Edward Wilson (1929) - 4

Vivências de Edward Wilson

Mas  voltemos ao que Edward Wilson nos tem a apresentar no seu memorável  livro “A Criação”. Ele relata suas experiências em contato com a complexidade dos ecossistemas mais variados. Interessou-se de maneira toda especial pela micro área do parque nacional do “Boston Harbor Islands”. Desde meados do século XVII o porto de Boston foi uma das portas de entrada mais movimentadas dos Estados Unidos. A movimentação constante de navios vindos de todas as partes do mundo alterou por completo os ecossistemas das suas 34 ilhas. A flora e a fauna originais foram seriamente  danificados pela poluição provocada pelos navios e suas cargas, somados aos dejetos da cidade de Boston despejados na baia do porto. A tudo isso somaram-se as dezenas de espécies de animais e plantas exóticas, procedentes dos cinco continentes. Até 1990 as ilhas do porto de Boston pouca ou nenhuma atração exerciam sobre os moradores da cidade e arredores. A reviravolta para melhor deu-se naquela década. As águas servidas da metrópole passaram por um moderno e eficiente sistema e tratamento antes de serem liberadas na baía. O resultado foi surpreendente. Em questão poucos anos o Parque Nacional do Porto de Boston voltou a ser uma ecossistema  natural semelhante ao que fora 300 anos antes. Antes ignorado pelos moradores da cidade e pelos turistas, suas três dezenas de ilhas oferecem hoje possibilidades disputadas de lazer. Os moluscos repovoaram o leito da baía. Os peixes de grande porte como a anchova, o robalo, o boto e a foca estão de volta. Próximo às ilhas mais exteriores até a baleia jubarte já foi avistada. Além de oferecer ambientes de lazer e recreio disputados a peso de ouro, as ilhas antes ignoradas, desempenham um papel importante como laboratório de pesquisa e aulas ao ar livre para todos os gostos e níveis de formação. Por essas e outras razões Wilson instalou sua tenda de biólogo naquele ambiente privilegiado. O depoimento que segue mostra sem reticências o tipo de biólogo, e porque não, de autêntico sábio que ele é.

(...) fiquei atraído pela perspectiva de ter um laboratório natural e uma sala de aula bem à minha porta – num local que também servisse  a 7 milhões de habitantes da região. E o melhor – aqui estava uma oportunidade para desgrudar as crianças da cidade da televisão e do computador e envolve-las em uma aventura educacional na vida real. Havia  o potencial para fazer uma introdução prática à ciência e, o que não é pouco, ajudar a contrabalançar as atividades de alta tecnologia, tão intimidadoras, da universidade de Harvard e do MIT, que ficam nas proximidades. A mensagem é a seguinte: para fazer ciência de primeira não é preciso começar com jalecos brancos e rabiscos no quadro-negro. (Wilson, 2008,  p. 29)

O parque das ilhas do porto de Boston é um magnífico laboratório de como a natureza reage diante de uma prolongada presença constante e profundamente invasora do homem. Depois de três séculos de saída e entrada ininterrupta de navios, procedentes dos lugares mais impossíveis da terra, aconteceu a extinção ou quase extinção de  milhares de espécies nativas, animais e plantas. De outro lado com os navios e suas cargas povoadores exóticos em grande número terminaram por desfigurar os ecossistemas da baía do porto e suas ilhas. Evidentemente os danos causados à vida original e a intromissão de espécies exóticas obrigou a natureza a reconstruir um novo ecossistema no qual participaram e participam ainda as espécies originais que sobreviveram, associadas às exóticas contrabandeadas pelo intenso trânsito marítimo. Devido a essas características, cientistas e estudiosos interessados nesse tipo de fenômeno encontram no parque das ilhas do porto de Boston, um laboratório perfeito. Sem necessidade de simulações ou o recurso a complexos modelos matemáticos, encontram as condições quase ideais para observar o acontecer da dinâmica da natureza submetida à intromissão de agentes naturais e estranhos que terminam por preservar, mas reorientando, as comunidades de seres vivos. Wilson declarou-se, neste caso e em muitos outros, como um defensor entusiasmado do estudo da natureza armando a tenda nas entranhas de uma floresta tropical, numa ilha perdida no meio do oceano, numa savana cujos limites são o horizonte, ou nas intermináveis florestas de coníferas da taiga canadense, do Alasca, da Sibéria ou da Finlândia. O valor e o papel dos laboratórios de pesquisa em universidades e institutos de pesquisa, não podem ser dispensados, pois as tecnologias de investigação, os modelos matemáticos que desenham são fundamentais para o aprofundamento quantitativo do conhecimento científico.  Mas no momento em se trata de avaliar qualitativamente os fenômenos naturais os laboratórios e os modelos matemáticos já não são suficientes. É preciso percorrer florestas, campos naturais, montanhas, ilhas e desertos, captar pelos cinco sentidos as cores, os sons,  as sensações e os odores que emanam da natureza em pessoa, para começar a farejar, a perceber e a intuir o que faz de uma paisagem uma fisionomia, os sons da natureza uma sinfonia, a floresta uma catedral, o carvalho uma personalidade, cada ser vivo uma maravilhosa obra de arte, as flores símbolos ou uma araucária com os galhos erguidos parecendo em atitude de oração. Em outras palavras é preciso imergir de corpo e alma na natureza para intuir o que ela na verdade é e o que significa. Só então as pessoas se percebem como partes e partícipes do mundo que lhes dá vida material e sugere os símbolos do seu imaginário e da sua espiritualidade. Tanto para os cientistas quanto para  as pessoas comuns que vivem esse tipo de experiência a natureza assume as proporções de uma dádiva preciosa que deve estar de alguma forma à disposição do “lazer e recreio” do povo como se lê no texto da lei que criou os parques e reservas naturais dos Estados Unidos. E o passo seguinte nada mais é do que uma consequência lógica do que vimos refletindo até aqui. De alguma forma a natureza é um bem comum, porque somos também rebentos dela. Dela dependemos para a vida e a morte. A natureza é um bem comum e, portanto, sua preservação,  sua recuperação e seu uso e fruto uma dádiva que pertence a todos, independente de cor, raça, ou  condição social. Desta forma o acesso aos benefícios que a natureza  oferece é um direito de todos e por isso mesmo esse usufruir implica numa postura ética na medida em que a exclusão pelo motivo que for, viola os direitos fundamentais da pessoa humana.

Às experiências e vivências com o as ilhas no porto de Boston, Wilson somou muitas outras vividas em ecossistemas naturais e ou humanizados. Passou uma temporada nas “Florida Keys”, uma sequência de ilhas no sul da Flórida, vasculhou as florestas tropicais da Costa Rica e do Brasil e subiu até o pico mais alto  do maciço de Sarawget na Nova Guiné. Estudou as diferenças profundas entre um ecossistema natural da floresta  virgem com o vizinho que cedeu lugar a pastagens depois da derrubada a floresta original em Rondônia. Somado a tudo isso foram objeto do seu interesse e observação as formigas e demais insetos e de modo especial a micro e nano fauna e flora encontráveis até nos recantos mais improváveis e invadidos pelo homem. E como conclusão de todas essas observações e milhares de outros estudos  durante seus mais de 50 anos de pesquisa e docência, resumiu as conclusões num breve parágrafo que vale por  um testamento.


Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão do mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade objetiva tal como a “Natureza”. Para eles, trata-se de uma dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos mas já atravessei tantas fronteiras nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. (Wilson, 2008, p. 31)

Edward Wilson (1929) - 3

A   dimensão da questão ambiental

Para Wilson há três empecilhos, ou se quisermos três desafios a considerar quando se trata de encarar a questão ambiental com seriedade, honestidade e objetividade. O primeiro, refere-se à compreensão que as pessoas quando falam da natureza ou do meio ambiente. Toda pessoa razoavelmente informada tem consciência de que se trata de um assunto de grande importância.  Por isso mesmo não tem consciência das razões porque o cuidado com o meio físico-geográfico é de tamanho significado e porque são corresponsável pela sua preservação. Poucos  se dão conta de que lidamos com um assunto que afeta  a própria sobrevivência da espécie humana. Menor é ainda o número que enxerga no zelo para com a natureza um desafio ético-moral pelo fato de os recursos naturais serem um bem comum. Como tal a sua posse e uso tem como limite o direito do uso e fruto dos bens de todos os tipos que ela oferece.  O segundo problema que se  põe tem a ver com o primeiro e encontra-se na raiz do conhecimento precário, superficial e distorcido que muitas  pessoas tem da natureza. Acontece que no ensino em todos os níveis, especialmente no fundamental e médio, o tema, se é contemplado, recebe um tratamento  pouco profundo porque outras disciplinas são ou parecem mais importantes. Sobre essa base precária de informações o assunto ecologia, preservação e outros termos que são correntes, oferece facilmente munição para todo o tipo de manipulação ideológica, política e simplesmente interesseira. A enorme complexidade que os estudos e pesquisas no campo da biologia vem revelando, representa  o terceiro motivo porque as pessoas comuns normalmente não tem um conhecimento suficientemente abrangente e profundo que lhes permita uma avaliação crítica das questões ambientais. Os avanços no campo da biologia são tamanhos que até especialistas na área tem dificuldade em manter-se atualizados com todas as principais novidades que brotam dos laboratórios de pesquisa.
A solução para superar as três dificuldades: ignorância em relação ao ambiente natural,  formação precária das pessoas no assunto e a enorme complexidade do problema podem ser superadas, conforme Wilson, está “em reformulá-las e condensá-las num só problema”. (A Criação, p. 22), e conclui a reflexão com uma proposta ao seu interlocutor.

Pastor, espero que a sua opinião sobre o assunto seja de que toda a pessoa instruída deveria saber alguma coisa sobre a questão. Tanto o professor como o aluno vão se beneficiar ao reconhecer que a Natureza viva abriu um vasto caminho até o coração da própria ciência, que a amplidão da nossa vida e do nosso espírito depende da sobrevivência da Natureza. É necessário compreender e discutir, sobre um terreno comum, este princípio: como fazemos parte da Criação, o destino da Criação é o destino da humanidade. (Wilson, 2008,  p. 22).

Depois de sinalizar o caminho a trilhar para uma correta compreensão da natureza, tomar as atitudes certas  e escolher os meios adequados, nos demais capítulos do livro “A Criação”, Wilson mostra como as pesquisas na área da Biologia, levam à conclusão de que a Natureza resultou de uma grandiosa síntese, num “Fato Objetivo”, como ele próprio a definiu. Bertalanffy fala em “Sistema” e Collins em “BioLogos”, Teilhard de Charden em “Unidade na complexidade”. No fundo o sentido é o mesmo. Para se convencer de que a natureza é um “Fato”, Wilson apoiou-se em conclusões que foi tirando do resultado de suas pesquisas em laboratório, mas principalmente observando ecossistemas naturais e humanizados.  
Wilson começa sus reflexões sobre a natureza alertando para  o fato de que os dados objetivos de que a Biologia em todas as suas ramificações dispõe de momento, são totalmente insuficientes para se fazer uma ideia aproximada do que seja a natureza. Sua complexidade ultrapassa qualquer tentativa de abarcá-la. “Se parece ser impossível conhecer Deus, o mesmo se dá com a maior parte da biosfera”. (A criação, p. 23). Os  animais domésticos propriamente ditos e aqueles, embora selvagens, mas familiares ao homem, são incapazes de oferecer dados mínimos, nem quantitativos, muito menos qualitativos, para desenhar um retrato da natureza que corresponda à realidade objetiva, nem mesmo nos seus traços mais essenciais. De outra parte as simulações mais refinadas dos processos vitais produzidas em laboratório somados a modelos matemáticos, estão a quilômetros de distância daquilo que efetivamente acontece na multiplicidade e nos incontáveis níveis de complexidade que a biosfera oferece. Todas a tentativas de criar em laboratório formas de vida, mesmo as mais rudimentares como as arqueobactérias, foram até agora frustradas. “Novos mundos e descobertas intermináveis se mantêm à espera na Natureza, e entre elas a solução do mistério dos mistérios, o significado da vida humana”. (A Criação, p. 23). Donde viemos, o que somos e para onde vamos?. Esse quadro coloca-nos diante de um desafio de bom tamanho, no momento em que nos arriscamos a condensar num conceito conciso, porém, compreensivo, do que seja a Natureza. Wilson formulou assim esse conceito:  “A Natureza é aquela parte do ambiente original e de suas formas de vida  que permanece depois do impacto humano. Ou – Natureza é tudo aquilo no planeta Terra que não necessita de nós e pode existir por si só” (A Criação, p.23).
Esta, ou qualquer outra definição que procura sintetizar o que é a Natureza, encontra suas dificuldades por uma série de razões. Acontece que a interferência do homem na Natureza e a humanização das paisagens mais remotas, avançou a tal ponto que pouco resta das suas características originais. Sendo assim uma definição como a que acabamos de citar, para muitos não tem grande serventia prática. Isto é, caracteriza uma terra que existiu até que, durante o neolítico, o agricultor e o criador de animais, deram início à humanização progressiva dos ambientes naturais. Os vales de aluvião dos rios e as florestas  nas latitudes temperadas e subtropicais, tiveram sua cobertura vegetal original substituída pelas plantações. as aldeias e cidades de agricultores, interligados por vias de comunicação cortando a paisagem em todas direções. Passados 15000 anos encontramo-nos diante de uma realidade que preocupa e obriga a refletir. Hoje será difícil, senão impossível encontrar uma área geográfica de porte razoável nunca pisada pelo homem.  Quem sabe uma ilha, ou regiões remotas do Alasca, do Canadá, ou da Sibéria ou qualquer outro ponto extremo de um continente ou no interior deles, ou nas montanhas mais difíceis de escalar. De meio milênio para cá a navegação marítima desencadeou uma verdadeira febre para conhecer novas terras, novos continentes, novos mundos com seus habitantes e culturas “exóticas”, suas belezas naturais e, principalmente, seus recursos e riquezas naturais. A revoada de viajantes conquistadores, comerciantes, aventureiros, cientistas, missionários, emigrantes, colonizadores que desembarcou   nas praias mais remotas do mundo, teve o seu clímax no século XIX e começo do século XX. De então para cá  a humanização da paisagem com sua face positiva e negativa avançou até os rincões mais remotos e mais impossíveis do planeta terra. As gigantescas florestas tropicais, os imensos desertos, as savanas, os campos naturais, as estepes, as pradarias, os pampas, as cordilheiras de montanhas, as florestas subpolares, as tundras, as ilhas mais remotas dos oceanos e até os polos da terra, já foram pisados pelo homem. As  pegadas que deixou estão impressas em toda a parte. Sua passagem e sua instalação definitiva  em metrópoles e regiões sempre mais densamente povoadas mascaram os vestígios da natureza original que, cá e lá, conseguem subsistir a muito custo. Nuvens de emissões de gás carbônico toldam o firmamento e o odor do asfalto roubou o lugar da hálito gostoso exalado pela floresta virgem e os campos cobertos de flores silvestres. Somam-se a isso as centenas de milhões de toneladas de lixo industrial e dejetos domésticos que não poupam nem os rios, nem os mananciais de água subterrânea, nem os mares e oceanos, nem as regiões mais remotas perto dos polos. A humanização da grande maioria dos ecossistemas naturais trouxe consigo a ameaça da extinção e da extinção de fato da assim chamada megafauna, isto é, animais com peso superior a 10 quilos. As manadas sem fim de mastodontes, elefantes peludos, varas incontáveis de porcos javalis, milhões de búfalos pastando livres nas pradarias americanas, não passam de registros guardados pela memória histórica fixada porartistas plásticos do paleolítico ou posteriores. Há 12000 anos a fauna das planícies americanas era mais rica do que a da África. Apesar de todo esse panorama desolador que ficou na esteira da intervenção implacável do homem, a natureza resiste. Wilson observa a respeito.

Em seu estado mais puro, ela existe em locais que ainda são chamados legitimamente de áreas naturais intactas. Em linhas gerais, uma área natural em plena escala, com tamanho adequado para sustentar a megafauna, é definida como um agregado relativamente grande e não perturbado de habitats contíguos. Tal como é especificado pela Conservação Internacional (CI), em um estudo recente, trata-se de uma área de 10000 quilômetros quadrados (um milhão de hectares) ou mais, da qual pelo menos 70% contam com vegetação natural. Domínios dessa magnitude abrangem as grandes florestas tropicais da bacia amazônica, da bacia do Congo e a maior parte da ilha da Nova Guiné, além da taiga – o cinturão de florestas, sobretudo de coníferas, que se estende pelo Norte da América e continua pela Sibéria até a Fenoscândia (Finlândia, Suécia e Noruega). Áreas naturais de um tipo muito diferente sãos os grandes desertos da Terra, as regiões  polares, o alto-mar e o leito dos oceanos em grandes profundidades (em contraste são poucos os deltas de rios e águas costeiras que permanecem em seus estado original). (Wilson, 2008,  p. 25)

Somados a esses ecossistemas de grande porte, em condições de salvar da extinção o que ainda subsiste de megafauna  nos termos acima caracterizada, são de suma importância ecossistemas menores como as definidas pelo U.S. Wilderness Act de 1964. Esse documento as define como “livres do homem, onde o próprio homem é um visitante que ali não  permanece”. Essa lei teve como resultado concreto a destinação de 9,1 milhões de acres para “o uso e desfrute do povo americano, de tal maneira que sejam deixados em bom estado para  o futuro uso e desfrute”. O conceito  “áreas livres”, no entender de Wilson, expressa muito bem o que se entende por natureza virgem, por natureza original, por área natural  na qual o homem é apenas um hóspede em busca de um pouco de tranquilidade, sossego, harmonia e, porque não, pela necessidade atávica, de reencontrar suas raízes mais remotas e mais profundas como espécie biológica. Por mais improvável que possa parecer à primeira vista, mesmo em meio aos aglomerados urbanos  mais artificiais, sob os vãos dos viadutos, nos parques, jardins, gramados, e nesgas de terra livres na beira do asfalto, encontramos “áreas livres”. Evidentemente  são incapazes de hospedar seres vivos de maior porte como mamíferos, aves, e florestas. Mas abrigam milhões e bilhões de pequenos seres vivos  e micro organismos  medindo menos do que alguns milímetros. Nessas micro áreas naturais eles vivem e se multiplicam livremente e sem se  importarem com os homens e sua parafernália civilizatória. Acontece que essas micro áreas naturais são de importância fundamental para o equilíbrio e a saúde da natureza. Os dados que Wilson apesenta para comprovar  esse fato, são impressionantes.

Cada metro cúbico de terra e de húmus é um mundo que pulula com centenas de milhares dessas criaturas, representando centenas de espécies. Junto a elas existem micróbios em quantidade e diversidade ainda maiores. Em uma só gama de terra, ou seja, menos de um punhado, vivem cerca de 10 bilhões de bactérias, pertencentes a até 6 mil espécies diferentes. (Wilson, 2008,  p. 26).


A existência desse  micro e nano mundo de seres vivos numa quantidade e diversidade impressionante, induz a reflexões de fundo sobre os potenciais sem limites de que a natureza é dotada. Vale a pena destacar alguns. O primeiro, chama a atenção ao fato de que a macro fauna e flora que chamam a atenção por constituírem a fisionomia visível dos ecossistemas, tanto em número quanto em diversidade, representam uma parcela mínima e pelo visto a menos determinante na composição e no equilíbrio da biosfera. Esse micro e nano universo de seres vivos que não conta para o homem comum por  serem invisíveis é, em última análise, o responsável para que animais e vegetais superiores sejam sequer viáveis. Sem esse mundo invisível a terra não passaria de mais um planeta inóspito e sem encanto. Esse universo invisível que fervilha debaixo de nossos pés mesmo nos lugares mais impossíveis é o chão sobre o qual e do qual as  paisagens vivas vivem e sobrevivem. E numa suposição extrema em que, por uma razão qualquer toda porção da biosfera visível fosse exterminada, a vida continuaria  com a prodigiosa abundância e variedade invisíveis de antes. E se a intuição ou o faro dos biólogos for correto, depois de bilhões de anos, as leis da evolução revestirão a terra com um novo manto de florestas, savanas, campos naturais e pradarias e nelas uma nova macro fauna e porque não uma nova humanidade. Uma amostra dessa incrível capacidade de a natureza recuperar sistemas seriamente danificados temos no desastre nuclear de Chernobil. Seus efeitos sobre vastas áreas em volta do reator acidentado foram catastróficas. O comprometimento da vida animal, vegetal e humana não chegou a ser exatamente dimensionada. Depois e 30 anos a região interditada e entregue a sua própria capacidade de sanar os danos causados pela explosão nuclear, voltou praticamente à normalidade de um ecossistema natural, com a vantagem da interdição do acesso de pessoas. Vale mencionar também as simulações feitas para imaginar a volta da natureza original depois do desaparecimento da humanidade. Com o título “A Terra sem Ninguém”, resultou num interessante e ilustrativo documentário há algum tempo exibido  na televisão.

Edward Wilson (1929) - 2

O desafio para salvar a natureza

Para Wilson o grande desafio ético do século XXI consiste em salvar a natureza, ou o que sobrou dela, para que as pessoas encontrem um lugar decente para viver. Quanto mais se estuda a vida na terra tanto mais claro fica que esse esforço consiste na contribuição da parte da Ciência para uma atitude ética ao lidar com a vida na terra. O correto viver na  natureza e conviver com ela faz perceber o quanto é complexa e bela. É uma fonte inesgotável e mágica, é o nosso lar que nos sustenta física e espiritualmente. Mesmo que muitos lidem com as questões ambientais sob a ótica do darwinismo e o secularismo que normalmente o acompanha, “deveria ser  um objetivo comum a nós dois, apesar das nossas diferenças metafísicas”. (Wilson, 2008,  p. 15).
E para reforçar o convite à reflexão sobre a natureza endereçada ao pastor, Wilson  registra o exemplo  de Darwin. Ele se preparara para exercer o ministério religioso absolvendo um curso de teologia. Interpretava a natureza que o cercava pela ótica da doutrina expressas na Sagrada Escritura, até que empreendeu a sua viagem a bordo HMS Beagle. Ao observar a floresta tropical do Brasil encostando no Atlântico, percebeu nela a manifestação da mão de Deus e anotou no seu caderno de registros: “Não é possível dar uma ideia adequada dos sentimentos superiores de deslumbramento, admiração e devoção que inundam e elevam a mente”. ( em A Criação, p. 15). Mesmo depois de se afastar dos ensinamentos religiosos, Darwin não perdeu a sua profunda admiração pela natureza e os prodigiosos acontecimentos e espetáculos que oferece. E a certa altura na formulação da teoria da evolução deixou a observação, repetida por Wilson:

Há grandeza neste modo de ver a vida, com seus diversos poderes, tendo sido originalmente  instilada de um sopro em algumas poucas formas ou em uma só; e que, enquanto este planeta ia girando segundo a lei fixa da gravidade, a partir de um início tão simples, infinitas formas, tão belas e maravilhosas, evoluíam e continuam evoluindo. (citado por Wilson, 2008,  p. 16)

Como se pode perceber a admiração, o respeito e a veneração pela natureza do jovem Darwin crente  e apegado às suas convicções religiosas e depois de enveredar pela linha da liberdade do pensamento, continuam inalteradas, para como cientista renomado, formular a teoria da evolução. Foi a ponte que lhe permitiu o trânsito entre as duas cosmovisões que separaram  a do pesquisador principiante e do formulador da hipótese mais revolucionária sobre o acontecer da natureza. O diálogo entre esses dois mundos que, à primeira vista, parecem irreconciliáveis, não se misturando como o óleo e a água, no fundo, no fundo, não somente é possível como é fundamental para interpretar o ambiente natural e propor atitudes e ações  para salvá-lo. Respeito, admiração, veneração, a consciência de que é preciso salvar “a Criação”, resumem-se numa postura ética perante a natureza. A lógica dessa atitude fundamenta-se na convicção de que ela é um bem comum e da sua preservação depende não só o bem-estar dos indivíduos como das coletividades e o próprio futuro da  espécie humana. Argumentos filosóficos, morais e teológicos de um lado e argumentos científicos do outro, compõem o chão fértil que oferece as condições para  que um esforço eficiente para salvar o planeta possa medrar. Nem o  esforço científico por si, nem o empenho filosófico e teológico, muito menos o discurso ideológico, romântico e outros menos confessáveis, são capazes de apontar sozinhos um caminho viável para enfrentar esse gigantesco desafio. O plano ético-moral é a ponte entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito que oferece a  chance real para salvar “a Criação”.
Mas reservemos essa problemática para o capítulo das  reflexões conclusivas sobre os cientistas contemplados até aqui, e acompanhemos as pinceladas com que Edward Wilson desenha o seu retrato da natureza, o seu “Weldbild” como diria Erich Wassmann. Como ponto de partida lembra ao pastor que interpreta a Bíblia ao pé da letra, o fato de que, a certa altura da sua história, a humanidade se desviou do rumo, ou quem sabe, até perdeu o rumo. O Gênesis na sua intepretação literal ou  metafórica ensina que que o homem cometeu um grande erro e foi expulso do paraíso. De então até hoje os homens e a humanidade como um todo, carrega a maldição do “pecado original”, do qual é preciso livrar-se, melhor, redimir-se. A sina de vagar pelo mundo “acima dos animais e abaixo dos anjos”  (a Criação, p. 17) persegue-a como uma sombra que lhe tira a tranquilidade, enquanto se prepara para entrar no reino da luz prometido pela Redenção. Da leitura do Gênesis conclui-se  que o Éden corresponde ao mundo e a natureza original, antes de o homem entrar em cena. Neste ponto o texto sagrado e a concepção do  mundo do livre pensador Wilson, em última análise, coincidem. Para ele, o cientista, esse Éden, esse mundo primordial de fato existiu e foi o berço da humanidade. O resto dessa história toma rumos diferentes para o interpretador literal da Bíblia e os cientistas, como Wilson faz ver ao pastor a quem dirige suas reflexões. Para ele a humanidade não começou a existir por um ato de criação, mas tem a sua origem como mais um rebento, o mais apurado e o mais intrigante, da evolução natural. Tão pouco os primeiros homens foram expulsos do Paraíso. Lá por volta de 10000 a 15000 anos passados, o homem começou a abandonar a natureza original e intacta, criando condições e meios para se impor a ela. Até então as tecnologias desenvolvidas durante o paleolítico pouco ou nenhum estrago fizeram e poucas ou nenhuma marca importante denunciava a presença do homem. Centenas de milhares de anos haviam-se  passado desde que há notícias de seres humanos neste planeta. Começou então o que se pode chamar “a humanização da terra”. Se este termo sugere de um lado o fato de o homem tornar o seu entorno cada vez habitável, mais seguro e mais previsível, do outro o preço que os ecossistemas iriam pagar com o avanço e a sofisticação das civilizações, foi incalculável. Wilson definiu essa situação.
Eis aqui uma quimera, uma espécie nova e muito estranha que entrou a passos incertos no nosso universo, com uma mistura de emoções da Idade da Pedra, uma auto imagem medieval e uma tecnologia que se ombreia com a dos deuses. Tal combinação torna essa espécie indiferente às forças que são mais importantes para sua sobrevivência no longo prazo.(Wilson, 2008, p. 18)
Tanto a versão bíblica de uma paraíso primordial, quanto a concepção da natureza não perturbada pelo homem, podem ser perfeitamente compatíveis, pois concordam no essencial: uma natureza primigênia, em perfeito equilíbrio e inserido nela o homem como os demais seres vivos, no Paraíso como ensina o Gênesis, ou em perfeita harmonia com o seu ambiente, na visão do cientista. Depois Wilson fustiga as atitudes de descaso dos diferentes segmentos da sociedade que  têm responsabilidade pelo que acontece com a natureza. Muitas  pessoas inteligentes não se dão conta de que os benefícios de uma natureza preservada  retribui por ano o equivalente  ao valor do produto bruto do mundo somado. E desabafa:
E o mais perturbador que os nossos líderes inclusive os das grandes religiões, pouco tem feito para proteger o mudo vivo, em meio ao acentuado declínio. Eles ignoraram o comando de Deus de Abraão, dado no quarto dia do nascimento do mundo: “Fervilhem as águas  um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da terra, sob o firmamento do céu”. (...) e pergunta:
O que devemos fazer? No mínimo, elaborar uma história verdadeira da situação, com a qual pessoas de diferentes religiões possam em princípio concordar. Se isso puder ser feito, servirá pelo menos de prólogo para um futuro mais garantido. (Wilson, 2008,  p. 18-19)
Para Wilson as civilizações representaram, em última análise uma “traição à natureza”. Foi a revolução neolítica que deu partida a esse processo. De um lado a revolução neolítica, a revolução dos alimentos, com diria Darci Ribeiro, acompanhada do séquito de tecnologias que trouxe como  consequência, foi sem dúvida uma grande bênção. A espécie humana passou da total dependência das fontes de alimentação, das matérias primas para a habitação e vestuário presentes na natureza, para a agricultura e a domesticação de animais. Com isso foi-se libertando da “escravatura” do que a natureza oferecia espontaneamente, para assumir o controle de suas fontes de subsistência. A vida sedentária, condição sem a qual a agricultura é impensável, valendo-se de tecnologias cada vez mais eficientes com a descoberto do cobre, estanho, o bronze, da fundição de ferro e outras, deram início a substituição da paisagem natural pela humana. Pela própria natureza a substituição, e consequentemente a interferência no ambiente natural dos povos pastores, foi menos profunda e mais  lenta do que dos agricultores. Em todo o caso, a interferência no ambiente natural, dos agricultores mais do que dos pastores nos ecossistemas naturais foi-se acelerando. As florestas foram desaparecendo, as várzeas dos rios drenadas e substituídos por complexos sistemas de irrigação e, modernamente, savanas, campos naturais, cerrados, etc.  deram lugar a gigantescas culturas de soja, milho, cana, algodão e outros. Todas essas conquistas não deixam de ser uma “Bênção”. Mas Wilson chama a atenção de que,

a revolução dos alimentos estimulou a falsa premissa de que uma minúscula seleção de plantas e animais domesticados é capaz de sustentar  a expansão humana indefinidamente. A pauperização da fauna e da flora da Terra foi um preço aceitável até séculos recentes, quando a natureza parecia  praticamente infinita e uma inimiga dos exploradores e pioneiros. As áreas naturais  e os povos aborígines que nelas viviam deveriam ser afastados e por fim substituídos, em nome do progresso, ...  (Wilson, 2008,  p. 19)

Pela sua natureza a agricultura e criação de animais, entretanto, tem os seus limites em relação à modificação e ou destruição do meio ambiente. Começa por aí que ambas as atividades dedicam-se  de alguma forma ao cultivo de  plantas e multiplicação de animais, que na sua origem faziam parte dos ecossistemas naturais. Mesmo as paisagens em que durante milênios foi praticada a agricultura, por bem ou por mal, contam com uma cobertura vegetal permanente embora artificial. Entre os criadores de animais as paisagens naturais, estepes, savanas, campos naturais, pradarias, etc. os estragos causados pela presença do homem  foram ainda menos profundos. Contudo é preciso não esquecer de que a atividade agrícola substituiu a vegetação original e com ela interferiu severamente nos ecossistemas originais, cultivando meia dúzia de cereais e tubérculos. Da mesma forma a criação de poucas espécies de animais, reunidos em rebanhos vagando pelas pastagens naturais, teve como consequência o afastamento ou  o extermínio de não  poucas espécies nativas. Essa  situação perdurou, em grandes linhas, até a advento da revolução tecnológica a partir do século XVIII. Lentamente, acompanhando o ritmo da invenção de novas tecnologias e o aperfeiçoamento das já em uso, a paisagem natural vai perdendo rapidamente seus traços originais. A presença do homem faz valer a  sua capacidade ilimitada de impor sua superioridade ao  entorno geográfico. As aldeias de agricultores de poucas dezenas de habitantes transformam-se em centros urbanos em constante crescimento, até abrigarem milhares, dezenas de milhares e milhões de inquilinos. De realidades até certo ponto harmonizadas com o meio geográfico sempre mais aldeias de agricultores avançaram impiedosamente e tomaram o lugar da vegetação obrigando os animais a se refugiarem em outros ambientes. Com o correr das décadas pequenos centros urbanos surgiram, alguns deles localizados em posição estratégica, evoluíram para cidades com milhares e dezenas de milhares de  habitantes. E depois de poucos séculos nos flagramos diante de centenas de cidades com mais de um milhão de pessoas e dúzias de metrópoles concentrando mais de uma dezena de milhões. Ao comentar essa realidade Edward Wilson deixou a seguinte reflexão:

Enquanto isso, a moderna revolução técnico-científica, incluindo, especial, o grande salto da tecnologia da informação baseada na computação, traiu a natureza pela segunda vez, ao promover a ideia de que os casulos da vida material das cidades e dos bairros residenciais são suficientes para  a satisfação humana. Trata-se de um erro bastante grave. A natureza humana  é mais profunda e mais ampla do que os inventos artificiais de qualquer cultura existente. As raízes espirituais do Homo sapiens se estendem até as profundezas  do mundo natural, por meio de canais de desenvolvimento  mental que ainda hoje permanecem, em geral, desconhecidos. Nosso pleno potencial não será atingido sem que compreendamos  a origem e, portanto, o significado das qualidades estéticas e religiosas  que nos tornam inefavelmente humanos.
Não há dúvida  de que muitas pessoas  parecem contentar-se em viver inteiramente  dentro desses ecossistemas sintéticos. No entanto, também os animais domésticos se contentam, até nos habitats grotescamente anormais em que nós os criamos, Isso, no meu modo de pensar,  é uma perversão. Não é da natureza  dos seres  humanos se tornar cabeças de gado em pastagens aperfeiçoadas. Cada pessoa merece ter a opção de entrar e sair com facilidade desse mundo complexo e primal que nos deu à luz. Precisamos de liberdade para vagar  por terras que não sejam propriedade de ninguém, mas protegidas por todos, terras cujo horizonte imutável é o mesmo que limitava o mundo dos nossos ancestrais milenares. Apenas onde resta um pouco do Éden, pujante de seres vivos independentes de nós, é possível experimentar o deslumbramento que deu forma à psique humana no seu nascimento.    (Wilson, 2008,  p. 20-21)

E qual é o caminho a ser trilhado para encontrar um equilíbrio aceitável entre as benesses e as armadilhas que as tecnologias em constante evolução nos oferecem e obrigam a aceitar? A resposta encontra-se na ampliação e aprofundamento do conhecimento científico. A solução será encontrada na medida em que a ciência em que as pesquisas científicas, de modo especial a biologia, a psicologia e outras especialidades, penetrarem sempre mais fundo nas relações existenciais entre a natureza e a alma humana. O homem como os demais seres vivos é feito da mesma matéria original que compõe o reino mineral; as base fisiológica e as leis que comandam o funcionamento do seu organismo são essencialmente as mesmas que regem a vida dos micro organismos mais simples; o homem como os demais seres vivos busca as matérias primas para a sua sobrevivência na natureza que o cerca; o homem encontra no entorno físico em que vive as fontes de inspiração para alimentar sua imaginação, materializar seus sentimentos, dar forma e vida a suas crenças. Não me alongo sobre essa realidade, pois foi o tema do primeiro capítulo das presentes reflexões. Por essas  e outras razões confirma-se a afirmação que serviu de mote para os presente trabalho, de que “a natureza existe e continua existindo sem o homem, mas o homem não existe nem subsiste sem a natureza”. Compreende-se assim que o mundo natural exerça tamanha atração sobre a alma do homem. Nem o fato de alguém ter nascido na total artificialidade de uma grande metrópole é capaz silenciar o apelo que vem do fundo do ser, pedindo por ar puro, pelas flores do campo, pelos pássaros cantando na liberdade silenciosa da floresta, pelas gotas de orvalho brilhando sobre as ervas do campo, pelo marulhar dos arroios de montanha e por tudo mais que sobrou da natureza devastada pelo próprio homem. Wilson observa a esse respeito.

Temos muito caminho pela frente até fazermos as pazes com este planeta, e um com o outro. Tomamos o caminho  errado quando iniciamos a revolução neolítica. Desde então temos procurado nos elevar saindo da Natureza, em vez de rumo a ela. Não é tarde demais para voltar atrás, sem perder a qualidade de vida já alcançada, a fim de receber as benesses profundamente gratificantes do legado da humanidade. (Wilson, 2008,  p. 21)