidade, sossego, harmonia e, porque não, pela necessidade atávica, de reencontrar suas raízes mais remotas e mais profundas como espécie biológica. Por mais improvável que possa parecer à primeira vista, mesmo em meio aos aglomerados urbanos  mais artificiais, sob os vãos dos viadutos, nos parques, jardins, gramados, e nesgas de terra livres na beira do asfalto, encontramos “áreas livres”. Evidentemente  são incapazes de hospedar seres vivos de maior porte como mamíferos, aves, e florestas. Mas abrigam milhões e bilhões de pequenos seres vivos  e micro organismos  medindo menos do que alguns milímetros. Nessas micro áreas naturais eles vivem e se multiplicam livremente e sem se  importarem com os homens e sua parafernália civilizatória. Acontece que essas micro áreas naturais são de importância fundamental para o equilíbrio e a saúde da natureza. Os dados que Wilson apesenta para comprovar  esse fato, são impressionantes.

Cada metro cúbico de terra e de húmus é um mundo que pulula com centenas de milhares dessas criaturas, representando centenas de espécies. Junto a elas existem micróbios em quantidade e diversidade ainda maiores. Em uma só gama de terra, ou seja, menos de um punhado, vivem cerca de 10 bilhões de bactérias, pertencentes a até 6 mil espécies diferentes. (Wilson, 2008,  p. 26).


A existência desse  micro e nano mundo de seres vivos numa quantidade e diversidade impressionante, induz a reflexões de fundo sobre os potenciais sem limites de que a natureza é dotada. Vale a pena destacar alguns. O primeiro, chama a atenção ao fato de que a macro fauna e flora que chamam a atenção por constituírem a fisionomia visível dos ecossistemas, tanto em número quanto em diversidade, representam uma parcela mínima e pelo visto a menos determinante na composição e no equilíbrio da biosfera. Esse micro e nano universo de seres vivos que não conta para o homem comum por  serem invisíveis é, em última análise, o responsável para que animais e vegetais superiores sejam sequer viáveis. Sem esse mundo invisível a terra não passaria de mais um planeta inóspito e sem encanto. Esse universo invisível que fervilha debaixo de nossos pés mesmo nos lugares mais impossíveis é o chão sobre o qual e do qual as  paisagens vivas vivem e sobrevivem. E numa suposição extrema em que, por uma razão qualquer toda porção da biosfera visível fosse exterminada, a vida continuaria  com a prodigiosa abundância e variedade invisíveis de antes. E se a intuição ou o faro dos biólogos for correto, depois de bilhões de anos, as leis da evolução revestirão a terra com um novo manto de florestas, savanas, campos naturais e pradarias e nelas uma nova macro fauna e porque não uma nova humanidade. Uma amostra dessa incrível capacidade de a natureza recuperar sistemas seriamente danificados temos no desastre nuclear de Chernobil. Seus efeitos sobre vastas áreas em volta do reator acidentado foram catastróficas. O comprometimento da vida animal, vegetal e humana não chegou a ser exatamente dimensionada. Depois e 30 anos a região interditada e entregue a sua própria capacidade de sanar os danos causados pela explosão nuclear, voltou praticamente à normalidade de um ecossistema natural, com a vantagem da interdição do acesso de pessoas. Vale mencionar também as simulações feitas para imaginar a volta da natureza original depois do desaparecimento da humanidade. Com o título “A Terra sem Ninguém”, resultou num interessante e ilustrativo documentário há algum tempo exibido  na televisão.