Deitando Raízes #6

Capítulo segundo
A vida de família na mata virgem

A geração de hoje tem em grande parte a percepção errônea  de que no começo a coisas passavam-se como acontecem no presente. Trata-se de um grande equívoco desmentido por todos os representantes e testemunhas dos velhos tempos. Foram, sem dúvida, tempos difíceis dos quais os velhos e veneráveis pais fundadores nos falam. Os nossos descendentes não fazem a menor idéia daquilo por que nós passamos. Na verdade aquele senhor tem toda a razão. Os velhos veteranos e o povo jovem deveriam dar mais atenção àqueles testemunhos e, antes de mais nada, refletir sobre os caminhos pelos quais os antepassados realizaram tamanha obra. Baseando-nos nos relatos sobre os começos, transportemo-nos para uma daquelas casas de   colono e observemos com atenção. Enxergamos paredes nuas, nem sequer revestidas com barro, muito menos caiadas. Apesar de tudo encotramos nelas alguns quadros envelhecidos de santos, ou um crucifixo e um recipiente para água benta,  recordação ou herança da família, preservada com grande apreço apesar da pobreza. Estes objetos diziam mais ao coração do que qualquer outra coisa.
Naquela época nem vestígio de (06) móveis caros como os que temos hoje. No assoalho de terra  socada foram Sobre cepos fixados no chão batido  armava-se a mesa. Em lugar da cozinha havia um lugar para o fogo perto da casa. Na maioria dos casos consistia numa cova e algumas forquilhas de madeira. Nelas suspendia-se o tacho e as panelas erram penduradas num vara transversal. Não havia necessidade de um armário de cozinha porque não havia talheres para guardar. Os demais utensílios domésticos não passavam  de algumas peças trazidas da terra natal. Seu valor consistia mais nas recordações que despertavam do que no valor do material de que eram feitos. Tudo que havia de livros na casa, resumia-se num livro de orações, mesmo este não poucas vezes velho e roto. Ao abri-lo podia-se ler a comovente despedida de algum amigo querido, ou de um pároco zeloso, que oferecera o livro como o melhor dos anjos da guarda, para a viagem dos seus filhos espirituais. Observamos como a família se reúnia pela manhã  em volta da mesa para a oração e o desjejum. Não havia nem tigelas, nem chaleira para o café, nem leiteira, que hoje acenam tão convidativamente da mesa do colono. Muito menos havia manteiga ou pão perfumado e crocante, que até os dentes velhos conseguem moer com facilidade. E lugar das magníficas coisas de hoje, o olhar do visitante encontrava a panela com mingau de abóbora e farinha grossa de milho, por muito tempo presenças fiéis na mesa. Mesmo que não parecesse tão apetitoso era consumido com avidez e todos mostravam boa saúde, assim como o trabalho pesado o exigia. Depois do desjejum era hora de partir para as tarefas do dia. Em linhas gerais não diferiam muito das de hoje, com a diferença de que eram incomparavelmente mais trabalhosas por causa do desconhecimento dos métodos de trabalho. O braço do colono tomava o lugar do boi e do cavalo. Estes só mais tarde o iriam socorrer.
Ao meio dia indicado pela posição do sol, os membros da família reuniam-se para o almoço, de forma alguma tão farto como hoje. Em situações muito especiais choviam pedacinhos de carne fresca ou seca no indefectível mingau de abóbora ou milho quebrado. Observava-se o mandamento da abstinência  nas sextas feiras e ninguém achava que não era possível dar conta da tarefa diária sem carne, freqüente motivo de desculpa ou incriminação  à Igreja, da parte daqueles católicos que se julgam mais sábios do que ela. Nunca se ouviu dizer que por essa razão, os antigos tivessem tido ossos mais fracos e faces menos rosadas. A que colono de hoje teria agradado um almoço como aquele. Com certeza preferiria ser convidado para  jantar com a esperança de encontrar algo melhor. Evidentemente assim como o dia começou com mingau de abóbora e milho quebrado, assim também  terminaria.
Chegou o momento de examinar os leitos. Eram tão simples quanto imagináveis. Consistiam em algumas esteiras, alguma roupa de cama que superara as peripécias da viagem. Apesar disto exerciam uma admirável atração depois de tamanha jornada diária. Propiciavam um sono restaurador a não ser que algum rapaz de peito robusto levasse o ruído da serra, utilizada nas tarefas diárias, para o silêncio da noite. Enquanto as pessoas dormem vamos dar uma olhada no guarda-roupa.  Ao cabo dos primeiros anos as velhas roupas estavam gastas e puídas. As mulheres fiavam e os homens  teciam o algodão. Esses tecidos não permitiam grande  luxo. Não eram finos mas duravam tanto mais. Depois de levantar não era preciso tratar o gado pelo simples fato de que, na maioria dos casos, (07) não havia nem vacas, nem cavalos e só muito mais tarde foram adquiridas galinhas e porcos. Se alguém pusesse às avessas todos os bolsos e vasculhasse em todos os cantos não  encontraria um único Thaler [1] e muito menos uma onça de ouro. [2] E pergunta-se: donde viria dinheiro? Primeiro foi preciso abrir uma roça  para garantir o sustento da família e, mesmo mais tarde quando a produção se tornou mais abundante, não havia como convertê-la em dinheiro. Faltavam estradas e meios de transporte e os mercados de consumo localizavam-se a distâncias enormes. Vamos sair da casa e voltar a atenção para a roça. Os pés de milho e a mandioca estão em crescimento, no mesmo lugar onde na outra estação cresciam as abóboras. Naquela época o nosso feijão preto que era vendido em Porto Alegre a 30 mil réis, ainda não era cultivado. Em seu lugar plantava-se feijão de cor. Não sabíamos bem como semeá-lo e colocávamos punhados nas covas. Batatas não havia. Quando mais tarde as sementes estava disponíveis, além de pequenas,  custavam dois mil réis a quarta. [3] Muito primitivas eram as nossas ferramentas agrícolas. Não dispúnhamos de arados, somente foices para roçar, machados, facões e enxadas. Com eles nos defendíamos muito bem no clima magnífico. Já que falamos de clima é preciso  acrescentar que, na época, o inverno era menos rigoroso do que hoje. Conforme a recordação das pessoas, nevou apenas duas vezes em 1828 e os flocos mal tocaram o chão. Somente em alguns lugares mais protegidos conservou-se por algumas horas.
A falta de dinheiro foi o grande obstáculo para o nosso progresso. Com os preços irrisórios da época era possível adquirir tudo com facilidade. Mas como ganhar dinheiro? Tínhamos ouvido que no interior era possível adquirir um bom pedaço de terra por meio de um contrato de trabalho junto aos grandes estancieiros. Três homens de Bom Jardim aventuraram.-se na busca deste tipo de trabalho. Friedich Cremer, um certo Neulinger e Johannes Finger, na época com 15 anos, encontraram trabalho na estância do major Adolfo, dez horas distante de São Gabriel. Era uma estância no velho estilo, várias léguas quadradas, na qual se criavam mais de 20.000 cabeças  de gado, entre vacas, bois, mulas e cerca de 3.000 cavalos. A estância subdividia-se nos assim chamados currais. Fomos colocados no curral do Pedro. O nosso trabalho consistia, como conta Johann Finger,  em abrir valas e erguer uma comprida taipa de pedra. Nos dez meses que passamos ali nos familiarizamos com a vida e os hábitos dos brasileiros e também um pouco com a língua. Aquela vida representou para nós uma mudança bem agradável. Comparando a comida com a da mata virgem, vivíamos na fartura. Cada três dias uma ou mais reses eram abatidas, havendo assim carne de sobra. Aprendemos a fazer churrasco e com o muito treino tornamo-nos mestres nessa arte.
Chegamos quase a enjoar da carne devido à facilidade de obtê-la, fazendo com que nos deleitássemos também com pratos  à base de ovos, abundantes, pois, no curral criavam-se 200 galinhas, alimentadas não com milho mas com as sobras de carne e miúdos.  O milho era bastante raro e mais rara ainda a farinha. Uma quarta custava um patacão. [4] Registramos aqui como curiosidade que o major Adolfo numa das suas voltas ofereceu uma grande festa. Enquanto eram servidos à vontade assados suculentos e, para provar que a farinha era algo fino, passava uma tigela de café com farinha para oito a vinte convidados. O pão era outra raridade, que poucas vezes nos era oferecido. E que festa quando, por ocasião de festividades, uma fatia de pão era distribuída para meia dúzia de peões. Mostravam-se mais alegres do que os filhos dos colonos sentados ao redor de uma bacia com cuca. O sal não era apenas muito caro como muito difícil de se conseguir. Nós trabalhadores nos (08) valíamos da cinza para temperar os alimentos. Com o andar do tempo a gente se acostumou a tudo. Descobrimos assim que é possível passar muito bem só com carne e, note-se bem, a carne que nos era oferecida era sempre de primeira qualidade, uma raridade que nos vem entre os dentes hoje. Éramos servidos à vontade quatro vezes ao dia. Garantia energia por dentro e por fora. Tanto o estômago como os braços sentiam-se renovados e bem dispostos para o trabalho.
Mas o que aqui deve ser ressaltado de modo especial, é o fato de que a nossa permanência de 10 meses no interior da província, rendeu-nos uma bela soma para levar de volta para a nossa picada. Com 100 mil réis no bolso foi possível adquirir mais para as nossas famílias do que hoje com cinco contos. É o que fizemos. Compramos um cavalo e algumas vacas e o trabalho em casa tomou um ritmo acelerado. Porcos e galinhas podiam ser adquiridos por alguns trocados quando se dispunha de moedas de bronze a serem oferecidas no ato. Assim a maior parte do dinheiro foi gasto em questão de pouco tempo, porém, bem empregado. Podíamos olhar para o futuro com mais ânimo e redobrada esperança.
De maneira semelhante outros procuravam ajuntar pequenas somas, para com elas melhorar a situação da família. E, na medida em que os filhos cresciam os pais contavam com mais ajuda, permitindo o cultivo de mais produtos. Aos poucos abriram-se estradas e a circulação intensificou-se. Vendas foram instaladas, muito modestas no começo, mas com o tempo foram-se tornando mais bem fornecidas. Muitas coisas já podiam ser adquiridas nelas, mesmo que não fossem os tecidos finos e artigos de luxo que hoje oferecem. Não era preciso recorrer a este tipo de produto para cobrir as nossas necessidades diárias de vestuário. As mulheres faziam os fios de algodão e às vezes de linho e os homens teciam os panos rústicos para camisas e vestidos. Para casar hoje, quantos móveis, utensílios e roupas de cama não são exigidos. Naqueles tempos se a noiva tinha um vestido de chita e o rapaz um casaco do mesmo tecido ou, quem sabe, uma camisa de riscado, o enxoval estava completo. Quantos não cruzaram o portal do matrimônio com muito menos. Igualmente os chapéus  não eram artigos de luxo. Usávamos gorros feitos com pele de macaco que serviam perfeitamente na mata virgem, embora não nos atrevêssemos a ir com eles até a cidade junto ao "Passo." [5] Os sapateiros não tinham  motivo  de queixas por excesso de trabalho, pela simples razão de que homens, mulheres, crianças e anciãos, todos andavam descalços. Se por acaso alguém trouxe um par de botas velhas da Europa, junto com os poucos pertences, calçava-as somente nos dias mais festivos e julgava-se uma cabeça mais alto do que nos outros dias, quando se nivelava com os demais "pés no chão." Assim foram mais ou menos as condições comuns a todos os colonos. A vida diária seguia a sua rotina a não ser que alguma carta da família ou um acontecimento alegre ou triste, como nascimentos ou falecimentos, trouxessem alguma alteração. De qualquer forma foi assim que se fixaram indelevelmente na memória das pessoas, os primeiros anos por terem sido os mais trabalhosos e terem mexido mais com as emoções. Finalmente todos chegaram a um nível de vida livre de preocupações, o que significou, sem dúvida, uma grande vantagem em comparação com a velha pátria.




[1] Moeda alemã mais importante dos tempos modernos. Seu nome vem da cidade de Joachimsthal nas montanhas da Boêmia. Seu nome original foi “Joachimsthaler”.
[2] Moeda espanhola valendo 14.672 réis
[3] Oitava parte de um saco de sessenta quilos.
[4] Várias moedas portuguesas, espanholas, brasileiras e sul-americanas.
[5] O “Passo” correspondia ao local onde o rio dos Sinos permitia a travessia com carroças, cavalos e pessoas, à altura da atual praça do imigrante no centro de São Leopoldo.

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