A
Antropogênese - 6
A capacidade de refletir, isto é, a
capacidade de tomar consciência, de entender o “porque” do seu saber ou do seu
entendimento, fez com que o homem percebesse que seus semelhantes gozavam da
mesma característica. É legítimo imaginar de que daí nascesse a curiosidade de
aproximar-se deles e comunicar-se com eles. A aproximação por meio do diálogo,
o mútuo entendimento seguido do mútuo conhecimento, tornou-se possível com o recurso à linguagem nas mais
diversas formas de expressar conceitos, de utilizar-se de símbolos, metáforas,
expressões corporais, mímicas, gestos, desenhos, representações por sinais em
forma de figuras, escritas, alfabetos, etc. A importância desse fato é tamanha
que a evolução cultural da humanidade é simplesmente impensável, sem o fantástico
instrumento das línguas faladas e demais formas de comunicação. Sem elas é
inimaginável a formação de comunidades humanas,
o desenvolvimento das artes, a formulação de sistemas de pensamento, de
concepções religiosas, de cultos e de rituais de qualquer espécie. E o mais
importante de tudo é o fato de que os registros feitos pelo homem através no
decorrer dos tempos, as experiências feitas, a memória acumulada, tudo
perder-se-ia sem o recurso à alguma forma de linguagem ou de comunicação. Por
isso.
A linguagem não é apenas uma
ferramenta. Ela é a ferramenta mais importante do homem. É ela que nos faz
humanos. Pela fala, depois, pela escrita, conseguimos formular pensamentos e
acumular conhecimentos no decorrer das gerações. Um cachorro não pode saber
como era bisavô. O homem é o único ser que pode ter essa informação. Uma das
maiores vantagens evolutivas da
linguagem é a capacidade de reconhecer que um semelhante tem um cérebro como o
nosso e pode pensar, como nós. A isso damos o nome de teoria da mente. Foi essa
capacidade que nos possibilitou a comunicação. No momento em que um homem
raciocinou que o outro perto dele tinha uma mente igual, chegou à brilhante
conclusão de que “ele pode me entender”. Essa ideia básica, fundamental, está
presente até hoje em todas as formas humanas de expressão. Foi somente a partir
daí que conseguimos viver plenamente em comunidade, que criamos a filosofia e a
matemática e nos constituímos em humanidade. (Everett, Daniel. Entrevista à
Revisa Veja. 7 de março de 2012. p. 20)
A linguagem possibilita, simultaneamente a
capacidade de inventar e desenvolver tecnologias, uma outra conquista peculiar
e exclusiva ao homem como portador de uma inteligência reflexa. Assim como
fabricar instrumentos, mesmo os mais rudimentares, prova que seu autor está
equipado com inteligência reflexa e, portanto, um autêntico humano, assim a
linguagem nas suas mais diversas modalidades, só é concebível pela reflexão.
Reduzir a linguagem a uma pré-disposição
genética, uma herança biológica prevista no DNA, mais precisamente no gene
FOXP-2, como apregoa a teoria de Noam
Chomsky, parece difícil, melhor impossível, de sustentar tomando como ponto de
partida a natureza da reflexão como a entendeu Teilhard de Chardin. Depois de
por mais de meio século servir de cartilha, para não dizer de Bíblia, para
gerações de lingüistas e pedagogos, Chomsky começa a ser contestado exatamente
a partir da sua especialidade. Em seu recente livro “Language: The Cultural
Tool” – “Linguagem, a Ferramenta da Cultura”, o lingüista Daniel Everett,
professor da universidade de Bentley em Bóson, bate de frente com a teoria de
Chomsky. Numa entrevista à revista Veja classifica de ridícula a idéia de
Chomsky, pois, conforme ele, não há provas, nem nunca houve, de que existem
estruturas em nossos cérebro ou em nosso DNA, que autorizam afirmar que a linguagem é hereditária. O gene
FOXP-2, a quem por um bom tempo, atribuiu-se a hereditariedade da linguagem,
além de ter outras funções, está presente em ratos, algumas espécies de aves, e
ouros animais. Soma-se a isso que Chomsky não é geneticista e nunca fez
pesquisas em biologia humana. Resumindo Everett declara.
As línguas são a combinação de três fatores: a capacidade cognitiva do
homem, a cultura dos povos e o que as sociedades querem comunicar. Nosso corpo
estabelece os limites de como nos expressamos, a cultura define como falamos e
lemos e a vontade de nos comunicarmos determina o que queremos dizer. É uma
relação dinâmica. Cada uma dessas peças influencia a outra. (Everett, Daniel.
Veja 7 de marcos de 2012. p. 20)
“A capacidade cognitiva” de que fala
Everett, não passa de uma outra maneira de definir a “capacidade de reflexão”
de Teilhard. A linguagem, incluindo a falada, a escrita, expressão pelas artes,
os gestos, a mímica e qualquer outro tipo de comunicação intencional, é o
resultado da reflexão. A pessoa ao concentrar-se sobre si mesma, ao “refletir”
sobre si mesmo, percebe que seu semelhante está fazendo o mesmo. A partir desse
mútuo observar-se nasce o desejo de comunicar-se, de compartilhar experiências
e vivências, de trocar impressões, de encontrar soluções, de interpretar as
incógnitas relacionadas com a vida, à natureza e o universo. A linguagem é a
ponte que permite essa comunicação. Não faz diferença se para tanto
os interlocutores se valem da língua falada, da comunicação escrita, por
gestos, da postura corporal. O determinante está no fato de que a comunicação entre humanos tem com motor e combustível
a necessidade inata no homem de relacionar-se de forma consciente com os
outros, isto é, o homem é por natureza social. Entre os animais a comunicação
acontece no plano instintivo e, por isso mesmo, dá-se a partir de sinais
mecânicos que têm sempre o mesmo sentido e sempre pedem a mesma resposta. No
homem a linguagem é essencialmente reflexiva, conceitual e, sendo assim, é
simbólica. E sendo simbólica expressa a maneira peculiar como as pessoas percebem
o que elas próprias são e o universo e os acontecimentos em que passam a
existência. Como se pode concluir, a linguagem, melhor, as linguagens, são o
fruto da consciência que homem tem de si mesmo e da necessidade de partilhar
com os semelhantes a sua cosmovisão, a sua “Weltauffassung” como diria Erich
Wassmann. E é sobre essa base que as culturas
vão tomando forma. Assim como cada pessoa individual percebe a si mesmo
e o mundo de perspectiva original, as culturas convencionam caminhos comuns que
as orientam para um objetivo comum. Cada indivíduo, referenciando-se às balizas
respeitadas por todos, preserva a individualidade expressa na postura, nas
emoções que sente, nos simbolismos que lhe são sugeridos, nas reações perante
os imprevistos e na forma de lidar com questões existenciais de fundo, como são
a doença, a dor, a injustiça, a solidariedade, o amor, a fidelidade, a morte e o
que se oculta atrás dos seus mistérios e incógnitas e, finalmente, o lugar ou
não lugar e Deus neste cenário.
Cabe à linguagem o papel de meio de campo
entre a preservação da individualidade e as relações culturais que consolida
com seus semelhantes. As pessoas dialogando desenvolvem uma linha de entendimento
mútuo, baseada em conceitos abstratos, representações, simbolismos, etc.
Conforme definiu o Pe. Balduino Rambo, a língua, a linguagem em todas as suas
modalidades,
( ... ) é, sem dívida, muito mais
do que um veículo técnico de comunicação. Ela desabrochou do sangue e da natureza de um povo. Por isso
reluzem sobre suas folhas as reminiscências
do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana ainda hoje algo
do aroma do mistério da alma humana.
A expressão mais evidente do sangue e do
espírito, da alma comum, do modo de pensar comum, é a língua. A
identidade étnica dispõe, obviamente, de outras modalidades e de outras formas
de fazer visível a sua cultura: a música, a pintura, a escultura, as festas, os
trajes, os usos e costumes. A língua, entretanto, constitui-se no sinal
identificador mais essencial da identidade étnica. Torna possíveis as demais
manifestações e até certo ponto as inclui.
A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus na margem da
estrada de todos os povos, para que nela se alegrem. Aquele que a pisoteia e,
sob qualquer pretexto a rouba, danifica a sua alma e se intromete criminosamente no santuário da
alma humana. (Rambo, Balduino. In Identidade como Síntese. Manuscrito. p. 143)
O significado da língua, no seu sentido
mais amplo de “comunicação”, formulado há pouco por David Everett, poderia
parecer inspirada na reflexão do Pe. Rambo, escrita há quase 80 anos. “A
língua, segundo o primeiro, resulta da capacidade cognitiva do homem. Permite
que as pessoas se comuniquem de acordo com padrões consagrados e consolidados
pela história da cultura particular de cada povo. Além disso permite que as
pessoas compartilhem com as demais aquilo que desejam comunicar. A semelhança
entre os dois pensadores fica ainda mais evidente, ao lermos a continuação da
reflexão de quase oito décadas passadas.
A língua materna simboliza a mesma maneira de pensar e a mesma maneira
de sentir. Sob este aspecto ela representa um dos tesouros mais sagrados dos
povos. A língua comum constitui-se no veículo mais completo da compreensão
mutua, não somente por causa dos mesmos sons e das mesmas palavras, mas antes
de mais nada, pelas mesmas percepções que transmitem. A língua materna comum
permite a formação da comunidade de destino comum. Com ela somos capazes de
superar com maior facilidade a enorme solidão da nossa existência e trilhar com
mais segurança a difícil, a longa, a íngreme e a escura trilha da nossa vida.
Ninguém se basta a si mesmo. Pelo contrário. Quanto mais importante é o homem,
tanto mais sente a solidão e a impotência e, com tanto maior ânsia, procura os
homens que deus lhe concedeu como companheiros de viagem, para que a vida a
dois, a três e a muitos se torne menos solitária. (Rambo. 1935. Manuscrito. p.
144).