Balduino Rambo (1905-1961) -1
O perfil
de Balduino Rambo
O centenário do Pe. Balduino Rambo
(1905-1961), motivou a publicação de um número considerável de matérias,
focando a vida e a obra desse ilustre jesuíta, professor, cientista, apostolo
social e literato. Até hoje, quando se fala no seu nome, os que o conheceram
ainda em vida ou entraram em contato com sua obra, citam-no entre os homens de
ciência mais destacados que honram o Rio
Grande do Sul e o Brasil. Sua obra mais conhecida e mais consultada é “A
Fisionomia do Rio Grande do Sul”. A primeira edição data de 1942, a segunda de
1956 e a terceira de 1999. O estímulo para conceber e escrever essa obra devem
ser procurados nos sobrevoos que
realizou para o Serviço Geográfico do Exército, em começos de 1938.
Durante 60 horas e 11.000 quilômetros voados, deslumbrou-se com as paisagens
naturais mais variadas e mais surpreendentes e deslumbrantes que compõem o
cenário natural do Estado ou, como ele diria: “A Fisionomia do Rio Grande do
Sul”. Na parte do diário em que apontou os registros dessas vivências, percebe-se
o quanto e quão profundamente as paisagens naturais, que deslizavam sob as asas
do pequeno monomotor “Master Brasilia”, do Terceiro Regimento de Aviadores de
Canoas, marcaram sua relação existencial para com a querência natal. Ao colega
de estudos e amigo na Alemanha, Waldemar Moll, resumiu assim essa experiência,
reservada para poucos naquela época: “Ah, o prazer de voar! Acredito que voar
vire paixão da qual não há como não cair vitima”. Quinze anos mais tarde teria
ocasião para realizar mais uma viagem aérea encomendada também pelo Serviço
Geográfico do Exército. Nessa ocasião sobrevoou também num monomotor militar, o
Brasil Central de sul ao norte, a Amazônia, descendo por Acre, Rondônia,
cruzando o Mato Grosso, na época um estado, para terminar em São Paulo. Essa
viagem não resultou num livro do gênero e da repercussão da “Fisionomia do Rio
Grande do Sul”. As observações feitas naquele sobrevoo renderam contudo um
conto, seu gênero literário predileto, recheado de observações sobre paisagens,
cidades, personagens, atividades econômicas, empreendimentos missionários e até
lendas e histórias típicas dos lugares por onde passou e fez suas paradas
obrigatórias. O conto foi escrito no dialeto do “Hunsrück” e endereçado para
seus leitores do interior colonial. Leva o titulo sugestivo: “Nichs scheeneres
uff de Welt wie en Schulerrer sin”. – “Nada mais belo no mundo do que ser
professor”.
Foi a partir desses sobrevoos e a
compreensão global da visão que os
grandes conjuntos lhe proporcionava, que o Pe. Rambo consolidou uma aproximação multifacética e
multicromática da “História Natural” da paisagem. Em meio a esse cenário de
reflexões foi tomando forma o projeto da sua obra clássica: “A Fisionomia do
Rio Grande do Sul”. Vista como um todo apresenta-se como uma monografia, como o
próprio autor a classificou, bem ao estilo do velho, mas sempre novo e inesgotável conceito de “História
Natural”. “A Fisionomia do Rio Grande do
Sul” conduz o leitor pelas diversas paisagens como se fossem de um livro
aberto. Na sua linguagem peculiar a mineralogia, a petrografia, a geologia, a
paleontologia, a edafologia, a hidrologia, a botânica, a zoologia, a
climatologia, desenham as paisagens naturais das diferentes regiões do Estado e
contam a sua história. Os conjuntos locais e ou regionais formam unidades que
impressionam, assustam ou encantam. Cada qual na sua identidade, vem a compor
uma peça a mais, na harmonia sinfônica da ”Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Na
medida em que detalhou, com rigor científico a paisagem natural, apresentou-a
ao público como uma declaração de amor apaixonado pela querência em que nasceu.
E a paisagem que mais fundo calou em sua alma de cientista, poeta e místico,
foi o planalto coberto de pinheiros. No seu diário deixou o registro de que lá
“à sombra das araucárias era sua pátria na terra”.
O Pe. Rambo vem a ser uma personalidade
rara entre os sábios que transitaram com desenvoltura e competência pelos
diversos campos do saber. Escreveu os primeiros versos como jovem recém saído
da adolescência e, aos quinze anos, em 1919, começou a redigir uma diário. Fez nele
o último registro um dia antes do seu
falecimento em 12 de setembro de 1961. Ele próprio dizia que o diário era a “obra literária e científica” da
sua vida. Soma 49 volumes manuscritos em grande parte em estenografia e o
restante na sua quase totalidade, em língua alemã e letra gótica
(Süterlin). Por ocasião da sua viagem de
três meses aos Estados Unidos, a convite do governo daquele país, encontram-se
páginas em inglês. Aparentemente aproveitou o diário para treinar aquela
língua. Esse diário tem um valor
inestimável, pois, cobre um período de praticamente 40 anos em que o mundo como
um todo e o Brasil em particular, passou por transformações radicais. Basta
lembrar a implantação do Estado Novo e a ditadura de Vargas, a Campanha de
Nacionalização, a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a
redemocratização em 1945 e o posterior surto de modernização do Pais. De
essencialmente rural começa o processo sem volta da urbanização, a revolução
nas comunicações e seus reflexos inevitáveis sobre as comunidades coloniais
tradicionais. Comprometido com o mundo rural, principalmente de descendência
alemã, o Pe. Rambo reservou páginas e
mais páginas do seu diário, para as
preocupações pelo destino religioso e étnico do seu povo. Em paralelo desenvolveu
toda uma linha de reflexão na qual nos legou a sua visão e compreensão peculiar
do Universo, da Natureza, do Homem e, nesse panorama o lugar que cabe a Deus.
Mas deixemos para mais adiante a imersão nos meandros do seu pensamento.
De outra parte o diário, somado a sua
vasta correspondência científica contem os dados que permitem avaliar o tamanho
da sua estatura como cientista de trânsito nacional e internacional, mais
especificamente, no campo da botânica sistemática dos fanerógamos do sul do
Brasil. Terminada a Grande Guerra engajou-se na campanha de Socorro a Europa Faminta
(SEF). Foi secretário dessa organização interconfessional que arrecadou roupas,
agasalhos e alimentos mandados por intermédio da Cruz Vermelha, para a “Europa
Faminta”. Vidas sem conta foram salvas com esse socorro de emergência. Ao lado
da atividade literária e científica o Pe. Rambo ocupou como fundador a cátedra
de Etnografia e Etnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e foi
responsável pela disciplina de História Natural do Colégio Anchieta. Encontrou
ainda tempo para dedicar-se a projetos
sociais desenvolvidos pela Sociedade União Popular da qual foi
secretario executivo e redator do seu periódico, o Skt. Paulusblatt, durante a
década de 1940 e 1950. Em seu diário encontram-se informações sobre todas essas
atividades.
O gosto pela poética foi, por assim dizer,
a sua paixão juvenil no campo das belas letras. O entusiasmo por esse gênero foi
arrefecendo no correr do tempo e foi ocupar um lugar secundário quando chegou à
plena maturidade aos quarenta anos. Na ocasião anotou no diário. “O gosto
antigo pela poesia e a sensibilidade pela contemplação, é verdade não morreram
em mim, mas recuaram para um espaço bem mais reduzido”. (Rambo, Balduino. 1994.
p. 14). Acompanhou-o, isso sim, o gosto pelos contos, dos quais publicou em
alemão erudito em periódicos internacionais, uma série com pano de fundo
histórico. O que, porém, representa uma valor inestimável são vinte um contos
em dialeto do “Hunsrück” somados a mais de uma centena de cartas fictícias no
mesmo linguajar, endereçados aos descendentes dos imigrantes alemães no
interior colonial do sul do Brasil. Trata-se de um conjunto de matérias que se
constituem numa autêntica mina para estudiosos da língua, linguística, teoria
literária, assim como de história, antropologia, sociologia, religião e outras
especialidades. Encontram-se além disso, no diário e ouras formas de
publicação, dezenas de matérias,
versando, sobre os grandes temas que ocupavam a mídia de antes, durante e
depois da Segunda Guerra Mundial. Suas preocupações mais recorrentes foram as
mudanças de natureza cultural, social,
econômica, política e religiosa, que mexeram fundo na vida e na maneira de ser
das comunidades do interior colonial, no qual ele nascera e passara a infância.
As raízes que o Pe. Rambo fincara nesse meio tinham sido tão profundas e tão
sólidas que, em vez de se enfraquecerem, tornaram-se o pano de fundo da sua
inspiração e produção literária. Lendo e examinando seus escritos,
principalmente os de ficção e os inspirados na realidade humana do mundo rural,
é licito afirmar que teriam tudo para
dar-lhe um lugar de destaque na literatura mundial, caso se tivesse dedicado de
corpo e alma ao gênero contos, por exemplo. Salvo melhor juízo, pouco ou nada
ficam devendo à obra “Cem Anos de Solidão”, que valeu o prêmio Nobel em
Literatura a Gabriel Garcia Marques.
A
produção literária e científica
O
volume mais significativo dos escritos do Pe. Rambo são de natureza
científica, tendo como cenário de fundo a taxonomia botânica. E foi a botânica
sistemática que lhe garantiu nome nacional e internacional. É óbvio que na
descrição de um gênero, uma família ou uma variedade de fanerógamos, não há
espaço para grandes voos poéticos e estéticos. O estilo dessa produção deve ser
por natureza enxuto, técnico e preciso, como manda que sejam textos com objetivos científicos.
Entre os escritos propriamente dito
literários e científicos o legado do Pe.
Rambo conta com um volume impressionante de outros textos, na maioria inéditos.
Situam-se num patamar intermediário e ocupam a maior parte do diário,
descrições de excursões científicas, relatos de viagem, alguns contos em alemão
erudito, além da sua obre de referência: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”.
Nesses textos não falta o rigor científico. Os dados são reais e objetivos, mas
os recursos literários e o estilo preferido pelo autor, vem carregados de
descrições e reflexões que mexem com a mente, alimentam a fantasia e fazem com
que o leitor viaje na imaginação por uma paisagem viva, povoada de personagens,
de dramas, de mistérios, de simbolismos, de significados, de misticismo. Em
outras palavras. A forma de apresentar uma caminhada pelos campos de Cambará,
por ex., não se resume numa sucessão mecânica de atos de coletar o maior número
possível de espécies de plantas. As reflexões que acompanham e complementam a
tarefa, refletem a preocupação pelo lugar, de um modo mais amplo e os
simbolismos de que os mínimos detalhes são portadores. Ao mesmo tempo seus
escritos sugerem e fazem vislumbrar, em meio à infinita multiplicidade de
detalhes, a convergência harmônica para uma unidade, que confere sentido a
tudo. Renato Dalto, autor do texto da obra comemorativa do centenário do
nascimento do Pe. Rambo, resumiu com rara precisão, o que vínhamos tentando
dizer.
O Pe. Balduino Rambo nasceu, viveu,
pesquisou e se expressou na natureza. Quando menino, ainda no pátio da casa
paterna, em Tupandi, região de colonização alemã no vale do Caí, onde nasceu no
ano de 1905, considerava as árvores no fundo da casa seu brinquedo predileto.
Quando foi estudar na Escola Apostólica, em Pareci Novo, em 1917, o passeio
pelas matas dos arredores lhe aguçou o gosto pela botânica e a geografia. Isto
foi determinante na sua vida de pesquisador. Seus relatos da natureza são
grandes mapas descritivos – o conceito de
fisionomia, no qual primeiramente
enxerga o todo para depois entrar nos detalhes. O detalhe é visão do botânico,
mas há também a busca da síntese entre ciência e religião, os questionamentos
da alma, o vigor literário e a construção poética de ver couraça revestindo
pedras, atribuir memória a acidentes geológicos, escutar a canção das águas,
ouvir o murmúrio do divino em meio à
névoa da noite. (Tavares, Eduardo – Dalto Renato. 2007. p. 12)
Foi exatamente essa forma peculiar de
apresentar dados isolados, paisagens locais ou fisionomias globais, que fizeram
do Pe. Rambo um sábio de reconhecimento perene. Seus ex-alunos da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul e do Colégio Anchieta ainda vivos, intelectuais
que privaram com ele ou vieram a conhecê-lo
pela obra que deixou, lembram-se dele com sincera veneração. Guardam dele a
memória de um especialista e sábio que soube aliar como poucos, o rigor
científico à sensibilidade de um poeta, às reflexões de um filósofo, e jesuíta
que foi, perceber na paisagem natural as marcas da presença do Criador, como
concluiu Renato Dalto: “Talvez visse nos pinheirais a mediação entre o céu e a
terra, um caminho próximo para entender Deus” (Tavares, Eduardo – Dalto,
Renato. 2007. p. 12). Assim como para Francis Collins o código genético é a
“Linguagem de Deus”, para o Pe. Rambo Deus fala uma linguagem eloquente, para
quem tem olhos para enxergar e ouvidos para escutar a natureza, nas suas macro
micro e nano manifestações.
Tomando em conta os múltiplos campos do
conhecimento em que o Pe. Rambo se movimentou, entende-se que sua obra
encontre dificuldades para ser avaliada
no todo e nos diversos enfoques. A começar pelas diversas especialidades às
quais se dedicou e sobre as quais deixou registradas suas reflexões, fica
difícil, senão impossível, decidir em qual delas foi maior. E como maior não
entendemos aqui o volume da produção específica, mas o significado e o valor de
cada uma. Uma avaliação conjunta da produção literária, não deixa dúvidas sobre
o valor tanto do objeto quanto da forma. A leitura dos contos e das cartas
fictícias em dialeto, era disputada com avidez e paixão pelo público a quem foi endereçado. A outra série de contos
em alemão erudito, versando sobre temas regionais do sul do Brasil, atingiram o
público leitor internacional, pois, foram publicados no periódico “Katholische
Missionen” (Missões Católicas), de circulação internacional. Seu último conto
expressa suas preocupações com uma civilização cada vez mais empolgada e
rendida ao fascínio da tecnologia. Com o titulo “Drei Jahre auf dem Mars” (Três
anos em Marte), veio a ser publicado anos depois do seu falecimento. Além de se
constituir numa peça literária primorosa, o conto “Três Anos em Marte”, põe em
evidência o polo para o qual convergiam todos os interesses do Pe. Rambo: Os
textos que deixou, além dos que acabamos de mencionar, muitos inéditos como os
diários de suas viagens, em 1956 para os Estados Unidos e em 1959 para a
Alemanha, na condição de convidado oficial pelos governos daqueles países,
demonstram o que para ele de fato interessava. Descobrir na diversidade das
manifestações da Natureza o fio condutor que as une e lhes dá sentido. E se há
uma baliza, uma referência que confere harmonia ao aparente caos, qual a sua
natureza? Na condição de jesuíta estava
comprometido com a fé de que tudo que existe e acontece em nossa volta tem a
sua origem num Deus Criador. Para ele a Criação e consequentemente o Criador,
são dados objetivos. Dispensam provas. Mais ainda. Não há como entender o Universo,
a Natureza e Homem sem esse pressuposto. Para ele, como para São Paulo, Santo
Agostinho, Nicolau de Cusa, os últimos seis
papas e muitos outros, a Natureza é “O Livro” da Revelação por
excelência. Todos os demais livros e
formas de Revelação conhecidos na história dos povos, não passam de
versões consolidadas no decorrer da história das respectivas culturas. Por isso
mesmo vêm marcadas pela visão e os cacoetes peculiares de cada uma em
particular. O Pe. Rambo deixou explícita a convicção de que a Natureza e tudo
que nela existe tem a sua origem e razão ser em um Deus Criador, no seu diário
de 24 de junho de 1945.
À primeira vista, a Tua Criação nem mesmo se apresenta como ordenada,
mas como uma grande confusão: grande confusão o teu firmamento estrelado,
grande confusão o edifício dos reinos do saber, uma confusão muitas vezes
assustadora o roteiro da Tua Providência na História da Humanidade. Nós,
cientistas, trazemos dentro de nós um certo pressentimento e um salutar temor
face a toda essa confusão. Imprimiste em
nós um resplendor do Teu próprio ser e por isso sabemos de ante mão, que por
trás dessa aparente balbúrdia reina uma maravilhosa harmonia. Mais ainda!. Que
é tarefa nossa perseguir as meadas desse sistema e explicar com transparência sua
interligação. Até certo ponto somos nisso bem sucedidos e às vezes invade-nos a
ilusão de termos descoberto a planta do mundo e agora a saberíamos fixar no
papel preto sobre branco. Pena que, num último momento, algum das Tuas
divagações ou digressões põe sempre em dúvida a consistência de todo esse
edifício! Eis porque somos obrigados a sempre recomeçar, embora saibamos
perfeitamente que também esta vez a conta não irá fechar. Empilham-se nossos
livros, e nossas bibliotecas continuam a
crescer que é uma espanto. Muitos dos nossos opinam que, a partir das raízes
desse tronco frágil podem esquadrinhar o próprio mistério da Tua ordem
universal. Desenrolam e vasculham os pergaminhos de épocas passadas, dialogam
com traças e escorpiões de livros, reduzem
cinquenta velhos volumes a um só, e chamam tal proeza de “Ciência”.
(Rambo, Balduino. 1994. p. 127-128).
Teilhad de Chardin elaborou um complexo e
sólido fundamento conceitual que garante lógica
e solidez para fundamentar as suas
obras de referência: “O Fenômeno Humano” e “O homem na Natureza”. Percebe-se um
esforço penoso para não se desviar do caminho escolhido ao arquitetar para a
sua grandiosa concepção do universo e nele o homem, e conferir-lhe coerência à
base dos dados científicos de que dispunha na época. Esses dados provam, pelo
menos para ele e seus admiradores, que o mudo em que vivemos revela-se como uma
gigantesca unidade, Bertalanffy diria um gigantesco “Sistema”.