Reflexões Avulsas - Palestra no IHSL

Ao analisar a lista dos sócios permanentes do Instituto Histórico de São Leopoldo, assim como os falecidos, os sócios correspondentes, os honorários e os que se afastaram por alguma razão, um detalhe chama a atenção. Além de historiadores por formação portadores desse título acadêmico ou por vocação, que se ocupam com temas históricos, participam no momento, especialistas titulados ou não em outras áreas. Estão representadas, além da História, a Arquitetura, a Antropologia, as Letras, a Literatura, a Linguística, a Educação, a Teologia e outros. A história do Instituto já contou com médicos, juristas, militares, economistas. E, as personalidades escolhidas pelos fundadores  como patronos de suas 30 cadeiras, apesentam o mesmo quadro interdisciplinar.

Perguntamos. O que é lícito concluir desse quadro? Que os fundadores do Instituto Histórico de São Leopoldo, conceberam-no como um fórum aberto  para oferecer oportunidade para se encontrarem pessoas que se dedicam à tarefa de preservar a importância histórica da contribuição dos imigrantes alemães, como proposta inicial e atualmente, de todas as vertentes humanas presentes na moldagem da fisionomia étnica, com ênfase para o sul do Brasil. Não é preciso chamar a atenção de que a perspectiva interdisciplinar proposta pelo Instituto e a consequente heterogeneidade dos seus membros  e das especialidades a que se dedicam, favorece uma grande multiplicidade de aproximações do conhecimento. Em outras palavras. O perfil do conhecimento da pessoa tem com determinantes o nível de formação, sua filosofia de vida, sua orientação religiosa, seu comprometimento social, ideológico e político, a metodologia, a linha teórica seguida, o método e as ferramentas utilizadas, etc. Tudo isso temperado pela forma original com que cada qual enxerga o mundo e as coisas.  

Já que o nosso negócio é o Conhecimento, proponho uma reflexão sobre este conceito para a reunião desta manhã, evidentemente sem a pretensão de esgotá-lo.

Falar em conhecimento importa em arriscar-se a lidar com um desses  conceitos passíveis de tantos e tamanhos entendimentos ou definições, que a pretensão de dar-lhe uma formulação compreensiva mínima, não é simples. A  primeira questão que se coloca é a pergunta de que conhecimento estamos falando? Conhecimento científico, conhecimento filosófico, conhecimento teológico, conhecimento histórico, conhecimento popular, conhecimento intuitivo, etc. etc. Como se pode ver , todas essas formas de conhecimento e outras mais  que lhe possam ser acrescentadas,  partem de objetos, níveis, perspectivas e métodos de aproximação diferentes. Se, portanto, optarmos por um deles como ponto de partida do nosso raciocínio, as conclusões a que chegarmos, serão inevitavelmente unilaterais e parciais. Qualquer que seja a escolha do caminho pelo qual o conhecimento deverá andar, este determinará o seu perfil teórico e metodológico. Assim o conhecimento histórico será sempre essencialmente histórico, embora incorpore mais ou menos subsídios buscadas em outras áreas do conhecimento,  como na filosofia, na geografia, nas demais ciências humanas, no direito, nas ciências naturais e outras. O mesmo é legítimo afirmar em todos os demais campos do conhecimento específico como Filosofia Natural, Física Atômica, Economia de Mercado, Matemática Financeira, Sociologia Urbana, História Moderna, Antropologia Social, etc., etc. o objeto especificado no adjetivo será tratado com as ferramentas teóricas e metodológicas sugeridas pelo substantivo. Em outras palavras. O caminho de aproximação e a compreensão de algum objeto, é aquele que é próprio da área definida pelo substantivo. Assim a  aproximação da Natureza é possível pela via filosófica, pela via matemática, pela via histórica, pela via química, pela via biogenética, pela via teológica, pela via econômica, e por aí vai. Conclui-se daí de que a via de aproximação de alguma objeto tem o seu traçado marcada pelas ferramentas teóricas e metodológicas próprias da abordagem feita. Assim o conhecimento pelo viés do matemático com seus modelos, fórmulas e cálculos, trairá inevitavelmente o matemático. Da mesma forma o conhecimento químico, histórico, filosófico, político, geográfico,  etc., trae o olhar do químico, do historiador,  do filósofo, do geógrafo, do político, do jurista ou de quantas especialidades e especialistas se estiver falando.

E para não ficar apenas em afirmações genéricas,  tentarei aprofundar um pouco mais a linha de reflexão esboçada. Parece-me que a grande mestra que é vida propõe-nos três lições a serem aprendidas. - A Primeira. Nenhuma proposta teórica e metodológica, por si só, contém potencial suficiente para dar uma resposta final e conclusiva para as questões de fundo, como são: a origem e o sentido do universo, da natureza e do homem e, em meio a tudo isso, o lugar ou não lugar de Deus. - A segunda. Além das abordagens convencionais pelo lado das Ciências Exatas, das  Ciências Humanas e do Espírito, outras aproximações não podem ser ignoradas como o Conhecimento obtido pela percepção difusa, intuitiva, quase instintiva, tão importante na orientação da conduta quotidiana das pessoas. -  A terceira.  Ninguém é dono da verdade. Melhor talvez. Ninguém descobriu, nem descobrirá sozinho a verdade, nem o cientista munido dos métodos e tecnologias mais sofisticados, nem o filósofo com seus mergulhos nos meandros da natureza das coisas e dos fatos, nem o homem comum com seu conhecimento intuitivo  quase instintivo, nem o teólogo por maior que seja a convicção da sua fé. Mais do que nunca é verdadeiro o ditado: “Doctrina Multiplex, Veritas una”  -  “As Doutrinas são muitas, mas a Verdade uma só”, ou conforme Nicolau de Cusa: “Ex partibus omnibus elucet totum – Pelas partes vislumbra-se o todo.”

Quando se trata de entender e explicar a natureza dos fatos e acontecimentos que dizem respeito ao homem e tudo que o rodeia e envolve, estamos habituados a tomar em conta como válidas, três aproximações com os respectivos instrumentos teóricos e metodológicos: os próprios das Ciências Naturais, das Ciências Humanas ou das Ciências do Espírito. Acontece que já se haviam passado dezenas e centenas de milhares de anos da história do homem, antes  que Francis Bacon formulasse o método “analítico indutivo” e o “sintético dedutivo”, como as duas  vias mestras para chegar ao conhecimento. A compreensão de Bacon sobre o como se constrói o conhecimento resultou da observação de como essa história se deu durante os longos tempos que precederam.

Fica então a pergunta: E antes, sobre que bases o homem construiu o seu conhecimento. Ao rastrearmos as veredas percorridas pelo conhecimento desde que estamos de posse de dados confiáveis, uma coisa parece certa. A partir do momento em que, em alguma data remota e em algum lugar não conhecido da terra, faiscou pela primeira vez a centelha da inteligência reflexa e o homem se fez homem, a pergunta pelo quando, o como e o porque da sua existência e do universo que o rodeava, fez parte das suas preocupações. Os fatos e fenômenos que acompanham a concepção, a gestação, o nascimento, o declínio e a morte, colocaram o homem de então frente a incógnitas que pediam explicação. O mesmo pode-se afirmar das realidades em sua volta: os ciclos do ano, as fases da lua, a trajetória quotidiana do sol, a floresta misteriosa, a majestade das montanhas, o firmamento coberto de estrelas, a fúria das tempestades, erupções vulcânicas, terremotos, passagem de cometas, etc. Tudo isso reclamava explicações,  sugeria razões de ser, sentidos, significados e simbolismos. E quais foram os instrumentos de que dispunham os caçadores, os pescadores, os coletores, os pastores nômades, os agricultores do paleolítico e do neolítico. Não muito mais do que uma percepção intuitiva, coisa muito próxima e em comum com instinto, estimulando a reflexão e alimentado a curiosidade e a imaginação. Foi em meio a esse cenário caracterizado por uma sobrevivência, baseada num misto de estímulos instintivos processados pelos potenciais da inteligência reflexa, que o homem foi consolidando as bases do conhecimento. Pois conhecer não significa apenas ter certezas matemáticas, demonstrações em laboratórios, observações e experimentos em estações experimentais, ou os dados fornecidos por telescópios orbitando no espaço. O conhecimento também não se limita aos resultados e às conclusões da lógica racional. O conhecimento é algo muito mais complexo. Ele busca como sempre buscou, a sua legitimidade na satisfação da curiosidade, no atendimento às necessidades, na resposta aos questionamentos e na contribuição que é capaz de dar para a realização existencial do homem.

A premissa de que o conhecimento é fruto da busca do homem por caminhos que o levam a decifrar-se a si mesmo e o mundo em que vive, faz concluir de que qualquer resposta neste sentido, é fruto de alguma forma de conhecimento.

O homem é um animal racional. Essa velha definição que nos foi passada quando arriscávamos as primeiras incursões nos meandros das incógnitas da nossa espécie, continua ainda hoje de grande utilidade para entendê-la. Na gênese, compreensão e evolução do conhecimento o “animal” e o “racional” no homem ocupam importância igual. Pela lógica da evolução, porém, nos estágios próximos do “animal”, componentes “não racionais”, (“não científicos”), predominam na natureza aparente do conhecimento. Nem poderia ser de outra forma. Em primeiro lugar, as realidades das quais procedem os estímulos e fornecem os elementos ou a matéria prima para a construção do conhecimento, encontram-se no entorno ambiental em que o homem vive. Em segundo lugar o acesso e apropriação dessa “matéria prima”, acontece via sentidos e no primeiro momento é elaborada pela percepção instintiva peculiar dos receptores. A nível animal a possibilidade de conhecer esgota-se nesse patamar. Por isso mesmo não se pode falar em conhecimento no rigoroso sentido do termo, quando se avalia o comportamento das espécies animais. Em se tratando, porém, do homem, entra a ação da reflexão. A relação interativa do homem com o meio não se esgota em repostas instintivas, padronizadas para todos os indivíduos de uma espécie, não ultrapassando o nível dos reflexos condicionados. No caso do homem entram em ação simultaneamente os estímulos de natureza instintiva e seu processamento pela capacidade de reflexão. Começa a construção do conhecimento.

Neste processo em que o instintivo e o intuitivo se aliam ao racional para gerar o conhecimento, é preciso lembrar  que o primeiro contribui com o “qualitativo” com que as coisas se apresentam, ou o valor em si das coisas, ou ainda, a natureza das coisas. À qualidade de que as coisas vêm revestidas pela própria natureza, soma-se  a qualidade que o homem atribui a elas. E é exatamente essa “qualidade atribuída”, que contribui de forma decisiva na construção do conhecimento. E como as “qualidades atribuídas” diferem de indivíduo para indivíduo, de cultura para cultura, os perfis do conhecimento são tantos quantos os sistemas construídos. Um bom exemplo é a água. Das suas qualidades naturais fazem parte a sua composição química, o estado físico que assume em diferentes temperaturas, sua importância na manutenção de todos os tipos de vida, etc. Essas qualidades independem da destinação que o homem lhe dá. Mas exatamente pela importância da água na natureza em geral e na vida em especial, o homem somou “qualidades atribuídas” às “qualidades naturais” da água. Os exemplos são muitos. Em determinadas tradições de certos povos, a água de uma fonte brotando das entranhas da terra  rejuvenesce, garante vida longa; a água benta nos rituais litúrgicos purifica, apaga pecados, cura enfermidades. Todos esses elementos e muito mais entram na formação do corpo de conhecimentos elaborados pelos povos nas mais diversas circunstâncias de tempo e espaço. Em termos, as constatações que vimos fazendo, são válidas para o fogo, a luz, as estrelas, o sol, os cometas, florestas, montanhas, vulcões, animais e plantas. Tanto as “qualidades naturais””, quanto as “qualidades atribuídas”  não podem ser ignorados, menosprezados ou diminuídos na sua importância ao avaliar-se alguma tradição cultural. Acontece, entretanto, que o homem ao tomar consciência da importância das qualidades naturais dos diversos elementos da natureza para sua própria existência, intui qualidades às quais termina atribuindo poderes que ultrapassam os potenciais químicos e físicos de uma fonte, de um terremoto, de uma floresta, do sol, da lua, de um vulcão, etc. Mais. Além de atribuir-lhes qualidades como poderes mágicos, sobrenaturais, personaliza-os como divindades, seres sobrenaturais, anjos, demônios, duendes, fantasmas, bruxas, etc. variando de acordo com as diferentes tradições culturais.

As “qualidades atribuídas” às realidades de que vimos falando, que compõem o cenário natural em que o homem vive, representam uma das faces da moeda que é o conhecimento. Não resta dúvida de que esse tipo de conhecimento predomina e é determinante na fase que poderíamos chamar de “infantil” na construção do conhecimento. Carente ainda das indispensáveis observações experimentais, métodos e equipamentos adequados, o homem valeu-se dos recursos com os quais a natureza o dotara: a observação, a comparação, a análise, a seleção, a experimentação, a curiosidade e a imaginação. E assim, quase como que “farejando” a natureza, foi  atribuindo significados, simbolismos, atributos ao que observava, dando forma e coerência aos corpos de conhecimento, equivocadamente desqualificados como “primitivos” e “não científicos”. 

Na medida, porém, em que o homem penetrava nos meandros da natureza em sua volta e se dava conta  da incógnita complexa que ele próprio era, crescia a curiosidade e a necessidade de entender “como” funcionava, e ao mesmo tempo, assumir o controle do seu destino. Ora, esse passo significou uma reviravolta de proporções difíceis de dimensionar. De dependente do entorno em tudo o homem passa a equipar-se com os instrumentos e as tecnologias que o habilitaram gradativamente a entender, prever e controlar situações e acontecimentos. A partir dai o componente “quantitativo”, vai assumindo importância crescente na construção do conhecimento. Com a Renascença e definitivamente com a Modernidade, chegamos ao ponto de o Racionalismo Científico, de um lado, e o Racionalismo Filosófico do outro, desqualificar tudo que não é experimentalmente aferível e/ou logicamente deduzível. Como cada qual se vale dos métodos de aproximação, definidos por Francis Bacon (1561-1626) como “analítico indutivo” das Ciências Naturais e “sintético dedutivo” das Ciências do Espírito, o conflito foi uma questão de tempo. O auge desta disputa inglória, para não dizer  irracional, aconteceu na segunda metade do século XIX, alimentada pelo Monismo Materialista de Ernst Haeckel, Huxley, Morgan e muitos outros, inspirados na obra de Darwin, “A Origem das Espécies” e pela atitude radical assumida pela Igreja Católica no Concílio Vaticano I e de modo especial no pontificado de Pio X, na primeira década do século XX. Não é aqui o lugar para entrar mais a fundo nessa disputa inglória, inútil, que prejudicou a construção do Conhecimento e na qual só houve perdedores.

Mas para que as reflexões que estamos fazendo a nível abstrato, tornem a questão da produção do conhecimento mais palpável, recorro a um exemplo tão antigo quanto a própria humanidade: A Astrologia. O interesse por ela permanece em alta até hoje. Todo o progresso da pesquisa científica e, principalmente, os resultados espetaculares no campo da astronomia, física, química, biologia, biogenética, não a ofuscaram. Sua cotação na camadas populares continua crescendo e o seu prestígio entre as pessoas cultas e muito cultas permanece em alta. O termômetro são os horóscopos publicados diariamente nos veículos de comunicação, direcionados a todos os públicos. A Astrologia vem a ser um desses exemplos emblemáticos, de como o ponto de partida, a raiz, a base do conhecimento alimenta-se da síntese entre os elementos  dados pela natureza, no caso os astros e as necessidades materiais a serem atendidas, as incógnitas a serem desvendadas e os problemas existenciais a serem resolvidos. Entregue à capacidade reflexiva do homem termina por consolidar o corpo de conhecimentos da Astrologia. Seu foco é um conhecimento que tem como centro o componente “qualitativo” na avaliação dos astros. A própria origem etimológica da palavra aponta para esse sentido: “Astron = Astro” e “Logos = Ciência, Essência, Natureza, Qualidade.

Como, entretanto, o homem, além de dotado de instinto, intuições, emoções, sonhos e desejos, é portador de inteligência reflexa, a síntese do conhecimento que vai elaborando, conta com o concurso da reflexão. A razão e a lógica insistem em obter respostas para, o “como”, o “quando” e o “quanto”, garantindo certezas assim denominadas “científicas” e/ou “racionais”. Recorrendo de novo ao exemplo dos astros. A Astronomia como ciência exata nasceu da Astrologia para lhe conferir legitimidade objetiva. O significado etimológico dos dois conceitos o comprovam: Astrologia, como já vimos vem de “Astron – astro” e Logos – palavra – essência, qualidade, ciência”  - Astronomia vem da combinação do termo “Astron – astro”  e “Nomos – número, ciência”.

Os gigantescos avanços e conquistas em todos os campos da pesquisa científica, levaram muitos cientistas e vastos setores da opinião pública, a prever o desvendar de todos os meandros ainda não contabilizados pelo esforço científico. Acontece que exatamente do meio das ciências e de representantes seus dos mais conceituados, parte o alerta de que o universo, a natureza e especialmente o homem guardam segredos que escapam aos potenciais do método analítico indutivo e desafiam a lógica racional. O alerta já foi dado há mais de meio século por Teilhard de Chardin, ao chamar a atenção de que: “A análise, esse maravilhoso  instrumento ao qual devemos  todo o progresso, esconde uma face que não podes ser esquecida. De tanto desmontar chegamos ao ponto de nos flagrarmos frente a um amontoado de peças dispersas e de partículas que se esvaem”. A intuição, a percepção, o farejar a natureza voltam discretamente como caminhos válidos para o “conhecer”, quando a análise indutiva e a síntese dedutiva convencionais, já não dão conta do recado.

Diante da dificuldade de harmonizar as Ciências da Natureza com o sistema Aristotélico-Tomista, o Pe. Balduino Rambo pergunta se não entra em questão o abandono das vias convencionais da produção do conhecimento ou, pelo menos, chamar em socorro o velho Platonismo com sua linha de pensamento e aproveitar das escolas convencionais somente aquilo que se enquadra nas leis perenes do Pensamento Humano, porque,

Entre a Ciência e a Fé (entre as Ciências Naturais, Filosofia, a Teologia, as Ciências Humanas, as Letras e Artes, inciso do autor) estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa senão o conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado e da expressão imediata da palavra, como do som subliminar que emite e da ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana, até hoje se prestou muito pouca atenção. Bem considerada ela não é um som secundário, e sim a nota dominante no concerto musical do espírito dinâmico do homem. (Rambo, Balduino, 1994, p. 265)

A intuição teve em Jean Jacques Rousseau a sua reabilitação como forma legítima de conhecimento. A percepção  das realidades naturais pelos sentidos resulta na construção informal e espontânea dos corpos de conhecimentos elaborados pelas mais diversas culturas. Com sua autoridade incontestável, o grande filósofo da  modernidade, deixou claro de que o homem busca a matéria prima do conhecimento no mundo ambiente  em que vive e apropria-se dela por meio dos sentidos. A forma peculiar como essas percepções são elaboradas depende da natureza de cada uma delas, do entorno cultural em que é recebida e da maneira única pela qual é percebida e elaborada pelas mentes dos indivíduos. Rousseau, filósofo que era, contentou-se em apresentar ideias sem sinalizar para finalidades práticas. Talvez não percebesse o tamanho do potencial prático embutido na intuição como ponto de partida para construir o conhecimento. E o valor prático, inovador e revolucionário encontra-se exatamente no plano mais sensível e mais determinante da vida individual e coletiva: a Educação.

Quem, como nenhum outro, percebeu o alcance do conhecimento intuitivo como instrumento pedagógico, foi Pestalozzi, conterrâneo e contemporâneo de Rousseau. Ele fez da intuição, ou se preferirmos, da percepção sensorial, a razão de ser, a base da sua filosofia educacional e do seu método pedagógico. A proposta de Pestalozzi veio a ser adotado como método oficial nas escolas da Prússia. Desde meados do século XVIII os reis da Prússia foram investindo na formação das novas gerações. Os resultados desse programa de educação a longo prazo e seus efeitos sobre a formação dos cidadãos é por demais conhecida. Não é aqui o lugar nem o momento de aprofundar essa questão.

O Pe. Alfonso Borrero,  estudioso do ensino superior, expressou assim sua opinião sobre a importância do conhecimento intuitivo.

Especialíssima importância se dá na Pedagogia Moderna ao exercício da criatividade, que não supõe a indução e a dedução lógicas a partir de elementos conhecidos, mas tem como base principal a Intuição, um salto da mente humana ao encontro de algo, partindo de elementos prévios e, por assim dizer cria algo novo, que mais adiante é passível de aprimoramento posterior e procedimentos racionais, utilizando o raciocínio metodológico da indução e da dedução. Por isso, no exercício da criatividade que se vale da intuição, não se deixam de todo de lado, os métodos que conferem rigor ao pensamento racional. Adestram-se, isso sim, estratagemas novos, úteis para movimentar-se nas fronteiras do saber adquirido, passando pelas percepções intuitivas à construção do conhecimento. (ASCUN, 1992, nº 20, p. 15-16)

A importância em começar a educação das crianças incentivando-as a entrar em contato com o maior número possível de estímulos vindos das mais diversas realidades que se encontram no seu entorno ambiental, tem, atualmente, em Edward Wilson um dos adeptos mais entusiastas. Há mais de 50 anos professor de Entomologia na universidade de Harvard, consta entre os maiores conhecedores de insetos em atividade. O cenário com que trabalha é obviamente a História Natural, campo onde desenvolve sua especialidade. No capítulo 15 do seu livro: “A Criação – um esforço para salvar a vida na terra” (2008), apesenta uma proposta pedagógica destinada à educação da criança a partir da natureza, oferecendo-lhe uma imersão progressiva nesse universo de surpresas sem conta que vem a ser a “mãe e a pátria ”do homem, como escreveu o Pe. Rambo na “Fisionomia do Rio Grande do Sul”. A certa altura escreveu:

A ascensão da Natureza começa na infância, portanto, o ideal é que a ciência  da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos da vida. Toda a criança é um naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar  a geografia, descobrir novos mundos – tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento  íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres. (Wilson. Edward, 2006, p. 158)

Wilson demora-se em chamar a atenção para o fato de que as raízes remotas do conhecimento devem ser procuradas entre os caçadores e coletores do paleolítico. Munidos com ferramentas as mais simples e rudimentares, a sobrevivência acontecia na total dependência do meio natural. Valendo-se dos cinco sentidos como janelas, como pontes de contato e relação como o meio ambiental, foi obtendo as informações necessárias para a sobrevivência. Orientado pelos instintos, instrumentalizados pela intuição e os resultados postos à disposição da reflexão, o homem foi consolidando os fundamentos para o conhecimento. A partir daí, farejando, por assim dizer, o seu entorno, foi somando observação à observação, experiência à experiência, intuição à intuição, explicação à explicação, resposta a resposta, consolidando, numa progressão geométrica os corpos do conhecimento entre os grupos humanos. O aperfeiçoamento progressivo dos conhecimentos e o desenvolvimento paralelo de tecnologias de ação, facultou ao homem a superação dos condicionamentos naturais de um lado. Do outro levou a um distanciamento cada vez maior “desta sua mãe e pátria”, ao ponto de nos grandes centros urbanos viver-se num ambiente totalmente artificial. Mesmo assim, Edward Wilson observa:

Os instintos  ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques e jardins,  nos esportes da caça e pesca, tão estranho, pensando bem. Os americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que em eventos esportivos profissionais, e ainda mais tempo em áreas protegidas dos parques nacionais, cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas nacionais e reservas naturais – isto é – nas partes que permanecem intactas – gera uma renda de mais de 20 bilhões de dólares por ano ao País. A televisão e o cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da Natureza virgem. Um símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo, tipicamente localizada em ambiente pastoral ou natural. Ela serve como refúgio para quem deseja encontrar paz de espírito e como ponto de retorno a algo que foi perdido, mas não esquecido. (Wilson Edward, 2006, p. 159)


Acabamos de citar nominalmente um entomologista de renome internacional – Edward Wilson, um botânico também de reconhecimento internacional – Pe. Balduino Rambo, um especialista em educação superior,  - o Pe. Alfonso Borrero, Jean Jacques Rousseau, um dos mais importantes filósofos da Modernidade e Pestalozzi, ícone dos Pedagogos. A esses nomes somam-se outros de referência obrigatória na galeria das expressões máximas em suas especialidades.

Francis Collins especialista em Genética Humana e diretor do Projeto Genoma Humano, responsável pelo mapa genético do homem, em seu livro “ A Linguagem de Deus”, escreveu a certa altura, não sem um toque de emoção claramente perceptível nas entrelinhas:

Apesar de eu, no fim das contas, passar da ciência física à biologia, essa experiência de originar equações universais tão simples e belas, que descrevem a realidade do mundo natural, deixou em mim uma impressão profunda, em especial porque o resultado definitivo tinha um grande apelo estético. Isso levantou a primeira de várias  perguntas filosóficas acerca da natureza do universo físico. Porque a matéria se comporta dessa maneira? E, citando uma frase de Eugen Wigner: que pergunta: Qual seria a explicação para a “inexplicável eficiência da matemática?” Collins responde: Nãos seria nada além de um feliz acidente ou seria uma referência a alguma intuição profunda da natureza de ter encontrado o divino?. Collins cita ainda “Uma breve história do tempo” do físico Stephen Hawking, com a observação de que Hawking, “em geral não é dado a contemplações metafísicas: ”Então poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns, participar sobre a questão de o porque nós e o universo existimos. E se encontrarmos uma resposta para isso, será o triunfo definitivo da razão humana, pois, então conheceremos a mente de Deus. Seriam essas descrições matemáticas da realidade, indicações de alguma inteligência maior? Seria a matemática junto com o DNA, uma outra linguagem de Deus?

No seu diário o Pe. Balduino Rambo nos brinda com páginas e mais páginas de vivências estimuladas pela intuição em contato com a natureza, em especial com florestas, que ele tratava como o seu “brinquedo predileto”. Duas amostras antes de concluir a nossa reflexão. Depois de descrever uma caminhada solitária pela floresta de sequoias no parque do mesmo nome, empolgado pela beleza, a variedade, a imponência dos gigantes  e a atmosfera de mistério e os simbolismos que inspiravam, anotou:

Sem querer a gente se descobre e se sente pequenino como um camundongo entre esses gigantes reunidos em conselho. Que cantos não teriam deixado os poetas do Antigo Testamento, que falam com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos gigantes do Monte Sião, se tivessem escutado a voz de Deus nessas floretas. Enquanto Davi e Salomão cantavam seus salmos: quando Isaias anunciava ao seu povo a vinda futura do Filho do Homem; quando Ezequiel contemplava o Senhor dos dias sentado no trono da sua glória, mais de mil anos já pesavam sobre muitas dessas árvores. (...) O canto de luto do paraíso, o canto da árvore da vida dos deuses germânicos, o canto de vitória da árvore da redenção. Toda a simbólica  nas sagas e na arte da humanidade toma conta do caminhante na penumbra mortiça dessa floresta. Há muitas verdades entre o céu e a terra que não se encontram nos livros. Revelam-se no silêncio da floresta. (Diário da viagem aos Estados Unidos em 1956)

Observando a paisagem do alto da garganta da Pedra Branca em Cambará, deu mais uma amostra do que é capaz a intuição de alguém que sabe ler as mensagens, os significados e os simbolismos da natureza.

São únicas as pinturas da natureza, como as da garganta da Pedra Branca, na bela terra de  Deus. Poderia se chamar o quadro de precipícios perpendiculares e de cataratas troantes, e névoas efervescentes e trovoadas uivantes, de mata silente e  escolhos altos, cheios de clarividências pétreas, pintura imperfeita, mas bem mais do que isso. É uma construção gigantesca de força e simplicidade que nunca para de rolar para frente. Alguém mora nessas profundezas que sussurram, alguém vigia nessas torres de observação. (...) Nunca esquecerei minha despedida da orla oriental. Meu cavalo avançou  à vontade pelo campo florido. Atrás de mim, as névoas condensadas, vindas do precipício rolavam pelo campo. Essa neblina fria rolou sobre mim e me envolveu. Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros. Agradeço a Deus e levo saudades desta terra hospitaleira. Se possuo uma pátria no mundo, ela está no planalto calmo e sereno, à sombra dos pinheirais. (Diário de Cambará, 1948).

A pergunta a essa altura é esta: Frente aos depoimentos trazidos, os quais afinal de contas são de representantes de diversos campos das Ciência Naturais, filiados  ou não a denominações religiosas, agnósticos, etc.,  o conhecimento pela Intuição, vem a ser a estrada real mestra, o Leitmotiv, que origina e legitima qualquer tipo de conhecimento. A razão é simples. A natureza humana desde que o homem se fez homem manteve-se inalterada na sua essência. Os mesmos medos, os mesmos temores, as mesmas esperanças, as mesmas perguntas existenciais, a procura de sentidos para sua própria existência e da natureza e do universo, e existência ou não de uma vida depois da morte, etc., etc., tudo isso e muito mais, vem intrigando os homens de todos os tempos e de todas as culturas e civilizações. Com essa matéria prima cada povo, cada cultura e cada indivíduo, procurou respostas no seu mundo ambiente característico e desta forma moldou o Conhecimento. Na construção do conhecimento concebido nesses termos, o esforço analítico indutivo da Ciência e o esforço sintético dedutivo da Filosofia, ocupam o lugar de reforço, como observou o Pe. Borrero na citação acima, para conferir mais segurança, maior credibilidade, mais legitimidade numa fase da humanidade em que, por assim, se exige o “preto no branco” como selo de validade para que algo seja digno de ser chamado de “conhecimento”.

A Ciência apenas possui então valor para cultivar o que o cientista tem de humano (Menschlichkeit) quando compreendida e praticada a partir do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado para o todo – coisa que foge à grande maioria dos pesquisadores atuais. A Ciência praticada como deve ser é uma recriação do mundo, semelhante à de Deus, dando assim em culto divino.

E aproveitando a sinalização deixada nesta citação que acabamos de ouvir, concluo com uma proposta de reflexão. As obras  que se tornaram clássicas, isto é, as que resistiram a séculos e até milênios, tanto na literatura, quando nas artes cênicas e plásticas, são aquelas que exploram exatamente aquilo que é o existencialmente humano no homem, a “Menschlichkeit”, naquilo que ela exibe de sublime, de quotidiano e também de  escuro e sombrio. Essa linha mestra,  “Leitmotiv” vale para as pinturas rupestres das cavernas do neolítico, das obras  imortais de Homero e demais clássicos da antiguidade, de Cervantes, de la Barca, Goethe, Schiller, Sheakespeare, Mansoni, Hamingway, Camões, Mozart, Bethoven, Wagner, Miguel Angelo, só para citar alguns.


Mas o humano no homem, a Menschlichkeit, expressa-se de um forma permanente no quotidiano das pessoas, na sabedoria popular que, também consolidada durante séculos e milênios, no que pode ser chamado de Conhecimento Condensado, que tem nos provérbios sua expressão mais autêntica. Quanto mais longa é a tradição de um povo mais emblemática é essa forma de expressar o conhecimento que as tradições consolidaram, como o conhecimento peculiar de cada uma, em relação do humano no homem e do entorno em que vive. Conhecidos e citados em toda a parte são os provérbios chineses, os provérbios romanos, russos, ingleses, alemães, franceses, etc. Abre-se aqui mais um território a ser explorado neste fantástico cenário em que o humano no homem, a “Mesnchlichkeit” avança pelos tempos moldando a história feita de luzes e sombras. O tempo não o permite. Obrigado pela atenção.

Reflexões Avulsas - Palestra no 25 de Julho

Exmo Sr. Presidente do Centro Cultural 25 de Julho e demais membros da Diretoria, senhoras e senhores associados e demais admiradores e amigos da herança cultural alemã.

O convite para proferir uma palestra por ocasião do 50º aniversário do Centro Cultural 25 de Julho, foi para mim uma agradável surpresa, uma grande honra e ao mesmo tempo significa uma enorme responsabilidade. Agradeço de todo o coração.

Quando me pus a refletir qual seria um tema digno e pertinente para uma ocasião de tanta relevância, vieram-me à lembrança dois momentos decisivos que marcaram a história dos descendentes dos imigrantes alemães no Rio Grande do Sul, dois momentos decisivos em que os teuto-brasileiros foram postas frente a desafios de grandes proporções. Foram obrigados a refletir seriamente sobre o lugar que lhes cabia ocupar na sociedade nacional brasileira. Falo da Primeira Guerra Mundial – 1914-1918 e da Segunda Guerra Mundial – 1939-1945. Nas duas a Alemanha acabou  derrotada, física e moralmente destroçada, economicamente arruinada, socialmente desorganizada e execrada pela opinião pública mundial. O reflexo mais visível dessa situação sobre os descendentes de alemães e, de modo especial, no Rio Grande do Sul, foi a desconfiança e a aberta hostilidade em relação a eles da parte dos demais segmentos étnicos, especialmente dos luso-brasileiros, somado a um profundo golpe na auto-estima.

No contexto dessas duas situações surgiram iniciativas em meio ao grupo teuto-brasileiro do Rio Grande do Sul, com a finalidade comum de recuperar a auto-estima em baixa, mostrar aos concidadãos de outras procedências étnicas, que os descendentes dos imigrantes alemães tem sido elementos úteis no todo da nacionalidade e, que a fidelidade à língua e às tradições em nada comprometia o seu patriotismo. Pelo contrario constituía-se num pressuposto para exercê-lo na sua plenitude.

Depois da primeira guerra mundial a iniciativa mais importante neste sentido foi da monumental obra organizada e, na sua maior parte  redigida pelo Pe. Theodor Amstad: “Hundert Jahre Deutschtum in Rio Grande do Sul – Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”, publicada por ocasião do primeiro centenário da imigração alemã em 1924, pelo “Verband Deutscher Vereine” –Federação das associações alemãs.

Terminada a Segunda Guerra Mundial, com a Alemanha novamente derrotada, destruída e arruinada, o Pe. Balduino Rambo, o Pe. Henrique Pauquet, junto com pastores protestantes, num esforço interconfessional, criaram o “Comitê de Socorro à Europa Faminta” – a “SEF”, com a finalidade de reunir alimentos não perecíveis, roupas, agasalhos e valores em dinheiro, para socorrer os  alemães na sua extrema miséria. Reerguida a Alemanha, os mesmos idealizadores da SEF, reuniram-se no dia 25 de julho de 1951, para fundar o “Centro Cultural 25 de Julho” tendo como objetivo “a pratica da língua alemã e contribuir para a preservação e aprimoramento do seus conhecimentos de literatura, técnica profissional e ciências, etc., sem prejuízo do idioma nacional... e difundir entre aqueles sócios que não conhecem ou conhecem pouco, de acordo com o critério no “Centro Cultural 25 de Julho”. Por meio do canto  e de outras atividades culturais o “25 de Julho”, transformou-se nos últimos 60 anos num dos grandes responsáveis pela preservação da identidade dos descendentes dos imigrantes de até sexta geração e responsável também pelo sadio orgulho que sentem pelo que foram e pelo que são. As realizações do “25 de Julho”, por serem mais recentes, estão na memória da maioria dos interessados no assunto. Por essa razão vou concentrar-me prioritariamente na situação criada pela Primeira Guerra Mundial, retratadas nas linhas e nas entrelinhas do “Hundert Jahre Deutschtum in Rio Grande do Sul – 1824-1924”.

Coube ao Pe. Amstad organizar e redigir a maior parte do testo desta monumental  publicação oficial em comemoração ao centenário da imigração alemã no Rio Grande do sul. A obra foi encomendada pelo “Verband Deutscher Vereine e publicada  pela Typographia do Centro em 1924. Trata-se, a meu juízo,  de uma das obras de leituras básica para qualquer um que queira familiarizar-se com a história da imigração alemã no Sul do Brasil. Na apresentação aparece um detalhes até certo ponto estranho. Não consta o nome do Pe. Amstad como autor. Sabe-se entretanto que foi ele seu organizador e o responsável por mais de oitenta por cento do texto. O restante do texto é da autoria do jornalista Arno Phillipp.

O motivo declarado da obra foi obviamente a comemoração do primeiro centenário da imigração alemã. Mas a começar pela escolha do próprio titulo, sugerem-se  considerações que  extrapolam o sentido comemorativa. Convém lembrar que a data, 1924, coincidiu com um complexo de fatos históricos, sociais, políticos, econômicos e religiosos que se refletem, direta e indiretamente, nas páginas da obra e, de modo especial, no discurso escolhido elo autor.

A primeira guerra mundial, 1914-1918, obrigara os imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil e, especificamente no Rio Grande do Sul, a uma série de reflexões. A aliança do Brasil com os aliados  em guerra contra a Alemanha, fez subir à tona algumas  questões, até então latentes, assumindo proporções que a atmosfera dos grandes conflitos costuma exagerar ao extremo. Na época viviam ainda muitos imigrantes diretamente vindos da Alemanha. Mas a média da população teuta era formada pelos descendentes de primeira, segunda, terceira e até quarta geração. É mais do que compreensível que numa situação destas a atenção das autoridades e do segmento luso-brasileiro se voltasse com atenção especial para as comunidades de descendência alemã. Os noticiários nacionais e internacionais carregavam  cada vez mais as cores contra a Alemanha e os alemães, terminando por pô-los sob suspeita e confiná-los num incômodo e doloroso isolamento. Passou-se a suspeitar  da autenticidade, da sinceridade e da lealdade das suas intenções como cidadãos. Foram tratados como cidadãos de segunda categoria e vistos como traidores em potencial. Toda essa situação foi alimentada por uma série de fatores que até então haviam causado pouca ou nenhuma preocupação para as autoridades e a opinião pública do País. Entre eles sobressaem alguns com significado especial.

Os descendentes dos imigrantes alemães concentravam-se em regiões exclusivas ou quase exclusivas. Destacavam-se na paisagem do Rio Grande do Sul e Sana Catarina pela sólida organização comunitária, pela laboriosidade, pelo apego às tradições, pela língua, pela alta escolaridade, pelo progresso econômico, pela intensa vida associativa ... Davam assim a falsa impressão para muitos  de um enclave étnico renitente à assimilação no todo da nacionalidade brasileira. Para muitos essa impressão foi reforçada pelas próprias características físicas desses brasileiros de pele, cabelos  e olhos claros e estatura acima da média nacional. Alem disso permaneciam firmemente agarrados  aos valores dos antepassados. Entre todos esses elementos um os estigmatizou de maneira toda especial. Exibiam um alto nível de alfabetização, mais de 90%, quando a media nacional não passava dos 30% a 40%. A resposta estava nas escolas criadas, administradas e controladas pelas comunidades, não só no que dizia respeito ao aspecto gerencial, como também  e, principalmente, quanto ao currículo, à filosofia pedagógica, aos métodos didáticos praticados e aos próprios professores. Acontece que nessas escolas o alemão continuava sendo a língua de ensino e o português constava apenas como matéria curricular. O resultado final deste estado de coisas não podia ser outro. Uma população toda alfabetizada, gozando de um nível cultural significativo, em condições, portanto, de assumir um posicionamento político consciente, fiel às tradições, falando alemão  na família e no relacionamento quotidiano nas comunidades.

Não é de se admirar que essa situação que, até 1914, costumava ser vista com certa estranheza pelos luso-brasileiros, mas tolerada e até aceita como normal, com o evoluir da guerra, assumisse  conotações muito diferentes. Para a tradição luso-brasileira ficava difícil acreditar que essa gente cultivando costumes germânicos, falando mal ou nem sequer falando português, numa situação de guerra contra a sua terra de origem, fosse capaz de colocar a obrigação como cidadãos brasileiros acima de qualquer outro valor.

As conseqüências não se fizeram esperar. A imprensa em língua alemã foi proibida, clubes e associações fechados  proibida a língua alemã nas escolas. Essas providências sinalizavam aos teuto-brasileiros que, de então para o futuro, as circunstâncias da guerra os levaria a refletir com muita seriedade sobre a compatibilidade de sua condição de cidadãos brasileiros e a preservação da língua e as tradições da sua herança cultural. Os fatos estavam a mostrar-lhes  que o ritmo da inserção definitiva e integral na comunidade nacional, também no que se referia ao aspecto cultural, deveria ser acelerado. Aliás essa sensação motivou na época a tomada de decisões de não poucas lideranças do meio teuto.

A reação do mundo teuto-brasileiros o clima hostil em que vivia não foi  uniforme. Lideres das mais diversas procedências partiram para iniciativas com a finalidade de  ir ao encontro do novo panorama que se esboçava. O arcebispo de Porto Alegre, D. João Becker tomou a frente. Apesar de alemão nato impôs aos padres sob sua jurisdição proferirem os sermões em língua portuguesa e as escolas comunitárias a adotá-la como língua de ensino. Considerando a autoridade inconteste da autoridade eclesiástica, pode-se imaginar facilmente o impacto que essa determinação causou nas comunidades teuto católicas. A reação do mundo teuto-brasileiro não foi uniforme e assumiu proporções diferentes nas diversas situações. Assim, por ex., a Sociedade Orfeu de São Leopoldo modificou os estatutos alinhando a instituição com os rumos nacionalizadores em curso. Os professores das escolas comunitárias em suas assembléias começaram  uma reflexão insistente sobre os rumos que lhes cabia imprimir à educação das novas gerações a fim de prepará-las  para enfrentar a nova realidade. Reinava a convicção generalizada que estava chegando ao  final a fase em que os imigrantes e seus descendentes foram deixados em paz nas suas linhas e picadas. Raras vezes alguém lhes punha sob suspeita a sinceridade da sua cidadania, pelo fato de não falarem ou falarem mal o português e se manterem fiéis às tradições. As evidências sinalizavam para um novo capítulo da dinâmica da inserção na comunidade nacional, marcado por prenúncios de grandes turbulências e sérios conflitos com o segmento luso-brasileiro na definição dos rumos do futuro do País.

Entretanto a guerra terminara com a derrota da Alemanha. Para os teuto-brasileiros orgulhosos da sua origem  e ascendência, este desfecho significou uma imensa frustração. A humilhação da Alemanha somada  à atmosfera de desconfiança e hostilidade em que viviam como cidadãos brasileiros, derrubou-lhes a auto-estima  até um nível critico. Tornara-se urgente que uma iniciativa fosse tomada no sentido de devolver-lhe o orgulho sadio pelo que  eram e pelo que realizavam de útil em favor da região e do País. Essa preocupação perpassa  as seiscentas e cinqüenta páginas do “Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”. No prefácio da obra o Pe. Amstad expressou claramente esta preocupação.

“Cem anos de germanidade no Rio Grande do Sul” é o titulo da presente obra comemorativa. Isto significa ao mesmo tempo o fecho da obra realizada aqui pelos alemães, a obra cultural da germanidade na qual colaboraram diversos segmentos. Sem diferença de religião  e de concepções políticas, foram reunidas as pedras para a edificação da obra comum. A todos que colaboraram, um obrigado do fundo do coração! A recompensa  consiste na certeza de terem contribuído para a recuperação da honra da aterra dos antepassados, no momento em que ela geme mergulhada na humilhação e na escravidão. (Cem Anos de Germanidade, 1999, p. 9)

As comemorações  do primeiro centenário da imigração alemã no Rio Grande do Sul teve, além dos “Cem Anos de Germanidade”, outro momento de afirmação da germanidade. Em São Leopoldo e em Novo Hamburgo foram inaugurados monumentos alusivos ao acontecimento, ao mesmo tempo em que era institucionalizado o “Dia do Colono” fixado para o dia 25 de julho. Todos esses esforços em chamar à consciência o orgulho da germanidade, não tardaria em colidir frontalmente contra ...

Com o modernismo que desde 1917 iniciara a sua caminhada influenciando as artes e posteriormente a política. Nele se faziam presentes traços nitidamente nacionalistas que rompiam com o romantismo, o parnasianismo e o realismo. Negando ideais e idéias  européias, buscava a independência intelectual do Brasil. Acentuava a política de defesa  do “espírito nacional”, cultivando as tradições  do País e sublinhando o português como língua nacional. Toda essa movimentação queria “abrasileirar o Brasil”. Termo chave para a época passa ser  “brasilidade”. (Cem Anos de Germanidade, 1999, p. 8)

Esse novo rumo teve a sua expressão mais visível na “Semana de Arte Moderna” realizada em São Paulo em 1922, culminando 15 anos mais tarde na Campanha de Nacionalização. O Estado Novo, instalado em 1937, consagraria definitivamente o estado nacional centralizado, acompanhado de evidentes motivações, características e estratégias nacionalistas. Mesmo para o observador menos avisado não passava despercebido  que a heterogeneidade étnica, cultual e lingüística, dificilmente continuariam a ser tolerados. Não restava dúvida de que as autoridades responsáveis pela nova ordem, se valeriam de todos os meios legais e coercitivos para diminuir e, se possível, apagar as diferenças. O prenúncio fez-se realidade logo depois da implantação do Estado Novo. Leis, decretos, portarias, ordens de serviço, etc. escudados pela ação policial, na maioria dos casos draconiana, puseram em marcha um conjunto de instrumentos, com o objetivo de “abrasileirar”, de uma vez por todas, as dezenas de grupos e identidades étnicas, assim chamadas “alienígenas”, estabelecidas dentro das fronteiras nacionais. Na mira estavam em primeiro lugar as escolas étnicas, sobretudo as comunitárias  nas regiões de colonização alemã. Na maioria delas o alemão continuava sendo a língua de ensino e o português figurava apenas como disciplina curricular obrigatória. Em não poucas escolas o aprendizado da língua nacional ou da “língua” como os descendentes de alemães costumavam chamar o Português, encontrava uma série de dificuldades que, na pratica, terminavam por torna-lo inócuo. Entre as razões merecem citação: o deficiente preparo de muitos professores para ensiná-lo corretamente e falta de estímulo para praticar a língua no dia  a dia das pessoas. A comunicação em família e no convívio comunitário dava-se quase exclusivamente nos dialetos herdados dos antepassados. O pouco que fora aprendido na escola cairia no esquecimento com o termino dos quatro anos obrigatórios de freqüência escolar. Considerando essa realidade pode-se afirmar  que nas  comunidades teutas dos estados do Sul do Brasil, a língua aprendida na família, a língua do quotidiano das comunidades, era o dialeto, com uma larga predominância do “Hunsrückisch”, acompanhado das inevitáveis adaptações  impostas pelo meio geográfico e sócio-cultural dos estados do Sul.

“Cem Anos de Germanidade” reflete obviamente também essa realidade. Esforça-se por mostrar aos brasileiros de todas as origens étnicas e principalmente aos luso-brasileiros a contribuição alemã em todos os segmentos da atividade humana, para desfazer qualquer dúvida a respeito da sinceridade do comprometimento dos alemães para com o progresso do País. Não se tratava de uma minoria irredenta, um quisto ou um enclave étnico, mas brasileiros que empenhavam todas as suas energias e potencialidades em favor da terra em que haviam nascido. Queremos deixar claro que na intenção e na atitude de há muito estavam definitivamente “abrasileirados”. O que faltava  viria ao natural no espaço de algumas  gerações, bastava confiar  a dinâmica do processo à lógica da História. Mas, como se constatou 15 anos mais tarde, exatamente no ano do falecimento do Pe. Amstad, o “abrasileiramento” espontâneo foi atropelado pela política de nacionalização do Estado Novo. Não é do objetivo desta palestra detalhar e aprofundar essa questão.

O conteúdo da obra somado ao discurso escolhido revelam a grande preocupação do seu outro e organizador, que deve ser entendida no macro-contexto acima esboçado.

Resumindo as considerações sobre “Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”, o leitor tem em mãos uma obra, ou melhor, a obra mais completa sobre a contribuição no Rio Grande do Sul, nos primeiros 100 anos. Para complementar os objetivos acima apontados, a obra brinda o leitor com dados estatísticos que dificilmente poderão ser encontrados em outra obra do gênero. Os 20 anexos  no final da obra valorizam-na em muito, além de sinalizar para pesquisas de dimensões inéditas na história da imigração alemã no estado do Rio Grande do Sul. Com  o “Cem Anos de Germanidade” o Pe. Amstad e demais responsáveis pela obra, legaram à posteridade um magnífico resumo da história política, econômica, social, educacional, religiosa, cultural, do século dezenove e das duas primeiras décadas do século vinte, no Rio Grande do Sul.

E par encerrar permito-me repetir que as palavras finais do prefácio do “Cem Anos de Germanidade” escritas em 1924, continuam atuais e ainda hoje válidos, 80 anos depois e expressam muito bem os sentimentos e as convicções da diretoria e dos associados do “25 de Julho” e dos admiradores da cultura alemã, na data do jubileu de ouro deste benemérito Centro Cultural.

Parte pois, “Mensageiro do Centenário” do trabalho e das obras alemãs! Leva  antes de mais nada a todos os lares dos colonos a notícia daquilo que os nossos  antepassados realizaram. Acende  nos netos o fogo sagrado da emulação, para que um dia também os seus nomes se perpetuem em obras que enobrecem!. Entra também nos majestosos   palácios das cidades, onde quer que more um alemão pois, de mãos dadas, colônia e cidade realizaram a grande obra cultural do século

“Mensageiro do Centenário”, pede discretamente  licença para adentrar também nas moradias dos nossos concidadãos de  outras nacionalidades! Não poucos, com certeza, irão reconhecer, sem inveja, os nossos méritos e alegrar-se conosco por aquilo que o empenho e a tenacidade alemãs realizaram no Rio Grande do Sul. “Mensageiro do Centenário”, cruza também os mares do mundo e leva para a velha pátria notícias do trabalho e das aspirações alemãs no distante Brasil. Mostra aos nossos compatriotas de lá , por palavras e imagens, que permanecemos fieis à índole alemã, permanecemos fieis aos bons ensinamentos, aos bons costumes que nossos pais trouxeram da velha pátria e nos transmitiram como o mais precioso dos legados.