O
conceito de sistema – sua aplicabilidade global
As pesquisas empíricas no campo da
biologia, empregando os métodos e instrumentos usuais para esses casos, levaram
Bertalanffy, numa primeira etapa, a formular a concepção organísmica válida, em
primeiro lugar, para os seres vivos. Num segundo momento, isto é, no decorrer
da década de 1950 e 1960 passou a validar a ideia central do conceito de
“organismo”, a todos os fenômenos e realidades passíveis de análise empírica.
Valendo-se de modelos matemáticos, dos resultados obtidos pela observação das
estruturas tanto mecânicas quanto orgânicas, dos conhecimentos disponíveis a partir da
observação dos processos que ocorrem nos seres vivos, chegou à conclusão de
que, à nível particular e a nível global, de alguma forma, todos são
aparentados na medida em que são “Sistemas”. Bertalanffy reuniu as conclusões
das suas investigações e reflexões no livro “General System Theory” publicado
em 1968, com a tradução em português sob o titulo “Teoria Geral dos Sistemas”,
publicado pela Vozes em 1977. Nessa obra o autor procura aplicar o conceito de
sistema em todas as situações nas quais interagem processos de natureza e
origem diversa. O conceito de sistema como destaca o autor na introdução da
Teoria Geral dos Sistemas,
( ... ) invadiu todos os campos da ciência e penetrou no pensamento popular,
na gíria e nos meios de comunicação em massa. O pensamento em termos de
sistemas desempenha um papel dominante em uma ampla série de campos, que vão
das empresas industriais e dos armamentos até tópicos esotéricos da ciência
pura, sendo-lhe dedicadas inumeráveis publicações, conferências, simpósios e
cursos. Apareceram nos últimos anos profissões
e empregos desconhecidos até pouco tempo atrás, tendo os nomes de projeto de
sistemas, análise de sistemas, engenharia de sistemas e outros. São o
verdadeiro núcleo de um nova tecnologia
e tecnocracia. Seus executantes são os
“novos utopistas” do nosso tempo. (Bertalanffy, 2009, p. 17)
A noção de sistema vem a ser um das
respostas aos desafios postos pelo avanço e a complexificação da tecnologia. A
interação, interdependência e a complementariedade de tecnologias e ações
exigidas por exemplo nos mísseis balísticos ou veículos espaciais. Requerem-se
tecnologias as mais diversas de natureza mecânica, física, eletrônica, química,
etc., ajustadas e calibradas para garantir o êxito de uma missão espacial, o
perfeito funcionamento da geração e distribuição da energia elétrica, da
qualidade das telecomunicações e assim
por diante. A operação de um sistema ultrapassa a capacidade de um único
engenheiro para exigir a cooperação de muitos, especializados nas suas áreas de
atuação e treinados para servir um
objetivo pelo qual ele é responsável parcial e solidário.
As relações entre o homem e a máquina
passam a ter importância e entram também em jogo inumeráveis problemas
financeiros, econômicos, sociais e políticos. Ainda mais, o tráfego aéreo ou mesmo o de automóvel já
não é mais uma questão de número de
veículos em operação, mas formam sistemas que devem ser planejados ou
organizados. (Bertalanffy, 2009, p. 18)
O fato de o progresso em todas dimensões
da atividade humana vir acompanhada de uma complexificação crescente carrega em
seu bojo a necessidade de reorientar a própria postura mental para dar conta
dos desafios que se colocam. No terreno meramente técnico do dia a dia, as
especialidades e as competências individuais já não são suficientes para
enfrentar os problemas de maior complexidade que se multiplicam e são cada vez
mais vitais e decisivos na atual civilização. Em inúmeros casos a
excelência, a eficiência, a competência,
tanto dos seres humanos quanto das máquinas que operam, para muito pouco ou
nada serve, quando isolada de um contexto maior. Em outras palavras. Só faz
sentido a partir do momento em que estiver a serviço de um “Sistema”. Esse é,
por assim dizer, o termo mágico que Bertalanffy formulou como ferramenta
conceitual para lidar com as tecnologias cada vez mais desafiadoras. Os
sistemas dominam hoje em todos os campos e em todos os níveis da atividade
humana. São sistemas de transporte terrestre, sistemas de transporte aéreo,
sistemas de abastecimento de água, sistemas de fornecimento de energia
elétrica, sistemas de saúde, sistemas políticos, sistemas sociais, sistemas
educacionais, sistemas religiosos e por aí vai. Pelo fato de permear todos os
meandros da atual civilização demonstra a utilidade desse conceito. Pela sua
funcionalidade e utilidade universal parece pertinente submetê-lo a uma avaliação
mais aprofundada.
O próprio Bertalanffy aponta para um
desdobramento de alcance digno de reflexão. O conceito de Sistema com sua
origem e plena validade em praticamente todos os campos dominados pela
tecnologia, resultou em algo muito mais profundo, mais substantivo e muito mais
revolucionário. É sua a observação.
Trata-se de uma transformação nas
categorias básicas de pensamento da qual as complexidades da moderna tecnologia
são apenas uma - e possivelmente não a mais importante – manifestação. De uma
maneira ou outra, somos forçados a tratar com complexos, com “totalidades” ou
“sistemas” em todos os campos do conhecimento. Isto implica numa fundamental
reorientação do pensamento científico. (Bertalanfffy, 209, p. 19-20)
Bertalanffy passa então a mencionar os
campos do conhecimento e os diversos
níveis em que se encontram esses campos,
nos quais há possibilidade de aplicar o conceito de Sistema. Para tanto ele
elaborou uma tabela na qual destaca o nível em que o conceito de sistema pode
ser aplicado; a descrição do nível acompanhado com exemplos; a teoria e os
respectivos modelos.
Primeiro nível: das estruturas estáticas. Compreende os átomos, moléculas, cristais, estruturas
biológicas do nível da microscopia eletrônica até o nível macroscópico. Neste
nível trabalha-se com as fórmulas estruturais da química, cristalografia e descrições anatômicas.
Segundo nível: da relojoaria. Compreende
os relógios em todas as suas modalidades, todos os tipos de máquinas
convencionais, sistema solar e cósmicos em geral. Neste nível lida-se com a
física convencional, as leis da mecânica newtoniana, einsteiniana e outras
mais.
Terceiro nível: mecanismos de controle.
Compreende a auto-regulação por termostatos, servomecanismos, os mecanismos que
regulam a homeostase nos organismos
vivos. Corresponde ao nível da cibernética, retroação, informática com todos os
seus desdobramentos, sistemas de informação, sistemas de comunicação ...
Quarto nível: sistemas abertos. Um exemplo
típico é a chama, as células e organismos em geral. Não está clara a
possibilidade de aplicar a teoria física em sistemas que se mantém em fluxo
contínuo como é o caso do metabolismo ou a armazenagem de informações no código
genético.
Quinto nível: os organismos inferiores:
inclui todos os vegetais. Os sistemas vão se diferenciando tendo como base a
“divisão do trabalho”. Entra em questão a diferença entre o indivíduo
reprodutivo e o funcional, isto é entre reprodução da espécie e a estrutura e o
funcionamento do “soma”, do organismo vegetal. Neste nível ressente-se da falta
de teorias consistentes e modelos adequados.
Sexto nível: os animais. Os sistemas
caracterizam-se neste nível pela crescente importância e aprimoramento da
circulação de informações que dependem da evolução de receptores adequados,
sistemas nervosos e, quem sabe outros, capazes de veicular a aprendizagem,
condicionar o funcionamento dos instintos e explicar as formas incipientes de
memória e consciência. Aplica-se aqui a teoria dos autômatos, fenômenos
reguladores, retroação ... Neste nível começa
a ficar evidente que cresce a dificuldade de reduzir simplesmente a
modelos matemáticos, físicos, mecânicos a causalidade de manifestações tão
complexas como são por ex., o instinto, a consciência e a memória.
Sétimo nível: o homem. No homem estão
presentes de alguma forma os seis níveis anteriores. Na descrição desse nível
Bertalannfy colocou o simbolismo, noção do passado e futuro, a individualidade
e o mundo, autoconsciência e como consequência a comunicação pela linguagem,
como diferenciais para o nível humano.
Sem a pretensão de querer diminuir a
maneira como o autor formulou as características do nível humano, penso que se
torna mais fácil de entender a diferença entre o nível animal e o do homem
colocando como ponto de partida simplesmente aquilo que os diferencia de vez,
isto é, a Inteligência Reflexa. A nível animal fala-se em instinto,
inteligência e memória. No homem encontramos tudo isto também, mas o fosso que
separa de vez os dois níveis está na Inteligência Reflexa. O homem sabe e
conhece como o animal, o que, a rigor, é o que basta para que os instintos
cumpram sem riscos de errar as suas funções, seguindo um caminho retilíneo que
não admite desvios e alternativas. Pode-se afirmar que o animal sabe de fato o
que lhe convém e o que lhe é prejudicial. Munido de Inteligência Reflexa o
homem é capaz de saber o “Porque” do seu saber. Este diferencial faz com que
seja capaz de analisar, de refletir, de comparar, de selecionar, de optar, de
imaginar e seguir vias alternativas, de optar, de abstrair, etc. etc. Assim está de posse da percepção de um
passado, presente e futuro, da consciência da individualidade original e
inédita, da formulação de cosmovisões originais. E, para que esse potencial sem
limites resulte na construção de sistemas culturais, sociais, políticos,
econômicos, religiosos, requerem-se, permanecendo fiel ao mundo conceitual de
Bertalanffy, sistemas simbólicos, sistemas de linguagem, sistemas lógicos,
sistemas filosóficos, sistemas éticos, sistemas morais, sistemas teológicos.
Com isso estão contemplados os níveis oitavo e nono do esquema original de
Bertalanffy. O oitavo ocupa-se com os sistemas sócio-culturais e o nono com os
sistemas simbólicos. [1]
Não é aqui nem o momento nem a
oportunidade de entrar mais a fundo nos elementos estruturais e funcionais de
um sistema como caminho que leva à compreensão dos fatos e fenômenos de
natureza individual, coletiva ou global. As reflexões que viemos fazendo ao
longo das páginas que precederam tiveram como objetivo analisar concepções
integradoras da natureza. Na sua origem
essa iniciativa teve como preocupação encontrar um contraponto à tendência
generalizada à fragmentação, à compartimentação, à dispersão, ao exagero de
especialização, à atomização que domina, para não dizer tiraniza, a produção do
conhecimento em meio à atmosfera da pós-modernidade em que nos encontramos.
[1] Esse quadro dos sistemas classificado em hierarquias um tanto
modificdo e adaptado pelo autor encontra-se nas pág. 50-51 da “Teoria Geral dos
Sistemas de Bertalanffy.