Ao
analisar a lista dos sócios permanentes do Instituto Histórico de São Leopoldo,
assim como os falecidos, os sócios correspondentes, os honorários e os que se
afastaram por alguma razão, um detalhe chama a atenção. Além de historiadores
por formação portadores desse título acadêmico ou por vocação, que se ocupam
com temas históricos, participam no momento, especialistas titulados ou não em
outras áreas. Estão representadas, além da História, a Arquitetura, a
Antropologia, as Letras, a Literatura, a Linguística, a Educação, a Teologia e
outros. A história do Instituto já contou com médicos, juristas, militares, economistas.
E, as personalidades escolhidas pelos fundadores como patronos de suas 30 cadeiras, apesentam o
mesmo quadro interdisciplinar.
Perguntamos.
O que é lícito concluir desse quadro? Que os fundadores do Instituto Histórico
de São Leopoldo, conceberam-no como um fórum aberto para oferecer oportunidade para se
encontrarem pessoas que se dedicam à tarefa de preservar a importância
histórica da contribuição dos imigrantes alemães, como proposta inicial e
atualmente, de todas as vertentes humanas presentes na moldagem da fisionomia
étnica, com ênfase para o sul do Brasil. Não é preciso chamar a atenção de que
a perspectiva interdisciplinar proposta pelo Instituto e a consequente
heterogeneidade dos seus membros e das
especialidades a que se dedicam, favorece uma grande multiplicidade de aproximações
do conhecimento. Em outras palavras. O perfil do conhecimento da pessoa tem com
determinantes o nível de formação, sua filosofia de vida, sua orientação
religiosa, seu comprometimento social, ideológico e político, a metodologia, a
linha teórica seguida, o método e as ferramentas utilizadas, etc. Tudo isso
temperado pela forma original com que cada qual enxerga o mundo e as
coisas.
Já
que o nosso negócio é o Conhecimento, proponho uma reflexão sobre este conceito
para a reunião desta manhã, evidentemente sem a pretensão de esgotá-lo.
Falar
em conhecimento importa em arriscar-se a lidar com um desses conceitos passíveis de tantos e tamanhos
entendimentos ou definições, que a pretensão de dar-lhe uma formulação
compreensiva mínima, não é simples. A
primeira questão que se coloca é a pergunta de que conhecimento estamos
falando? Conhecimento científico, conhecimento filosófico, conhecimento
teológico, conhecimento histórico, conhecimento popular, conhecimento intuitivo,
etc. etc. Como se pode ver , todas essas formas de conhecimento e outras mais que lhe possam ser acrescentadas, partem de objetos, níveis, perspectivas e
métodos de aproximação diferentes. Se, portanto, optarmos por um deles como
ponto de partida do nosso raciocínio, as conclusões a que chegarmos, serão
inevitavelmente unilaterais e parciais. Qualquer que seja a escolha do caminho
pelo qual o conhecimento deverá andar, este determinará o seu perfil teórico e
metodológico. Assim o conhecimento histórico será sempre essencialmente
histórico, embora incorpore mais ou menos subsídios buscadas em outras áreas do
conhecimento, como na filosofia, na
geografia, nas demais ciências humanas, no direito, nas ciências naturais e
outras. O mesmo é legítimo afirmar em todos os demais campos do conhecimento
específico como Filosofia Natural, Física Atômica, Economia de Mercado,
Matemática Financeira, Sociologia Urbana, História Moderna, Antropologia
Social, etc., etc. o objeto especificado no adjetivo será tratado com as ferramentas
teóricas e metodológicas sugeridas pelo substantivo. Em outras palavras. O
caminho de aproximação e a compreensão de algum objeto, é aquele que é próprio
da área definida pelo substantivo. Assim a
aproximação da Natureza é possível pela via filosófica, pela via
matemática, pela via histórica, pela via química, pela via biogenética, pela
via teológica, pela via econômica, e por aí vai. Conclui-se daí de que a via de
aproximação de alguma objeto tem o seu traçado marcada pelas ferramentas
teóricas e metodológicas próprias da abordagem feita. Assim o conhecimento pelo
viés do matemático com seus modelos, fórmulas e cálculos, trairá
inevitavelmente o matemático. Da mesma forma o conhecimento químico, histórico,
filosófico, político, geográfico, etc.,
trae o olhar do químico, do historiador,
do filósofo, do geógrafo, do político, do jurista ou de quantas
especialidades e especialistas se estiver falando.
E
para não ficar apenas em afirmações genéricas, tentarei aprofundar um pouco mais a linha de reflexão
esboçada. Parece-me que a grande mestra que é vida propõe-nos três lições a
serem aprendidas. - A Primeira. Nenhuma proposta teórica e metodológica,
por si só, contém potencial suficiente para dar uma resposta final e conclusiva
para as questões de fundo, como são: a origem e o sentido do universo, da
natureza e do homem e, em meio a tudo isso, o lugar ou não lugar de Deus. - A
segunda. Além das abordagens convencionais pelo lado das Ciências Exatas,
das Ciências Humanas e do Espírito,
outras aproximações não podem ser ignoradas como o Conhecimento obtido pela
percepção difusa, intuitiva, quase instintiva, tão importante na orientação da
conduta quotidiana das pessoas. - A
terceira. Ninguém é dono da verdade. Melhor talvez. Ninguém descobriu,
nem descobrirá sozinho a verdade, nem o cientista munido dos métodos e
tecnologias mais sofisticados, nem o filósofo com seus mergulhos nos meandros
da natureza das coisas e dos fatos, nem o homem comum com seu conhecimento
intuitivo quase instintivo, nem o teólogo
por maior que seja a convicção da sua fé. Mais do que nunca é verdadeiro o
ditado: “Doctrina Multiplex, Veritas una”
- “As Doutrinas são muitas, mas a
Verdade uma só”, ou conforme Nicolau de Cusa: “Ex partibus omnibus elucet totum
– Pelas partes vislumbra-se o todo.”
Quando
se trata de entender e explicar a natureza dos fatos e acontecimentos que dizem
respeito ao homem e tudo que o rodeia e envolve, estamos habituados a tomar em
conta como válidas, três aproximações com os respectivos instrumentos teóricos
e metodológicos: os próprios das Ciências Naturais, das Ciências Humanas ou das
Ciências do Espírito. Acontece que já se haviam passado dezenas e centenas de
milhares de anos da história do homem, antes que Francis Bacon formulasse o método “analítico
indutivo” e o “sintético dedutivo”, como as duas vias mestras para chegar ao conhecimento. A
compreensão de Bacon sobre o como se constrói o conhecimento resultou da
observação de como essa história se deu durante os longos tempos que
precederam.
Fica
então a pergunta: E antes, sobre que bases o homem construiu o seu
conhecimento. Ao rastrearmos as veredas percorridas pelo conhecimento desde que
estamos de posse de dados confiáveis, uma coisa parece certa. A partir do
momento em que, em alguma data remota e em algum lugar não conhecido da terra,
faiscou pela primeira vez a centelha da inteligência reflexa e o homem se fez
homem, a pergunta pelo quando, o como e o porque da sua existência e do
universo que o rodeava, fez parte das suas preocupações. Os fatos e fenômenos
que acompanham a concepção, a gestação, o nascimento, o declínio e a morte,
colocaram o homem de então frente a incógnitas que pediam explicação. O mesmo
pode-se afirmar das realidades em sua volta: os ciclos do ano, as fases da lua,
a trajetória quotidiana do sol, a floresta misteriosa, a majestade das
montanhas, o firmamento coberto de estrelas, a fúria das tempestades, erupções
vulcânicas, terremotos, passagem de cometas, etc. Tudo isso reclamava
explicações, sugeria razões de ser, sentidos, significados e simbolismos.
E quais foram os instrumentos de que dispunham os caçadores, os pescadores, os
coletores, os pastores nômades, os agricultores do paleolítico e do neolítico.
Não muito mais do que uma percepção intuitiva, coisa muito próxima e em comum
com instinto, estimulando a reflexão e alimentado a curiosidade e a imaginação.
Foi em meio a esse cenário caracterizado por uma sobrevivência, baseada num
misto de estímulos instintivos processados pelos potenciais da inteligência reflexa,
que o homem foi consolidando as bases do conhecimento. Pois conhecer não
significa apenas ter certezas matemáticas, demonstrações em laboratórios,
observações e experimentos em estações experimentais, ou os dados fornecidos
por telescópios orbitando no espaço. O conhecimento também não se limita aos
resultados e às conclusões da lógica racional. O conhecimento é algo muito mais
complexo. Ele busca como sempre buscou, a sua legitimidade na satisfação da
curiosidade, no atendimento às necessidades, na resposta aos questionamentos e
na contribuição que é capaz de dar para a realização existencial do homem.
A
premissa de que o conhecimento é fruto da busca do homem por caminhos que o
levam a decifrar-se a si mesmo e o mundo em que vive, faz concluir de que
qualquer resposta neste sentido, é fruto de alguma forma de conhecimento.
O
homem é um animal racional. Essa velha definição que nos foi passada quando
arriscávamos as primeiras incursões nos meandros das incógnitas da nossa
espécie, continua ainda hoje de grande utilidade para entendê-la. Na gênese,
compreensão e evolução do conhecimento o “animal” e o “racional” no homem
ocupam importância igual. Pela lógica da evolução, porém, nos estágios próximos
do “animal”, componentes “não racionais”, (“não científicos”), predominam na
natureza aparente do conhecimento. Nem poderia ser de outra forma. Em primeiro
lugar, as realidades das quais procedem os estímulos e fornecem os elementos ou
a matéria prima para a construção do conhecimento, encontram-se no entorno
ambiental em que o homem vive. Em segundo lugar o acesso e apropriação dessa
“matéria prima”, acontece via sentidos e no primeiro momento é elaborada pela
percepção instintiva peculiar dos receptores. A nível animal a possibilidade de
conhecer esgota-se nesse patamar. Por isso mesmo não se pode falar em
conhecimento no rigoroso sentido do termo, quando se avalia o comportamento das
espécies animais. Em se tratando, porém, do homem, entra a ação da reflexão. A
relação interativa do homem com o meio não se esgota em repostas
instintivas, padronizadas para todos os indivíduos de uma espécie, não
ultrapassando o nível dos reflexos condicionados. No caso do homem entram em
ação simultaneamente os estímulos de natureza instintiva e seu processamento
pela capacidade de reflexão. Começa a construção do conhecimento.
Neste
processo em que o instintivo e o intuitivo se aliam ao racional para gerar o
conhecimento, é preciso lembrar que o
primeiro contribui com o “qualitativo” com que as coisas se apresentam, ou o
valor em si das coisas, ou ainda, a natureza das coisas. À qualidade de que as
coisas vêm revestidas pela própria natureza, soma-se a qualidade que o homem atribui a elas. E é
exatamente essa “qualidade atribuída”, que contribui de forma decisiva na
construção do conhecimento. E como as “qualidades atribuídas” diferem de
indivíduo para indivíduo, de cultura para cultura, os perfis do conhecimento
são tantos quantos os sistemas construídos. Um bom exemplo é a água. Das suas
qualidades naturais fazem parte a sua composição química, o estado físico que
assume em diferentes temperaturas, sua importância na manutenção de todos os
tipos de vida, etc. Essas qualidades independem da destinação que o homem lhe
dá. Mas exatamente pela importância da água na natureza em geral e na vida em
especial, o homem somou “qualidades atribuídas” às “qualidades naturais” da
água. Os exemplos são muitos. Em determinadas tradições de certos povos, a água
de uma fonte brotando das entranhas da terra
rejuvenesce, garante vida longa; a água benta nos rituais litúrgicos
purifica, apaga pecados, cura enfermidades. Todos esses elementos e muito mais
entram na formação do corpo de conhecimentos elaborados pelos povos nas mais
diversas circunstâncias de tempo e espaço. Em termos, as constatações que vimos
fazendo, são válidas para o fogo, a luz, as estrelas, o sol, os cometas,
florestas, montanhas, vulcões, animais e plantas. Tanto as “qualidades naturais””,
quanto as “qualidades atribuídas” não
podem ser ignorados, menosprezados ou diminuídos na sua importância ao
avaliar-se alguma tradição cultural. Acontece, entretanto, que o homem ao tomar
consciência da importância das qualidades naturais dos diversos elementos da
natureza para sua própria existência, intui qualidades às quais termina
atribuindo poderes que ultrapassam os potenciais químicos e físicos de uma
fonte, de um terremoto, de uma floresta, do sol, da lua, de um vulcão, etc.
Mais. Além de atribuir-lhes qualidades como poderes mágicos, sobrenaturais,
personaliza-os como divindades, seres sobrenaturais, anjos, demônios, duendes,
fantasmas, bruxas, etc. variando de acordo com as diferentes tradições
culturais.
As
“qualidades atribuídas” às realidades de que vimos falando, que compõem o
cenário natural em que o homem vive, representam uma das faces da moeda que é o
conhecimento. Não resta dúvida de que esse tipo de conhecimento predomina e é
determinante na fase que poderíamos chamar de “infantil” na construção do
conhecimento. Carente ainda das indispensáveis observações experimentais,
métodos e equipamentos adequados, o homem valeu-se dos recursos com os quais a
natureza o dotara: a observação, a comparação, a análise, a seleção, a
experimentação, a curiosidade e a imaginação. E assim, quase como que
“farejando” a natureza, foi atribuindo
significados, simbolismos, atributos ao que observava, dando forma e coerência
aos corpos de conhecimento, equivocadamente desqualificados como “primitivos” e
“não científicos”.
Na
medida, porém, em que o homem penetrava nos meandros da natureza em sua volta e
se dava conta da incógnita complexa que
ele próprio era, crescia a curiosidade e a necessidade de entender “como”
funcionava, e ao mesmo tempo, assumir o controle do seu destino. Ora, esse
passo significou uma reviravolta de proporções difíceis de dimensionar. De
dependente do entorno em tudo o homem passa a equipar-se com os instrumentos e
as tecnologias que o habilitaram gradativamente a entender, prever e controlar situações
e acontecimentos. A partir dai o componente “quantitativo”, vai assumindo
importância crescente na construção do conhecimento. Com a Renascença e
definitivamente com a Modernidade, chegamos ao ponto de o Racionalismo
Científico, de um lado, e o Racionalismo Filosófico do outro, desqualificar
tudo que não é experimentalmente aferível e/ou logicamente deduzível. Como cada
qual se vale dos métodos de aproximação, definidos por Francis Bacon (1561-1626)
como “analítico indutivo” das Ciências Naturais e “sintético dedutivo” das
Ciências do Espírito, o conflito foi uma questão de tempo. O auge desta disputa
inglória, para não dizer irracional,
aconteceu na segunda metade do século XIX, alimentada pelo Monismo Materialista
de Ernst Haeckel, Huxley, Morgan e muitos outros, inspirados na obra de Darwin,
“A Origem das Espécies” e pela atitude radical assumida pela Igreja Católica no
Concílio Vaticano I e de modo especial no pontificado de Pio X, na primeira
década do século XX. Não é aqui o lugar para entrar mais a fundo nessa disputa
inglória, inútil, que prejudicou a construção do Conhecimento e na qual só
houve perdedores.
Mas
para que as reflexões que estamos fazendo a nível abstrato, tornem a questão da
produção do conhecimento mais palpável, recorro a um exemplo tão antigo quanto
a própria humanidade: A Astrologia. O interesse por ela permanece em alta até
hoje. Todo o progresso da pesquisa científica e, principalmente, os resultados
espetaculares no campo da astronomia, física, química, biologia, biogenética,
não a ofuscaram. Sua cotação na camadas populares continua crescendo e o seu
prestígio entre as pessoas cultas e muito cultas permanece em alta. O
termômetro são os horóscopos publicados diariamente nos veículos de
comunicação, direcionados a todos os públicos. A Astrologia vem a ser um desses
exemplos emblemáticos, de como o ponto de partida, a raiz, a base do
conhecimento alimenta-se da síntese entre os elementos dados pela natureza, no caso os astros e as
necessidades materiais a serem atendidas, as incógnitas a serem desvendadas e
os problemas existenciais a serem resolvidos. Entregue à capacidade reflexiva
do homem termina por consolidar o corpo de conhecimentos da Astrologia. Seu
foco é um conhecimento que tem como centro o componente “qualitativo” na
avaliação dos astros. A própria origem etimológica da palavra aponta para esse
sentido: “Astron = Astro” e “Logos = Ciência, Essência, Natureza, Qualidade.
Como,
entretanto, o homem, além de dotado de instinto, intuições, emoções, sonhos e
desejos, é portador de inteligência reflexa, a síntese do conhecimento que vai
elaborando, conta com o concurso da reflexão. A razão e a lógica insistem em
obter respostas para, o “como”, o “quando” e o “quanto”, garantindo certezas
assim denominadas “científicas” e/ou “racionais”. Recorrendo de novo ao exemplo
dos astros. A Astronomia como ciência exata nasceu da Astrologia para lhe
conferir legitimidade objetiva. O significado etimológico dos dois conceitos o
comprovam: Astrologia, como já vimos vem de “Astron – astro” e Logos – palavra
– essência, qualidade, ciência” -
Astronomia vem da combinação do termo “Astron – astro” e “Nomos – número, ciência”.
Os
gigantescos avanços e conquistas em todos os campos da pesquisa científica,
levaram muitos cientistas e vastos setores da opinião pública, a prever o
desvendar de todos os meandros ainda não contabilizados pelo esforço
científico. Acontece que exatamente do meio das ciências e de representantes
seus dos mais conceituados, parte o alerta de que o universo, a natureza e
especialmente o homem guardam segredos que escapam aos potenciais do método
analítico indutivo e desafiam a lógica racional. O alerta já foi dado há mais
de meio século por Teilhard de Chardin, ao chamar a atenção de que: “A análise,
esse maravilhoso instrumento ao qual
devemos todo o progresso, esconde uma
face que não podes ser esquecida. De tanto desmontar chegamos ao ponto de nos
flagrarmos frente a um amontoado de peças dispersas e de partículas que se
esvaem”. A intuição, a percepção, o farejar a natureza voltam discretamente
como caminhos válidos para o “conhecer”, quando a análise indutiva e a síntese
dedutiva convencionais, já não dão conta do recado.
Diante
da dificuldade de harmonizar as Ciências da Natureza com o sistema
Aristotélico-Tomista, o Pe. Balduino Rambo pergunta se não entra em questão o
abandono das vias convencionais da produção do conhecimento ou, pelo menos,
chamar em socorro o velho Platonismo com sua linha de pensamento e aproveitar
das escolas convencionais somente aquilo que se enquadra nas leis perenes do
Pensamento Humano, porque,
Entre a Ciência e a Fé (entre as Ciências
Naturais, Filosofia, a Teologia, as Ciências Humanas, as Letras e Artes, inciso
do autor) estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa senão o
conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado e da expressão
imediata da palavra, como do som subliminar que emite e da ressonância que
desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana, até hoje se prestou
muito pouca atenção. Bem considerada ela não é um som secundário, e sim a nota
dominante no concerto musical do espírito dinâmico do homem. (Rambo, Balduino,
1994, p. 265)
A
intuição teve em Jean Jacques Rousseau a sua reabilitação como forma legítima
de conhecimento. A percepção das
realidades naturais pelos sentidos resulta na construção informal e espontânea
dos corpos de conhecimentos elaborados pelas mais diversas culturas. Com sua
autoridade incontestável, o grande filósofo da
modernidade, deixou claro de que o homem busca a matéria prima do
conhecimento no mundo ambiente em que vive
e apropria-se dela por meio dos sentidos. A forma peculiar como essas
percepções são elaboradas depende da natureza de cada uma delas, do entorno
cultural em que é recebida e da maneira única pela qual é percebida e elaborada
pelas mentes dos indivíduos. Rousseau, filósofo que era, contentou-se em
apresentar ideias sem sinalizar para finalidades práticas. Talvez não percebesse
o tamanho do potencial prático embutido na intuição como ponto de partida para
construir o conhecimento. E o valor prático, inovador e revolucionário
encontra-se exatamente no plano mais sensível e mais determinante da vida
individual e coletiva: a Educação.
Quem,
como nenhum outro, percebeu o alcance do conhecimento intuitivo como
instrumento pedagógico, foi Pestalozzi, conterrâneo e contemporâneo de
Rousseau. Ele fez da intuição, ou se preferirmos, da percepção sensorial, a
razão de ser, a base da sua filosofia educacional e do seu método pedagógico. A
proposta de Pestalozzi veio a ser adotado como método oficial nas escolas da
Prússia. Desde meados do século XVIII os reis da Prússia foram investindo na
formação das novas gerações. Os resultados desse programa de educação a longo
prazo e seus efeitos sobre a formação dos cidadãos é por demais conhecida. Não
é aqui o lugar nem o momento de aprofundar essa questão.
O
Pe. Alfonso Borrero, estudioso do ensino
superior, expressou assim sua opinião sobre a importância do conhecimento
intuitivo.
Especialíssima importância se dá na
Pedagogia Moderna ao exercício da criatividade, que não supõe a indução e a
dedução lógicas a partir de elementos conhecidos, mas tem como base principal a
Intuição, um salto da mente humana ao encontro de algo, partindo de elementos
prévios e, por assim dizer cria algo novo, que mais adiante é passível de
aprimoramento posterior e procedimentos racionais, utilizando o raciocínio
metodológico da indução e da dedução. Por isso, no exercício da criatividade
que se vale da intuição, não se deixam de todo de lado, os métodos que conferem
rigor ao pensamento racional. Adestram-se, isso sim, estratagemas novos, úteis
para movimentar-se nas fronteiras do saber adquirido, passando pelas percepções
intuitivas à construção do conhecimento. (ASCUN, 1992, nº 20, p. 15-16)
A
importância em começar a educação das crianças incentivando-as a entrar em
contato com o maior número possível de estímulos vindos das mais diversas
realidades que se encontram no seu entorno ambiental, tem, atualmente, em
Edward Wilson um dos adeptos mais entusiastas. Há mais de 50 anos professor de
Entomologia na universidade de Harvard, consta entre os maiores conhecedores de
insetos em atividade. O cenário com que trabalha é obviamente a História
Natural, campo onde desenvolve sua especialidade. No capítulo 15 do seu livro:
“A Criação – um esforço para salvar a vida na terra” (2008), apesenta uma
proposta pedagógica destinada à educação da criança a partir da natureza,
oferecendo-lhe uma imersão progressiva nesse universo de surpresas sem conta
que vem a ser a “mãe e a pátria ”do homem, como escreveu o Pe. Rambo na
“Fisionomia do Rio Grande do Sul”. A certa altura escreveu:
A ascensão da Natureza começa na infância,
portanto, o ideal é que a ciência da
biologia seja introduzida logo nos primeiros anos da vida. Toda a criança é um
naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos
territórios, buscar tesouros, examinar a
geografia, descobrir novos mundos – tudo isso está presente em seu cerne mais
íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos
imemoriais as crianças foram criadas em estreito contato com o ambiente natural.
A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres.
(Wilson. Edward, 2006, p. 158)
Wilson
demora-se em chamar a atenção para o fato de que as raízes remotas do
conhecimento devem ser procuradas entre os caçadores e coletores do
paleolítico. Munidos com ferramentas as mais simples e rudimentares, a sobrevivência
acontecia na total dependência do meio natural. Valendo-se dos cinco sentidos
como janelas, como pontes de contato e relação como o meio ambiental, foi
obtendo as informações necessárias para a sobrevivência. Orientado pelos
instintos, instrumentalizados pela intuição e os resultados postos à disposição
da reflexão, o homem foi consolidando os fundamentos para o conhecimento. A
partir daí, farejando, por assim dizer, o seu entorno, foi somando observação à
observação, experiência à experiência, intuição à intuição, explicação à
explicação, resposta a resposta, consolidando, numa progressão geométrica os
corpos do conhecimento entre os grupos humanos. O aperfeiçoamento progressivo
dos conhecimentos e o desenvolvimento paralelo de tecnologias de ação, facultou
ao homem a superação dos condicionamentos naturais de um lado. Do outro levou a
um distanciamento cada vez maior “desta sua mãe e pátria”, ao ponto de nos grandes
centros urbanos viver-se num ambiente totalmente artificial. Mesmo assim,
Edward Wilson observa:
Os instintos
ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos
mitos e na religião, nos parques e jardins,
nos esportes da caça e pesca, tão estranho, pensando bem. Os americanos
passam mais tempo nos jardins zoológicos do que em eventos esportivos
profissionais, e ainda mais tempo em áreas protegidas dos parques nacionais,
cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas nacionais e
reservas naturais – isto é – nas partes que permanecem intactas – gera uma
renda de mais de 20 bilhões de dólares por ano ao País. A televisão e o cinema
do mundo industrializado estão saturados de imagens da Natureza virgem. Um
símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo, tipicamente localizada em
ambiente pastoral ou natural. Ela serve como refúgio para quem deseja encontrar
paz de espírito e como ponto de retorno a algo que foi perdido, mas não
esquecido. (Wilson Edward, 2006, p. 159)
Acabamos
de citar nominalmente um entomologista de renome internacional – Edward Wilson,
um botânico também de reconhecimento internacional – Pe. Balduino Rambo, um
especialista em educação superior, - o
Pe. Alfonso Borrero, Jean Jacques Rousseau, um dos mais importantes filósofos
da Modernidade e Pestalozzi, ícone dos Pedagogos. A esses nomes somam-se outros
de referência obrigatória na galeria das expressões máximas em suas
especialidades.
Francis
Collins especialista em Genética Humana e diretor do Projeto Genoma Humano,
responsável pelo mapa genético do homem, em seu livro “ A Linguagem de Deus”,
escreveu a certa altura, não sem um toque de emoção claramente perceptível nas
entrelinhas:
Apesar de eu, no fim das contas, passar da
ciência física à biologia, essa experiência de originar equações universais tão
simples e belas, que descrevem a realidade do mundo natural, deixou em mim uma
impressão profunda, em especial porque o resultado definitivo tinha um grande
apelo estético. Isso levantou a primeira de várias perguntas filosóficas acerca da natureza do
universo físico. Porque a matéria se comporta dessa maneira? E, citando uma
frase de Eugen Wigner: que pergunta: Qual seria a explicação para a
“inexplicável eficiência da matemática?” Collins responde: Nãos seria nada além
de um feliz acidente ou seria uma referência a alguma intuição profunda da
natureza de ter encontrado o divino?. Collins cita ainda “Uma breve história do
tempo” do físico Stephen Hawking, com a observação de que Hawking, “em geral
não é dado a contemplações metafísicas: ”Então poderíamos todos nós, filósofos,
cientistas e pessoas comuns, participar sobre a questão de o porque nós e o
universo existimos. E se encontrarmos uma resposta para isso, será o triunfo
definitivo da razão humana, pois, então conheceremos a mente de Deus. Seriam
essas descrições matemáticas da realidade, indicações de alguma inteligência
maior? Seria a matemática junto com o DNA, uma outra linguagem de Deus?
No
seu diário o Pe. Balduino Rambo nos brinda com páginas e mais páginas de
vivências estimuladas pela intuição em contato com a natureza, em especial com
florestas, que ele tratava como o seu “brinquedo predileto”. Duas amostras
antes de concluir a nossa reflexão. Depois de descrever uma caminhada solitária
pela floresta de sequoias no parque do mesmo nome, empolgado pela beleza, a
variedade, a imponência dos gigantes e a
atmosfera de mistério e os simbolismos que inspiravam, anotou:
Sem querer a gente se descobre e se sente
pequenino como um camundongo entre esses gigantes reunidos em conselho. Que
cantos não teriam deixado os poetas do Antigo Testamento, que falam com tanta
empolgação dos cedros do Líbano e dos gigantes do Monte Sião, se tivessem
escutado a voz de Deus nessas floretas. Enquanto Davi e Salomão cantavam seus
salmos: quando Isaias anunciava ao seu povo a vinda futura do Filho do Homem;
quando Ezequiel contemplava o Senhor dos dias sentado no trono da sua glória,
mais de mil anos já pesavam sobre muitas dessas árvores. (...) O canto de luto
do paraíso, o canto da árvore da vida dos deuses germânicos, o canto de vitória
da árvore da redenção. Toda a simbólica nas sagas e na arte da humanidade toma conta
do caminhante na penumbra mortiça dessa floresta. Há muitas verdades entre o
céu e a terra que não se encontram nos livros. Revelam-se no silêncio da
floresta. (Diário da viagem aos Estados Unidos em 1956)
Observando
a paisagem do alto da garganta da Pedra Branca em Cambará, deu mais uma amostra
do que é capaz a intuição de alguém que sabe ler as mensagens, os significados
e os simbolismos da natureza.
São únicas as pinturas da natureza, como as
da garganta da Pedra Branca, na bela terra de
Deus. Poderia se chamar o quadro de precipícios perpendiculares e de
cataratas troantes, e névoas efervescentes e trovoadas uivantes, de mata
silente e escolhos altos, cheios de
clarividências pétreas, pintura imperfeita, mas bem mais do que isso. É uma
construção gigantesca de força e simplicidade que nunca para de rolar para
frente. Alguém mora nessas profundezas que sussurram, alguém vigia nessas
torres de observação. (...) Nunca esquecerei minha despedida da orla oriental.
Meu cavalo avançou à vontade pelo campo
florido. Atrás de mim, as névoas condensadas, vindas do precipício rolavam pelo
campo. Essa neblina fria rolou sobre mim e me envolveu. Murmuravam os arroios e
cochichavam os pinheiros. Agradeço a Deus e levo saudades desta terra
hospitaleira. Se possuo uma pátria no mundo, ela está no planalto calmo e
sereno, à sombra dos pinheirais. (Diário de Cambará, 1948).
A
pergunta a essa altura é esta: Frente aos depoimentos trazidos, os quais afinal
de contas são de representantes de diversos campos das Ciência Naturais, filiados ou não a denominações religiosas, agnósticos,
etc., o conhecimento pela Intuição, vem
a ser a estrada real mestra, o Leitmotiv, que origina e legitima qualquer tipo
de conhecimento. A razão é simples. A natureza humana desde que o homem se fez
homem manteve-se inalterada na sua essência. Os mesmos medos, os mesmos
temores, as mesmas esperanças, as mesmas perguntas existenciais, a procura de
sentidos para sua própria existência e da natureza e do universo, e existência
ou não de uma vida depois da morte, etc., etc., tudo isso e muito mais, vem
intrigando os homens de todos os tempos e de todas as culturas e civilizações.
Com essa matéria prima cada povo, cada cultura e cada indivíduo, procurou
respostas no seu mundo ambiente característico e desta forma moldou o
Conhecimento. Na construção do conhecimento concebido nesses termos, o esforço
analítico indutivo da Ciência e o esforço sintético dedutivo da Filosofia,
ocupam o lugar de reforço, como observou o Pe. Borrero na citação acima, para
conferir mais segurança, maior credibilidade, mais legitimidade numa fase da
humanidade em que, por assim, se exige o “preto no branco” como selo de
validade para que algo seja digno de ser chamado de “conhecimento”.
A Ciência apenas possui então valor para
cultivar o que o cientista tem de humano (Menschlichkeit) quando compreendida e
praticada a partir do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado
para o todo – coisa que foge à grande maioria dos pesquisadores atuais. A
Ciência praticada como deve ser é uma recriação do mundo, semelhante à de Deus,
dando assim em culto divino.
E
aproveitando a sinalização deixada nesta citação que acabamos de ouvir, concluo
com uma proposta de reflexão. As obras
que se tornaram clássicas, isto é, as que resistiram a séculos e até
milênios, tanto na literatura, quando nas artes cênicas e plásticas, são
aquelas que exploram exatamente aquilo que é o existencialmente humano no
homem, a “Menschlichkeit”, naquilo que ela exibe de sublime, de quotidiano e
também de escuro e sombrio. Essa linha
mestra, “Leitmotiv” vale para as
pinturas rupestres das cavernas do neolítico, das obras imortais de Homero e demais clássicos da antiguidade,
de Cervantes, de la Barca, Goethe, Schiller, Sheakespeare, Mansoni, Hamingway,
Camões, Mozart, Bethoven, Wagner, Miguel Angelo, só para citar alguns.
Mas
o humano no homem, a Menschlichkeit, expressa-se de um forma permanente no
quotidiano das pessoas, na sabedoria popular que, também consolidada durante
séculos e milênios, no que pode ser chamado de Conhecimento Condensado, que tem
nos provérbios sua expressão mais autêntica. Quanto mais longa é a tradição de
um povo mais emblemática é essa forma de expressar o conhecimento que as
tradições consolidaram, como o conhecimento peculiar de cada uma, em relação do
humano no homem e do entorno em que vive. Conhecidos e citados em toda a parte
são os provérbios chineses, os provérbios romanos, russos, ingleses, alemães,
franceses, etc. Abre-se aqui mais um território a ser explorado neste
fantástico cenário em que o humano no homem, a “Mesnchlichkeit” avança pelos
tempos moldando a história feita de luzes e sombras. O tempo não o permite.
Obrigado pela atenção.