Deitando Raízes #6

Capítulo segundo
A vida de família na mata virgem

A geração de hoje tem em grande parte a percepção errônea  de que no começo a coisas passavam-se como acontecem no presente. Trata-se de um grande equívoco desmentido por todos os representantes e testemunhas dos velhos tempos. Foram, sem dúvida, tempos difíceis dos quais os velhos e veneráveis pais fundadores nos falam. Os nossos descendentes não fazem a menor idéia daquilo por que nós passamos. Na verdade aquele senhor tem toda a razão. Os velhos veteranos e o povo jovem deveriam dar mais atenção àqueles testemunhos e, antes de mais nada, refletir sobre os caminhos pelos quais os antepassados realizaram tamanha obra. Baseando-nos nos relatos sobre os começos, transportemo-nos para uma daquelas casas de   colono e observemos com atenção. Enxergamos paredes nuas, nem sequer revestidas com barro, muito menos caiadas. Apesar de tudo encotramos nelas alguns quadros envelhecidos de santos, ou um crucifixo e um recipiente para água benta,  recordação ou herança da família, preservada com grande apreço apesar da pobreza. Estes objetos diziam mais ao coração do que qualquer outra coisa.
Naquela época nem vestígio de (06) móveis caros como os que temos hoje. No assoalho de terra  socada foram Sobre cepos fixados no chão batido  armava-se a mesa. Em lugar da cozinha havia um lugar para o fogo perto da casa. Na maioria dos casos consistia numa cova e algumas forquilhas de madeira. Nelas suspendia-se o tacho e as panelas erram penduradas num vara transversal. Não havia necessidade de um armário de cozinha porque não havia talheres para guardar. Os demais utensílios domésticos não passavam  de algumas peças trazidas da terra natal. Seu valor consistia mais nas recordações que despertavam do que no valor do material de que eram feitos. Tudo que havia de livros na casa, resumia-se num livro de orações, mesmo este não poucas vezes velho e roto. Ao abri-lo podia-se ler a comovente despedida de algum amigo querido, ou de um pároco zeloso, que oferecera o livro como o melhor dos anjos da guarda, para a viagem dos seus filhos espirituais. Observamos como a família se reúnia pela manhã  em volta da mesa para a oração e o desjejum. Não havia nem tigelas, nem chaleira para o café, nem leiteira, que hoje acenam tão convidativamente da mesa do colono. Muito menos havia manteiga ou pão perfumado e crocante, que até os dentes velhos conseguem moer com facilidade. E lugar das magníficas coisas de hoje, o olhar do visitante encontrava a panela com mingau de abóbora e farinha grossa de milho, por muito tempo presenças fiéis na mesa. Mesmo que não parecesse tão apetitoso era consumido com avidez e todos mostravam boa saúde, assim como o trabalho pesado o exigia. Depois do desjejum era hora de partir para as tarefas do dia. Em linhas gerais não diferiam muito das de hoje, com a diferença de que eram incomparavelmente mais trabalhosas por causa do desconhecimento dos métodos de trabalho. O braço do colono tomava o lugar do boi e do cavalo. Estes só mais tarde o iriam socorrer.
Ao meio dia indicado pela posição do sol, os membros da família reuniam-se para o almoço, de forma alguma tão farto como hoje. Em situações muito especiais choviam pedacinhos de carne fresca ou seca no indefectível mingau de abóbora ou milho quebrado. Observava-se o mandamento da abstinência  nas sextas feiras e ninguém achava que não era possível dar conta da tarefa diária sem carne, freqüente motivo de desculpa ou incriminação  à Igreja, da parte daqueles católicos que se julgam mais sábios do que ela. Nunca se ouviu dizer que por essa razão, os antigos tivessem tido ossos mais fracos e faces menos rosadas. A que colono de hoje teria agradado um almoço como aquele. Com certeza preferiria ser convidado para  jantar com a esperança de encontrar algo melhor. Evidentemente assim como o dia começou com mingau de abóbora e milho quebrado, assim também  terminaria.
Chegou o momento de examinar os leitos. Eram tão simples quanto imagináveis. Consistiam em algumas esteiras, alguma roupa de cama que superara as peripécias da viagem. Apesar disto exerciam uma admirável atração depois de tamanha jornada diária. Propiciavam um sono restaurador a não ser que algum rapaz de peito robusto levasse o ruído da serra, utilizada nas tarefas diárias, para o silêncio da noite. Enquanto as pessoas dormem vamos dar uma olhada no guarda-roupa.  Ao cabo dos primeiros anos as velhas roupas estavam gastas e puídas. As mulheres fiavam e os homens  teciam o algodão. Esses tecidos não permitiam grande  luxo. Não eram finos mas duravam tanto mais. Depois de levantar não era preciso tratar o gado pelo simples fato de que, na maioria dos casos, (07) não havia nem vacas, nem cavalos e só muito mais tarde foram adquiridas galinhas e porcos. Se alguém pusesse às avessas todos os bolsos e vasculhasse em todos os cantos não  encontraria um único Thaler [1] e muito menos uma onça de ouro. [2] E pergunta-se: donde viria dinheiro? Primeiro foi preciso abrir uma roça  para garantir o sustento da família e, mesmo mais tarde quando a produção se tornou mais abundante, não havia como convertê-la em dinheiro. Faltavam estradas e meios de transporte e os mercados de consumo localizavam-se a distâncias enormes. Vamos sair da casa e voltar a atenção para a roça. Os pés de milho e a mandioca estão em crescimento, no mesmo lugar onde na outra estação cresciam as abóboras. Naquela época o nosso feijão preto que era vendido em Porto Alegre a 30 mil réis, ainda não era cultivado. Em seu lugar plantava-se feijão de cor. Não sabíamos bem como semeá-lo e colocávamos punhados nas covas. Batatas não havia. Quando mais tarde as sementes estava disponíveis, além de pequenas,  custavam dois mil réis a quarta. [3] Muito primitivas eram as nossas ferramentas agrícolas. Não dispúnhamos de arados, somente foices para roçar, machados, facões e enxadas. Com eles nos defendíamos muito bem no clima magnífico. Já que falamos de clima é preciso  acrescentar que, na época, o inverno era menos rigoroso do que hoje. Conforme a recordação das pessoas, nevou apenas duas vezes em 1828 e os flocos mal tocaram o chão. Somente em alguns lugares mais protegidos conservou-se por algumas horas.
A falta de dinheiro foi o grande obstáculo para o nosso progresso. Com os preços irrisórios da época era possível adquirir tudo com facilidade. Mas como ganhar dinheiro? Tínhamos ouvido que no interior era possível adquirir um bom pedaço de terra por meio de um contrato de trabalho junto aos grandes estancieiros. Três homens de Bom Jardim aventuraram.-se na busca deste tipo de trabalho. Friedich Cremer, um certo Neulinger e Johannes Finger, na época com 15 anos, encontraram trabalho na estância do major Adolfo, dez horas distante de São Gabriel. Era uma estância no velho estilo, várias léguas quadradas, na qual se criavam mais de 20.000 cabeças  de gado, entre vacas, bois, mulas e cerca de 3.000 cavalos. A estância subdividia-se nos assim chamados currais. Fomos colocados no curral do Pedro. O nosso trabalho consistia, como conta Johann Finger,  em abrir valas e erguer uma comprida taipa de pedra. Nos dez meses que passamos ali nos familiarizamos com a vida e os hábitos dos brasileiros e também um pouco com a língua. Aquela vida representou para nós uma mudança bem agradável. Comparando a comida com a da mata virgem, vivíamos na fartura. Cada três dias uma ou mais reses eram abatidas, havendo assim carne de sobra. Aprendemos a fazer churrasco e com o muito treino tornamo-nos mestres nessa arte.
Chegamos quase a enjoar da carne devido à facilidade de obtê-la, fazendo com que nos deleitássemos também com pratos  à base de ovos, abundantes, pois, no curral criavam-se 200 galinhas, alimentadas não com milho mas com as sobras de carne e miúdos.  O milho era bastante raro e mais rara ainda a farinha. Uma quarta custava um patacão. [4] Registramos aqui como curiosidade que o major Adolfo numa das suas voltas ofereceu uma grande festa. Enquanto eram servidos à vontade assados suculentos e, para provar que a farinha era algo fino, passava uma tigela de café com farinha para oito a vinte convidados. O pão era outra raridade, que poucas vezes nos era oferecido. E que festa quando, por ocasião de festividades, uma fatia de pão era distribuída para meia dúzia de peões. Mostravam-se mais alegres do que os filhos dos colonos sentados ao redor de uma bacia com cuca. O sal não era apenas muito caro como muito difícil de se conseguir. Nós trabalhadores nos (08) valíamos da cinza para temperar os alimentos. Com o andar do tempo a gente se acostumou a tudo. Descobrimos assim que é possível passar muito bem só com carne e, note-se bem, a carne que nos era oferecida era sempre de primeira qualidade, uma raridade que nos vem entre os dentes hoje. Éramos servidos à vontade quatro vezes ao dia. Garantia energia por dentro e por fora. Tanto o estômago como os braços sentiam-se renovados e bem dispostos para o trabalho.
Mas o que aqui deve ser ressaltado de modo especial, é o fato de que a nossa permanência de 10 meses no interior da província, rendeu-nos uma bela soma para levar de volta para a nossa picada. Com 100 mil réis no bolso foi possível adquirir mais para as nossas famílias do que hoje com cinco contos. É o que fizemos. Compramos um cavalo e algumas vacas e o trabalho em casa tomou um ritmo acelerado. Porcos e galinhas podiam ser adquiridos por alguns trocados quando se dispunha de moedas de bronze a serem oferecidas no ato. Assim a maior parte do dinheiro foi gasto em questão de pouco tempo, porém, bem empregado. Podíamos olhar para o futuro com mais ânimo e redobrada esperança.
De maneira semelhante outros procuravam ajuntar pequenas somas, para com elas melhorar a situação da família. E, na medida em que os filhos cresciam os pais contavam com mais ajuda, permitindo o cultivo de mais produtos. Aos poucos abriram-se estradas e a circulação intensificou-se. Vendas foram instaladas, muito modestas no começo, mas com o tempo foram-se tornando mais bem fornecidas. Muitas coisas já podiam ser adquiridas nelas, mesmo que não fossem os tecidos finos e artigos de luxo que hoje oferecem. Não era preciso recorrer a este tipo de produto para cobrir as nossas necessidades diárias de vestuário. As mulheres faziam os fios de algodão e às vezes de linho e os homens teciam os panos rústicos para camisas e vestidos. Para casar hoje, quantos móveis, utensílios e roupas de cama não são exigidos. Naqueles tempos se a noiva tinha um vestido de chita e o rapaz um casaco do mesmo tecido ou, quem sabe, uma camisa de riscado, o enxoval estava completo. Quantos não cruzaram o portal do matrimônio com muito menos. Igualmente os chapéus  não eram artigos de luxo. Usávamos gorros feitos com pele de macaco que serviam perfeitamente na mata virgem, embora não nos atrevêssemos a ir com eles até a cidade junto ao "Passo." [5] Os sapateiros não tinham  motivo  de queixas por excesso de trabalho, pela simples razão de que homens, mulheres, crianças e anciãos, todos andavam descalços. Se por acaso alguém trouxe um par de botas velhas da Europa, junto com os poucos pertences, calçava-as somente nos dias mais festivos e julgava-se uma cabeça mais alto do que nos outros dias, quando se nivelava com os demais "pés no chão." Assim foram mais ou menos as condições comuns a todos os colonos. A vida diária seguia a sua rotina a não ser que alguma carta da família ou um acontecimento alegre ou triste, como nascimentos ou falecimentos, trouxessem alguma alteração. De qualquer forma foi assim que se fixaram indelevelmente na memória das pessoas, os primeiros anos por terem sido os mais trabalhosos e terem mexido mais com as emoções. Finalmente todos chegaram a um nível de vida livre de preocupações, o que significou, sem dúvida, uma grande vantagem em comparação com a velha pátria.




[1] Moeda alemã mais importante dos tempos modernos. Seu nome vem da cidade de Joachimsthal nas montanhas da Boêmia. Seu nome original foi “Joachimsthaler”.
[2] Moeda espanhola valendo 14.672 réis
[3] Oitava parte de um saco de sessenta quilos.
[4] Várias moedas portuguesas, espanholas, brasileiras e sul-americanas.
[5] O “Passo” correspondia ao local onde o rio dos Sinos permitia a travessia com carroças, cavalos e pessoas, à altura da atual praça do imigrante no centro de São Leopoldo.

Deitando Raízes #5

Introdução

Desde a minha juventude fui  amigo entusiasta da História Universal. Como rapaz lia com verdadeira sofreguidão as velhas legendas dos santos com suas xilogravuras e constato que devo boa parte do meu conhecimento histórico a essas leituras precoces. Mais tarde no ginásio foram os livros de história osmeus companheiros prediletos. Movido por uma autêntica ânsia e empolgação pelo saber mergulhava, não por horas, mas por dias e semanas, naqueles textos. Para mim era um prazer enlevar-me e alegrar-me com as grandes figuras do passado, que me cativavam com um secreto encantamento. Respirava, sentia e me maravilhava naquele mundo do passado, ao ponto de um amigo de juventude  observar: "Tu vives no passado, assim como eu vivo no futuro."
Para maior segurança  o presente documento e o “de acordo” foi assinado pelos dois presidentes da igreja Georg Eckert e Johann Mathias Dillenburg, elaborado de comum acordo com a comunidade e assinado por todos os participantes da Picada Bom Jardim e 48 Colônias
O prazer que experimentei com meus estudos históricos é inesquecível. A par do entusiasmo de tudo que é grande e belo senti, desde muito cedo, o pesar pelo transitório de tudo o que é terreno e despertou o meu ser para o eterno. Quando, mais tarde, o caminho da minha vida foi direcionado para o Brasil, o anseio pela pesquisa histórica encontrou pouco alimento. O mundo que se revelava para mim era totalmente diferente, um mundo, por assim dizer, sem um passado perpetuado por monumentos. Enquanto na Europa cada montanha, cada rio, ou cada lago e cada cidade, tem a oferecer uma história de várias centenas de anos, no Brasil, na maioria dos casos, nem as grandes cidades têm a oferecer uma memória histórica. É um mundo novo no sentido mais pleno do termo. Nele tudo é  natureza jovem e intocada. Contudo, mesmo aqui, oferece-se num determinado grau a possibilidade de satisfazer a minha tendência para a história. Sem dúvida é de outra natureza e não tão espetacular e tão pródiga como no velho mundo. Na Alemanha a pesquisa histórica abre, a partir de um presente acanhado e prosaico, as portas para um passado cheio de brilho e poesia. No Brasil, ao contrário, ela nos leva , a partir de uma evolução recente e de um bem estar satisfatório, para o começo na mata virgem, por assim dizer, ao berço da nossa maneira de ser de hoje. Uma reflexão desta natureza  também tem o seu valor e é de grande utilidade, como ficará claro nas páginas seguintes da nossa crônica. Bom Jardim é o cenário das nossas observações. Escolhemos esta localidade, uma vez que nos interessava trabalhar com  um pano de fundo multicolorido, para apresentar a história de vida de um homem que se fez benemérito de toda a colônia alemã, o professor Mathias Schütz. A intenção original foi publicar este pequeno trabalho como obra comemorativa do jubileu de 50 anos do seu magistério, porém, a morte tirou o jubilar do nosso meio, só lhe resta o sentido de guardar viva e perpetuar a sua memória, assim como salvar  do esquecimento as memórias daquele tempo. São cada vez em número menor as testemunhas deste começo de história. Sem serem percebidos baixaram, um a um, à sepultura. Para que isto não aconteça com Bom Jardim, o que seria uma grande perda para o futuro, pedimos aos anciãos veteranos desta  paróquia que nos contassem com detalhes como foram as circunstâncias no passado. Reunimos e ordenamos os resultados e os oferecemos aos nossos compatriotas alemães no Brasil, para o eu entretenimento e ensinamento. Talvez sirva também de estímulo para que se escreva  história de outras picadas e desta maneira formar um retrato global da vida (02) da população alemã no Rio Grande do Sul.
 Como o tempo não permitiu que o livro fosse concluído para o dia 3 d janeiro de 1897, data da comemoração, decidimos que o “bebê” viessea luz  numa série no "Deutsches Volksblatt". Esta decisão tem a vantagem  de que a história da paróquia se torna conhecida por círculos mais amplos e preparar o clima para a data comemorativa. Além disto essa forma de publicação oferece uma excelente ocasião para enriquecer o conteúdo da obra e desta maneira fazer justiça aos acontecimentos  e às pessoas não contempladas em nossa crônica, embora façam jus para tanto. Mais tarde essas folhas poderiam se reunidas na forma de um livro, ampliadas, implementadas com cópias das fotos dos  personagens, elaboradas artisticamente e publicadas no formato de uma "Crônica  de Família."


Primeira parte
O desenvolvimento físico de bom Jardim
Capítulo primeiro
A fundação da colônia
O nosso velho e confiável  informante que, ignorando seus 84 anos, nos acompanhará em nossa jornada, nasceu  no ano de 1915 em Damscheid na Oder Wesel, província do Reno. Contava 10 anos quando seus pais deixaram a aldeia natal e, partindo do porto de Bremen, empreenderam a viagem para além do oceano. Das 14 semanas que durou a viagem nosso informante não se lembra quase nada. Apenas impressões muito genéricas, como o muito povo  no porto e a muita água, ficaram na sua memória. Somente  imagens esparsas de parentes e conhecidos, faziam parte de suas recordações. E, contudo, quantas cenas comoventes  devem ter marcado a despedida e a longa viagem. Que apertos no coração de muitos quando o navio se pôs em movimento, cortando para sempre o caminho do retorno para a terra, onde não poucos deixaram irmão e irmã, pai e  mãe. Quantas vezes não terão chorado em silêncio durante a solitária viagem pelo oceano, chegando a se arrepender da decisão de emigrar para o novo mundo. As famílias devem ter-se reunido especialmente à noite para, no aconchego falar sobre a velha terra natal. Com certeza as crianças menores ouviam com admiração os pais, os jovens tomados pela empolgação da juventude, sonhavam com grandes planos e as moças crescidas olhavam com apreensão para o futuro. Durante as intermináveis horas dos domingos subiam até Deus as melodias dos cânticos da missa alemã, em meio à solidão do oceano. Eram aqueles cantos que haviam cultivado fielmente na igreja com as ondas do mar fazendo o acompanhamento. Bem-aventurados eles que depositavam a confiança no Senhor.  Fiel Ele vigiava sobre os seus enquanto lhes preparava um futuro feliz que, obviamente, deveria ser conquistado com trabalho duro.
No Rio Grande encontraram o navio que trouxera outros compatriotas para o Sul do Brasil. Eram aqueles que partiram do Rio de Janeiro antes de nós, mas foram retidos em Rio Grande. Por ocasião de uma tempestade tinham feito  o juramento de festejar no futuro o afortunado dia da chegada. E o dia foi o de São Miguel que daria o nome à futura paróquia da Picada Baum, ou dos Dois Irmãos e viria a ser o seu patrono. Como se sabe a comemoração motivou um desentendimento quando as autoridades eclesiásticas, as únicas que têm autoridade para decidir sobre feriados, transferiram a festa para o domingo. Paroquianos bem intencionados mas sem conhecimento de assuntos teológicos, deixaram-se levar a manifestações  e ações deploráveis. Ainda hoje há algumas pessoas que se julgam no direito de venerar São Miguel, enquanto se rebelam contra aquele a quem o Senhor entregou as chaves do céu.
No navio viajavam alguns cabeça-dura e, como o capitão também não era dos melhores, a situação desandou em desavenças e por fim em tumulto.
Continuamos a nossa viagem até Porto Alegre, subimos o rio dos Sinos e, finalmente, acampamos no Carioca. Na época não se  percebia nada de São Leopoldo além de uma pequena cabana nos arredores do atual Orpheu, pertencente a um oleiro de nome Stoll. Também Novo Hamburgo jazia no seio da terra e ninguém na época pensava sequer na possibilidade de um trem. A única localidade habitada nas redondezas era a Feitoria Velha, na estrada entre São Leopoldo e Lomba Grande. Nela morava o inspetor Lima, diretor da Colônia. Em sua pessoa concentravam-se todas as atribuições relacionadas com os imigrantes. Competia-lhe dar ou sortear os lotes coloniais. No começo era o responsável pela distribuição de ferramentas e instrumentos de trabalho: serras, machados, enxadas e sementes. Além disto acumulava as funções de delegado de polícia e juiz. Na época todos os procedimentos eram muito rápidos e, sobretudo, baratos. Não havia necessidade de advogados e escrivões. Nem cadeia havia. Em vez da prisão usava-se uma trave de madeira comprida e pesada. Nela os perturbadores da ordem e os arruaceiros eram facilmente levados a se acalmarem. Tratando-se de pequenos delitos só os pés ficavam presos na trave. Quando maiores o pescoço do malfeitor era forçado a suportar uma gravata dura. Junto ao inspetor um policial ajudante cheio de pose exercia sua função. Seu nome era Loeb, um homem de estatura pequena. Mais tarde foi agraciado com a colônia que hoje pertence a Jakob Schneck. Não era um tirano, mas em tudo sabia o que era ordem e não brincava em serviço.
Aqui ficamos acampados esperamos ansiosamente pelo dia em que nos fosse indicada a nova querência. Finalmente chegou o dia esperado. Atravessamos o rio no Passo junto à futura São Leopoldo e, a pé, pelo campo fomos levados  até o pé do morro do Lehm. Lá situavam-se as 26 colônias cobertas de mata fechada que nos foram destinadas.
O campo de hoje já existia e estendia-se até o Portão, com uma diferença. O capim aveia cobria-o até perder de vista e nele pastavam numerosas manadas de gado, vacas, bois e cavalos. E que animais! Visivelmente gordos, robustos e belos, como hoje só aqui e acolá se encontram. O gado pertencia a duas estâncias imperiais. Uma delas situava-se no arroio Wainz (onde hoje mora Jakob Kroeff) e a outra no local onde mora  Lourenço Torres. Algumas famílias já se haviam fixado aí. Eram Mecklenburguenses, entre os quais um certo Berghan,  que mais tarde deu o nome a toda a picada. Além deles havia ainda um certo Weinmann e um outro de nome Pettzinger. Sob muitos aspectos os Mecklenburguenses  encontravam-se em melhor situação do que nós. Tinham recebido do governo panelas e espingardas  e cada família duas vacas e um touro além de dois cavalos e um garanhão. Dessas benesses não usufruímos mais. A liberalidade do governo caíra por alguns pontos e, por isso, nos restou seguir o princípio: "Cada qual cuide  de si!" Armamos provisoriamente o nossos acampamento na beira do campo, ao pé do morro do Lekur .
Na época não havia nem vestígio  dos móveis caros de hoje. No assoalho, que consistia em terra socada,  cepos fixados no chão e sobre eles a mesa. Em vez da cozinha havia perto da casa apenas uma cova no chão com o fogo e algumas forquilhas de madeira, sobre elas uma vara transversal e nela penduradas as panelas. Na época dispensavam-se os armários de cozinha, pois não havia louça para guardar.
Os demais utensílios domésticos somavam apenas alguns  trazidos da terra natal, cujo valor consistia mais nas recordações que evocavam do que no seu valor material. Tudo que havia de livros na casa resumia-se  em algum livro de reza, na maioria dos casos rasgado e faltando folhas. Abrindo-se esses livros podia-se ler neles a comovente  despedida de um amigo querido ou de um zeloso pároco que oferecia este anjo da guarda como o melhor dos acompanhantes  para a viagem. Observemos agora como a família se reunia de manhã cedo em volta da mesa, para a oração da manhã e o desjejum. Não havia tigelas nem chaleira para o café e o leite, que hoje nos acenam convidativos sobre a mesa da colônia. Menos ainda se podia esperar  manteiga e doce, nem pão perfumado e crocante, que mesmo dentes envelhecidos estavam em condições de moer com facilidade. No lugar das maravilhas de hoje o hóspede se deparava com a panela com o mingau de abóbora e farinha grossa de milho, durante muito tempo os inseparáveis companheiros de mesa. Mesmo que a refeição não tivesse uma aparência tão apetitosa, avançava-se com não menos entusiasmo e todos exibiam boas energias como o exigiam as tarefas do dia. Depois do quebra-jejum esperava a jornada diária, em grandes linhas semelhante a de hoje, mas distinta pelo fato de os conhecimentos precários de como executá-la, a tornarem infinitamente mais  penosa. O braço do colono substituía a força do boi e do cavalo, que só mais tarde, e em melhores condições, vieram em seu auxílio.
Vamos dar uma olhada para o acampamento. As famílias viviam na santa paz, cada qual numa pequena cabana. Percebiam-se poucos utensílios de cozinha perto do fogo em frente à cabana. Levávamos uma vida semelhante aos ciganos, o que podia ser constatado de modo especial nas crianças. Haviam-se livrado de todas as peças de roupa de alguma maneira dispensáveis e se desenvolviam maravilhosamente no clima quente. Só aos domingos notava-se alguma movimentação em nosso acampamento, na medida em que nos sábados à noite os homens voltavam do trabalho. Nos domingos marchávamos numa longa procissão até o Portão, a fim de buscar laranjas para toda a semana. Na segunda feira cada qual providenciava por mantimentos para a semana consistindo, na maioria dos casos, em abóboras compradas na Estância. E depois para onde? Obviamente para a colônia que fora  destinada para cada um. Uns eram obrigados a percorrer uma distância menor, outros maior. E que estradas! Estreitas demais para permitirem a passagem de carroças. Não passavam de trilhas no mato subindo a encosta íngreme do Lehmberg, partindo da casa do Bauermann. Antes de nós colonos somente a comissão de demarcação havia avançado até o fundo da picada. Chegado à sua colônia na segunda feira cada qual iniciava o trabalho com novo ardor. Antes de mais nada importava providenciar pela moradia  da família. Não passava de uma espécie de "blockhaus", já que naquelas circunstâncias nem se pensava em tábuas. Enfrentavam-se os gigantes da floresta com fogo, machado e serra. Sem tardar alguns estavam no chão e não demorava e aprontava-se, da melhor forma possível, uma espécie de tabuinha. Levantava-se o "blockhaus" trançando taquarinhas do mato, leques de coqueiro e pendões de milho, fixados nos caibros. As instalações internas eram evidentemente muito pobres. À sua vista as lágrimas rolavam pelas faces de não poucos colonos. A maioria, com certeza, teria voltado com muito gosto para casa. Mas, com a absoluta falta de dinheiro, como pensar na possibilidade de voltar. O jeito foi transformar a necessidade em virtude e pouco a pouco se acostumar-se com a nova situação. Pronta a casa buscava-se a família no acampamento e acmodá-la na nova moradia. Enfim no abrigo de uma moradia própria a sensação de intimidade e aconchego ia tomando conta das pessoas. Evidentemente as circunstâncias externas ainda não chegavam a inspirar segurança. De quando em vez os animais do mato aproximavam-se das cabanas. Em momentos de distração os tigres espiavam para dentro e, às vezes, carregavam também uma criança. Pelas frestas da parede e do assoalho da largura de um dedo, penetravam os insetos, aranhas e outros bichinhos, obrigando a uma guerra sem trégua. Ao mesmo tempo em que a casa era construída cultivava-se um pedaço de terra. As plantas medravam magnificamente. No início cultivava-se feijão de cor, aipim e as indefectíveis abóboras. Desde cedo cuidou-se da plantação de laranjeiras. Embora a vida fosse  amarga e trabalhosa, pelo menos não se passava fome. Havia alimentos em abundância embora sua aparência deixasse a desejar. Raras vezes enxergava-se carne ou pão. As abóboras forneciam o ingrediente principal das refeições. Eram servidas na forma de mingau na mesa de manhã e reapareciam da mesma forma no almoço e na janta.
Só com grande esforço conseguia-se farinha no Portão. O milho, pelo contrário, era fácil de obter. Com muito trabalho era esmiuçado num moinho manual, reduzido a uma espécie de farinha grossa e fervido. Com sal, que muitas vezes faltava, o gosto não era nada ruim. Felizmente ninguém de nós era exigente. Alimentávamos a convicção de que, apesar de tudo, com o andar do tempo, chegaríamos a alguma coisa. Ao menos não éramos obrigados a trabalhar em primeiro lugar para os outros. Tínhamos boas razões para cultivar a esperança de que o suor não corria em vão e os frutos que colheríamos seriam nossos. Uma outra circunstância que aos poucos nos reconciliaria com o Brasil foi o relativo clima de segurança em que vivíamos. Tínhamos escutado muitas histórias assustadoras sobre bugres selvagens; como assaltavam e saqueavam casas; como assassinavam os homens e como arrastavam as mulheres e crianças para o mato. Graças a Deus fomos poupados de todos esses perigos. Em nossa picada nem nos primeiros tempos registraram-se  encontros com esses bandos de selvagens, excetuando um único ataque. Em duas ocasiões  foram encontrados por acaso no  mato locais de fogo recente e lugares de acampamento dos bugres,  mas não chegamos a ver nenhum deles. Foi pelo menos assim que o velho Mathias Jung da Picada Café nos contou. No Rosental (na estrada de São José até o Jakobstal) de fato foram registrados ataques, assim como em Dois Irmãos, quando um certo Altenhofen foi morto. Parece que os selvagens evitavam os imigrantes e no começo estes não manifestavam muita curiosidade em seguir as pegadas dos nativos no mato. Curiosidade não deixa de ser algo bonito. Acontece que é preciso dispor de meios e de tempo pra satisfazê-la. Antes de mais nada  a busca da verdade precisa estar livre de perigos. Os colonos se contentavam em enxergar nos índios homens iguais a eles e criaturas de Deus que, por obra do destino, haviam baixado até aquele nível cultural. Não era de grande interesse dos colonos saber o caminho que os trouxe até esta parte do mundo e a que família humana pertenciam. Os entendidos que brigassem a respeito e que cada qual defendesse da melhor forma possível o seu ponto de vista. Para esses pioneiros na mata virgem, batalhando para satisfazer  as necessidades da vida, o fato de alguns os considerarem como originários da raça  malaia, outros como descendentes dos Fenícios, outros ainda como fruto de uma mistura entre os nativos da terra e de tribos imigradas do oeste, não passava de uma preocupação de segunda ordem. Para eles importava levar uma existência pacífica, protegida dos assaltos dos selvagens. Por essa razão os colonos costumavam construir suas moradias próximas umas das outras, em vez de dispersá-las  pelo mato, para, na eventualidade de um ataque, estarem em condições de se ajudarem mutuamente, com maior  presteza e maior possibilidade de êxito.







Deitando Raízes #4

Depois de termos examinado a Crônica como um documento importante para demonstrar que os imigrantes alemães, desde muito cedo, começaram a jornada de inserção no contexto geográfico e sócio cultural da nova querência, chamamos a atenção a uma série de outras informações preciosas nela contidas.
Além de oferecer de dados importantes que apontam para uma inserção precoce do imigrante alemão no entorno que encontrou no Sul do Brasil, constitui-se numa fonte não menos valiosa para outros aspectos importantes. Um deles é especialmente significativo. O Pe. Schlitz, seu autor, soma-se a outros jesuítas que vieram da Alemanha para dar assistência pastoral aos imigrantes alemães. Acontece que a atuação desses religiosos inseriu-se no contexto do Projeto da Restauração Católica, então patrocinado pela Igreja. Dessa forma eles atuaram como agentes de vanguarda no Brasil  desse Projeto universal da Igreja. É do conhecimento geral de que a Restauração Católica significou essencialmente um retorno à doutrina e à disciplina do Concílio de Trento. Tomando esse fato como ponto de partida entende-se o estilo pastoral revelado nas páginas da Crônica e, ao mesmo tempo, o seu choque com o catolicismo luso-brasileiro e a metade protestante dos imigrantes alemães de Bom Jardim. É historicamente conhecida a situação doutrinária e disciplinar do catolicismo luso-brasileiro. As circunstâncias históricas e o entorno social, político e econômico, imprimiram-lhe um perfil próprio. O regime de padroado vigente durante o Império, fez  com que as fronteiras entre o Estado e a Igreja, não fossem claramente identificáveis. O catolicismo era a religião oficial do Estado e o Imperador também chefe da Igreja. A criação de dioceses, paróquias e capelanias, exigia a chancela das autoridades civis. A nomeação dos bispos, párocos e capelães e demais postos da hierarquia, dependiam da aprovação das autoridades do Estado. A união entre a Igreja e o Estado, sendo  a religião católica a oficial, fez com que as demais fossem apenas toleradas e determinados atos seus considerados à margem da lei. Aos protestantes vedava-se, por ex., o sepultamento em cemitérios públicos, os prédios em que oficiavam seus cultos eram proibidos de ostentar sinais externos de templo e seus matrimônios considerados  ilegítimos ou concubinato. Sob muitos aspectos essa realidade condenou os imigrantes protestantes à marginalização. Com o correr dos anos alguns arranjos e algumas brechas na legislação fizeram com que as décadas finais do Império, fossem menos desconfortáveis para os protestantes. Em poucas palavras, os católicos encontraram uma Igreja submissa e dependente dos caprichos dos governantes e administradores civis. A doutrina, a fé e os bons costumes pouco ou nada contavam ou decidiam. O Imperador era, de fato, a autoridade maior, enquanto Roma contentava-se com a  ratificação os atos dos detentores do poder, tanto civil quanto eclesiástico.
Para os imigrantes vindos da Europa do Norte e Central o tipo de clero que respondia pela cura das almas deve ter no mínimo causado surpresa. A disciplina clerical não era seu forte. Um grande número de sacerdotes era filiado à maçonaria. Outros tantos entregavam-se a atividades políticas, outros eram fazendeiros ou dedicavam-se  qualquer outra ocupação, menos a efetiva cura de almas. No seu quotidiano como párocos os sacerdotes dependiam da vontade dos políticos, dos detentores  do poder econômico, que ditavam e impunham as normas nas freguesias, nas capelanias e nas confrarias.
Os milhares de quilômetros que separavam os sacerdotes  nas suas estações pastorais  da sede episcopal, até a década de 1850, no Rio de Janeiro, impediam o bispo de exercer um  mínimo  de vigilância e dar conforto. O clero estava entregue a si mesmo. E não é de admirar que se deixasse influenciar e, na maioria dos casos, fosse vítima do clima profano em que vivia. A atividade pastoral limitava-se ao cumprimento da rotina burocrática de batizar, legitimar os matrimônios e encomendar os defuntos, rezar missas e presidir as cerimônias e festividades religiosas.  Mesmo nessas funções via-se coagido a observar os costumes e rituais impostos pelas lideranças leigas da freguesia que, na maioria dos casos, pouco ou nada tinham a ver com autêntico catolicismo.
Nessas circunstâncias de abandono e, ao mesmo tempo, tutela tirânica do Estado e do espírito mundano laico, entende-se que a disciplina  clerical sofresse sérios arranhões. A participação de sacerdotes nos acontecimentos profanos e da vida mundana e a não observância do celibato, tornaram quase regra. O sacerdote vivendo com uma companheira e com filhos já não causava surpresa. A situação  não era só tolerada como aprovada e aceita pelos fiéis. O clero costumava envolver-se em negócios profanos, amealhando em muitos casos fortunas apreciáveis e exercendo grande influência política.
 Nessas circunstâncias a Igreja como instituição desempenhava o papel todo peculiar. Quem de fato mandava na freguesia eram as lideranças locais, os chefes políticos, os donos do poder econômico, os comandantes das guarnições militares, os provedores das irmandades, etc. As práticas do culto, as cerimônias e os rituais, atendiam, antes de mais nada, aos caprichos dos e não às exigências do culto divino. Sacerdotes pouco ou nada recomendáveis pela conduta pessoal, celebravam a missa e administravam os sacramentos, conforme as normas ditadas pelos mandatários de plantão. Em sua prédicas nas missas e falas por ocasião de batizados, matrimônios e encomendações discorriam sobre o que agradava aos presentes. Não havia espaço para uma verdadeira vida sacramental. Predominavam festas e procissões ruidosas, nas quais o profano costumava mascarar o religioso.
Em resumo. Os imigrantes encontraram uma Igreja que exibia os defeitos e sofria dos vícios e distorções que o regime do padroado terminou por imprimir. A seu serviço encontrava-se um clero, distante e alheio aos  princípios doutrinários e preceitos disciplinares, ditados por Roma. Encontraram uma Igreja sufocada por uma mentalidade que se esgotava em rituais e manifestações mais profanas do que religiosas. Encontraram  uma Igreja carente da verdadeira piedade, carente de fé, carente de vida sacramental.  (Cf. Rambo A. B. A Igreja dos Imigrantes. in 500 anos do Brasil e a Irgeja na América Meridional, org. Martin N. Dreher, Ed. EST, 2002, p. 58-59)
Pelo que se pode deduzir a esse respeito da Crônica, o catolicismo luso-brasileiro não conseguiu firmar pé na região de Bom Jardim em particular e na região colonial como um todo. Embora se encontrasse nas duas primeiras décadas sob a jurisdição da freguesia de São Leopoldo, os contatos com a sede paroquial eram poucos e os estritamente indispensáveis. Para tanto contribuíram de modo especial três fatores: a língua, a distância e os cultos organizados pelos próprios colonos em suas comunidades. O pároco de São Leopoldo não entendendo o alemão, limitava-se nas suas visitas esporádicas a rezar missa, batizar e regularizar os matrimônios. Não fazia sentido pregar, ministrar catequese ou ouvir confissões. Só na fase preparatória da instalação da paróquia os colonos tiveram ocasião de experimentar, muito de passagem, o que era o clero que representava o espírito luso-brasileiro. A partir de 1849 a comunidade de Bom Jardim contou com visitas intermitentes do Pe. Lipinski de Dois Irmãos ou do Pe. Sedlac de São José do Hortêncio. Em 1859 o bispo nomeou um capelão residente em Bom Jardim, na pessoa do Pe. Johannes M. Traube. Embora alemão e um bom pregador, levava uma vida nada condizente com a  sua condição de cura de almas. Conforme conta o Pe. Schlitz na Crônica organizava reuniões dançantes  na sua residência e participava delas. Envolveu-se numa séria polêmica com o bispo diocesano, valendo-se de uma linguagem agressiva nas suas cartas e escritos. O bispo exonerou-o de suas funções e, pelo que consta, os protestantes o teriam sondado para ser seu pregador, o que de fato não aconteceu. Essa foi a vivência mais importante dos colonos alemães com o espírito do catolicismo luso-brasileiro. Pelo visto não fez            estragos pois, foi transitória e limitada ao convívio de um sacerdote em particular e não inserido numa comunidade mista com luso-brasileiros.
Depois de alguns anos de uma assistência  religiosa irregular, Bom Jardim foi elevado à condição de paróquia autônoma em 1859 e confiada as padres jesuítas. O fato  se deu um pouco antes da celebração do Concílio Vaticano I. Nele foram definidos a doutrina, os preceitos morais e as normas disciplinares eclesiásticas que deveriam nortear a implantação da Restauração Católica. Acontece que os jesuítas por tradição e por imposição do seu estatuto, alinham-se na vanguarda da Igreja e costumam ocupar postos avançados na implantação de seus projetos. Nada mais normal, portanto, que batalhassem  para tornar a Igreja Restaurada uma realidade entre os colonos alemães. Entende-se que abraçassem a tarefa com o fervor, diria quase com o furor de pioneiros. Essa característica é flagrante e subentendida  nas passagens da Crônica que se ocupam com a ação pastoral e o espírito religioso daquela comunidade. Para entender o autor  ao definir a autoridade e a competência do pároco, do bispo, do papa, é preciso situar-se numa realidade  histórica em que a hierarquização e, conseqüentemente, a hierarquia na Igreja, era levada ao quase extremo, pois, constituía-se  num dos pilares mestre sem o qual todo o Projeto da Restauração  estava comprometido. No mesmo sentido vai a exigência, próximo ao exagero, ao ressaltar a necessidade da pureza doutrinária, a correção dos costumes e o comportamento ao fustigar as aberrações e desvios . Riolando Azzi, estudioso das questões da História da Igreja, assim definiu a discrepância entre a cristandade luso-brsileira e o cristianismo da Restauração Católica, que ele chamou de Cristandade Clerical.
“Daí surge uma diferença bem significativa entre a Cristandade Luso-brasileira e essa nova Cristandade em formação. Na Cristandade colonial predominava a idéia de que a instituição eclesiástica fazia parte  integrante do próprio estado lusitano católico.  A fé, portanto, permeava as próprias instituições políticas. Já nas áreas de imigração existe uma separação muito nítida, entre as manifestações religiosas e a esfera política do Estado brasileiro, geralmente minimizada ou ignorada. Na medida em que padres seculares se instalaram na região dos imigrantes, as vinculações mais expressivas serão feitas com a Santa Sé. Por isso, ao analisar o catolicismo de imigração no Rio Grande do Sul, Luis de Boni chega a indicar a formação de um verdadeiro “estado papal”.  (Rambo, A.B. A igreja dos Imigrantes ... idem p. 63)
Na nota introdutória da Crônica o autor deixa claro que entre os motivos que levaram a escrevê-la, sobressaem dois. Em primeiro lugar  não deixar cair  no esquecimento a história de Bom Jardim: os começos na mata virgem; o envolvimento dos colonos nos acontecimentos históricos como a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, a Guerra contra Rosas, o episódio dos Mucker, o surto de varíola, a Revolução Federalista; a progressiva inserção  na comunidade nacional; a evolução e a consolidação da colonização sob todos os seus aspectos.
Em segundo lugar  fixa-se a Crônica na  história da paróquia e da comunidade católica. Se sob todos os aspectos relata até às minúcias a história local, não deixa de ser uma amostra paradigmática para a colonização alemã no Sul do Brasil em geral e ao mesmo tempo não deixa de ser uma história confessional, por declarar ser uma história da comunidade católica. Com isso fica faltando a história da comunidade protestante, levemente mais numerosa. Em luar nenhum na Crônica o Pe. Schlitz se refere em tom de animosidade contra os protestantes. Não faz referência aos pontos de conflito mais comuns relativos aos restrições aos casamentos mistos e padrinhos protestantes em batismos de católicos.
Concluindo vale dizer que a Crônica de Bom Jardim representa um documento precioso, único e indispensável para se formar uma opinião ojetiva dos primeiros 70 nos da colonização alemã no Rio Grande do Sul, com o foco local mas numa perspectiva regional.

                                                                                                                 Arthur Bl. Rambo