Teilhard
de Chardin – 8
A
Antropogênese -5
Nos parágrafos que acabamos de citar, Teilhard deixa transparecer que,
como cientista, está lidando com um desafio de boas proporções. Vale-se dos
recursos conceituais e literários até surpreendentes para o jargão de um
cientista. De qualquer maneira parece legítima a percepção nas linhas e
entrelinhas, uma lógica que no fundo orienta a evolução, assim como ele a
entendeu. O “estofo” de que é feito o universo e a natureza, concentra em si o
potencial para tornar-se realidade na medida
em que as condições necessárias estiverem presentes. Tornam-se efetivas como realidades dadas na medida em que a agregação, a repetição
geométrica, a complexificação e a compressão, levam a sempre novos e mais altos
níveis de organização. Cada nível de organização da matéria, exige, por sua
vez, uma passo adiante na preparação do caminho em busca da “passagem critica
da Molécula para a Célula. A resposta para a pergunta se essa “passagem
critica” pode ser atribuída a processos de natureza físico-química atuantes na
história da evolução natural ou não, Teilhard responde com a reflexão.
Nada em si mesmo impediria que, em massas infinitesimais, a substância
viva esteja ainda a nascer sob os nossos olhos. – Mas nada, de fato, parece
indicar, - tudo, pelo contrário, parece dissuadir-nos de pensar assim.
(Teilhard de Chardin. 1986. p. 96)
Reforça a afirmação com as experiências de
Pasteur que comprovaram que, nas condições de hoje, a vida não aparece em
laboratório, num meio estéril, previamente limpo de qualquer gérmen. Esse fato,
em princípio, entretanto, nada diz a favor ou contra a gênese da célula no
passado remoto da evolução. O uso universal do métodos de esterilização
comprovam que, nos limites das investigações de hoje, “o protoplasma não mais
se forma a partir de substâncias inorgânicas da Terra”. E conclui: E isso nos obriga, para começar, a revisar certas idéias por demais
absolutas que podiam alimentar sobre o valor e o uso, em Ciências, das
explicações pelas “causa atuais”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 96).
Como se pode perceber, tanto a origem da
matéria prima, o “estofo” do Universo, quanto o aparecimento da célula viva,
desafiaram, como desafiam ainda hoje o potencial explicativo das Ciências
Naturais. O terceiro passo na evolução que coloca os cientistas diante de um
desfio, igualmente, ou muito mais intrigante, encontra-se na “superação da
consciência pela consciência reflexa”, do “saber instintivo para o saber
reflexivo”, da “inteligência instintiva – do instinto – para a inteligência
reflexa”. Em outras palavras: “a Hominização”. Teilhard resumiu o tamanho do
desafio.
Numa perspectiva puramente positivista, o Homem é o mais misterioso e o
mais desconcertante dos objetos com que a Ciência se depara, E de fato, temos
de confessar, a Ciência não lhe encontrou ainda um lugar nas suas re presentações
do Universo. A Física chegou a circunscrever provisoriamente o mundo do átomo.
A Biologia logrou estabelecer uma certa ordem nas construções da Vida. Apoiada
na Física e na Biologia, a Antropologia, por sua vez, explica, mais ou menos, a
estrutura do corpo humano e certos mecanismos da sua fisiologia. Mas uma vez
reunidos todos esses dados, o retrato, manifestamente, não corresponde à
realidade. O Homem, tal como a Ciência o consegue reconstituir hoje em dia, é
um animal como os outros, - tão pouco separável, por sua anatomia, dos Antropoides,
que as modernas classificações da Zoologia, retornando à posição de Lineu, o incluem
com eles na mesma superfamília os
homínidas. Ora a julgar pelos resultados do seu aparecimento, não constitui ele
precisamente algo totalmente diferente?
Salto morfológico ínfimo; e, ao mesmo tempo, incrível abalo das esferas
da Vida: todo o paradoxo humano ... E toda a evidência, por conseguinte, de
que, nas suas atuais reconstruções do Mundo, a Ciência negligencia um fator essencial, ou melhor dizendo, uma
dimensão inteira do Universo.
Entre os últimos estratos do Plioceno, donde o Homem está ausente, e o nível
seguinte, onde o geólogo deveria ser sacudido
de estupefação ao identificar os primeiros quartzos lascados, o que é
que se passou. E qual é a verdadeira dimensão do salto? (Teilhard de Chardin.
1986. p. 185)
A dimensão nova a que se refere Teilhard
vem a ser a Noosfera que vai complementar e coroar a Litosfera e a Biosfera.
Não há necessidade de relembrar que na explicação da transição entre as três
esferas, a Ciência não consegue avançar muito além da formulação de hipóteses
que “não se sustentam por mais do que uma manhã”. O cientista, seja ele
biólogo, paleontólogo, associados ao antropólogo, são desafiados mais uma vez
pela incomoda pergunta: o arsenal disponível dos dados empíricos e as
perspectivas do potencial de
investigação, percebe-se uma probabilidade objetiva de uma resposta conclusiva
convincente? Antes de arriscar um veredicto definitivo é prudente tentar
compreender mais a fundo o sentido real a afirmação de Teilhard: “o geólogo
deveria ser sacudido de estupefação ao identificar os primeiros quartzos
lascados”.
Concedemos que para que para o biólogo, o
paleontólogo, o antropólogo físico ou bio-antropólogo, a transição entre os
símios mais primitivos, os símios antropoides e os homínidas, não cause uma
surpresa tão fora do comum. Afinal lidam com o que a espécie humana tem em
comum com os demais antropoides ou símios e seres vivos em geral. Seus métodos
de investigação são reconhecidamente válidos e aceitos e as hipóteses que
formulam, a partir dos dados de que dispõem, são legítimas. Muitos, entretanto,
não percebem, e quando percebem, não se interessam ou “negligenciam um fator
essencial”, “uma dimensão inteira do Universo”. E, tentando manter fidelidade
ao raciocínio e à cosmovisão de Teilhard, a dimensão a que se refere vem a ser
a “Noosfera”. A questão assume um sentido bem mais polêmica no momento em que
for tratado ao nível do psiquismo. A pergunta de fundo a ser respondida vem a
ser: o psiquismo do homem difere essencialmente daquele dos seres vivos que vieram antes dele, ou a inteligência
animal situa-se apenas num nível um pouco mais abaixo da humana. Ou ainda. A
inteligência humana dispõe somente de algumas ferramentas a mais do que os
antropoides, como por ex., o gorila e chimpanzé e tudo se explica via biologia,
via DNA, etc. Nada de sugerir uma diferença específica, uma diferença
essencial, de natureza, entre o psiquismo humano e o animal. Frente a esse
impasse Teilhard propõe encarar de frente o desafio.
Se queremos resolver essa questão (cuja solução é tão necessária para a
Ética da Vida quanto para o conhecimento puro ... ) a “superioridade do Homem
sobre os Animais, eu não vejo senão um meio: por decididamente de lado, nos
feixes dos comportamentos humanos, todas as manifestações secundarias e
equívocas da atividade interna e encarar de frente o fenômeno da “Reflexão”.
Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a reflexão, como a
própria palavra indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar
sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua
própria consistência e do seu próprio valor: não mais apenas conhecer, - mas
conhecer-se; não mais apenas saber, mas saber que se sabe. Por essa
individualização de si mesmo no fundo de si mesmo, o elemento vivo, até aqui
espalhado e dividido sobre um círculo difuso de percepções e de atividades,
acha-se constituído, pela primeira vez, em centro punctiforme, onde todas as
representações e experiências se entrelaçam e se consolidam num conjunto
consciente de sua organização. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186)
A revolução que o aparecimento da Reflexão
significou para a história posterior da evolução, justifica algumas reflexões
complementares. Quem sabe ler descobre nos quartzos lascados, nos famosos
“machados de punho”, que deveriam ter impressionado os geólogos mais do que
qualquer outra descoberta inusitada, os elementos que distinguem a inteligência reflexa da inteligência
instintiva. De saída os caçadores e coletores do paleolítico flagraram-se
diante e uma situação, que desafiava a
própria chance de competir com êxito com as demais espécies, pela sobrevivência
no contexto da evolução natural. Anatomicamente falando o homem somava-se
àquelas espécies diante mão condenadas ao fracasso na luta pela sobrevivência,
se entregue à lógica implacável da seleção
natural. Basta observar as mãos. Não passam de ferramentas de eficiência
limitada e precária. De um lado servem para tudo e, do outro, não são
eficientes para nada. Basta compará-las com as extremidades dos animais que no
paleolítico disputavam com o homem o espaço e os alimentos. As mãos cavam, mas
cavam mal. Agarram, mas agarram mal. Defendem, mas defendem mal. Entre a
eficiência das garras de um tatu ou de um tamanduá e as mãos do homem, há uma
distancia quilométrica. O mesmo pode-se afirmar do casco de um cavalo, das
patas e um leão ou das mãos de um macaco. Situação semelhante oferece a
dentadura. Nela não há nada similar em termos de eficiência à de um ruminante
ou de um predador natural. E o que julgar da proteção contra as intempéries com
o corpo praticamente desprovido de pelos espessos, de uma cobertura de lã de
camadas protetoras de gordura? Como, então, apesar e tudo, o homem é a única
espécie viva, pelo menos entre os vertebrados, que continua com êxito a sua
trajetória evolutiva?.
A resposta é óbvia. O homem é a única
espécie viva capaz de Reflexão. E na prática o que significa isso? Tomemos como
exemplo aqueles artefatos de sílex lascados, os famosos “machados de punho”. O
que nos ensinam? Que os responsáveis pelo lascamento dispunham da capacidade de
avaliar uma situação e como resposta pôr
em andamento toda uma cadeia de procedimentos, para dar conta dos desafios que
oferecia. Parece legítimo imaginar, entre outras, a seguinte seqüência de
procedimentos: tomar consciência de um problema, por ex., escavar um tubérculo,
tirar a pele de um animal, separar a carne dos ossos, defender-se contra uma
fera ou contra outro homem. Constatada a ineficiência das mãos e dos dentes
recorrer a pedaços de madeira, ossos de animais ou lascas de pedra; imaginar a
possibilidade de tornar esses artefatos mais eficientes por meio de manipulações adequadas; dar-lhes
o formato e os acabamentos necessários para servir à finalidade pretendida. Em
resumo, temos assim a cadeia de operações mentais ditando a natureza e a sequência
de ações necessárias para chegar ao objetivo pretendido. Conclui-se, sem mais,
que o motor é a Reflexão que confere ao homem a capacidade de ter consciência
de uma situação, refletir sobre ela, organizar logicamente os atos em função de
um objetivo a ser alcançado. Na sua maneira peculiar e única, Teilhard resumiu
o “Passo para a Noosfera” e o seu significado para a natureza em geral e o
homem em particular.
Isto posto, eu pergunto. Se, como decorre do que ficou dito, é o fato de
se encontrar “refletido” que constitui o ser verdadeiramente “inteligente”,
podemos nós seriamente duvidar de que a inteligência seja apanágio evolutivo do
Homem e só do Homem? E podemos nós, por conseguinte, hesitar em reconhecer, por
não sei que falsa modéstia, que sua posse representa para o Homem uma avanço
radical em relação a toda a Vida antes dele? O animal sabe, bem entendido. Mas,
certamente, ele não sabe que sabe: de
outro modo, teria há muito tempo multiplicado invenções e desenvolvido um
sistema de construções internas que poderiam escapar à nossa observação.
Consequentemente, permanece fechado para ele todo o domínio do Real, no qual
nós nos movemos, nós, - mas no qual ele, por sua vez, não consegue entrar. Um
fosso, - ou um limiar – para ele intransponível, nos separa. Em relação a ele,
por sermos reflexivos, não somos apenas diferentes, mas outros. Não só simples
mudança de grau, mas de natureza – que
resulta de uma mudança de estado. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186-187).