Da Enxada à Cátedra [ 6 ]

Lugares, espaços e caminhos da infância. 

 

Mais acima já identifiquei geograficamente que os lugares, espaços e caminhos a que me refiro aqui localizam-se no Morro da Manteiga, distrito do município de Tupandi. Nasci no extremo sul daquele planalto voltado para Bom Princípio, São José do Hortênco e, um pouco para o sudoeste São Sebastião do Caí, Pareci Novo e Velho, Montenegro e já quase na linha do horizonte, São Leopoldo e Porto Alegre. Não se enxergavam as cidades durante o dia, mas à noite a iluminação refletia-se nas nuvens ou no céu estrelado. Um morro triangular, o topo plano e coberto de mata virgem intocada descendo até abaixo da coroa, elevava-se cerca de 300 metros acima do planalto. Em torno de 2/3, incluindo a área plana do topo, fazia parte dos 72 hectares da propriedade da minha família. Os lugares, espaços e caminho de que vou falar localizavam-se ao pé daquele morro. A casa em que nasci, toda ela de madeira, desde os alicerces até o telhado fora construída por meu avô materno a cerca de 50 metros duma faixa de mata virgem de cerca de 100 metros de largura, que descia a encosta do morro, emendada nos fundos com a cobertura florestal original que cobria todo o topo e suas bordas. 

 

O conceito de “bem morar” entre os colonos de origem alemã comportava o espaço delimitado por taipas e/ou cercas de arame farpado, que abrigava a casa de moradia propriamente dita, celeiros, estrebarias, chiqueiros, galinheiros, forno de pão, depósito de lenha, moenda de cana, etc. Não podiam faltar árvores frutíferas como bergamoteiras, laranjeiras, marmeleiros, pereiras, macieiras ou alguma outra espécie silvestre que produzia frutas, entre outras o guabiju, a guabiroba e cerejeira do mato. Entre as benfeitorias e as árvores costumavam andar soltos patos, marrecos, galinhas e, naturalmente, cachorros e gatos. Esse espaço abrigando a casa de moradia como epicentro, as benfeitorias, os animais e as árvores, levava o nome de “Hof” – mal traduzido “Pátio”. O conceito ultrapassava em muito o sentido de um simples espaço protegido e delimitado. Nele acontecia “o bem morar” no seu sentido fenomenológico pleno, possibilitando ao ser humano incorporar, desde a sua remota infância, a dimensão espacial da sua identidade. Em outras palavras conscientizar-se e familiarizar-se, na condição de “nascido da terra”, de que ela é a sua casa, sua mãe e pátria, que o chão que pisa, o abriga e lhe fornece o sustento do corpo, a razão de ser de sua existência, a inspiração para seus sonhos e fantasias e o alimento das suas demandas espirituais. O morar, melhor, o bem morar, tem muito mais a ver com a nossa identidade do que normalmente se pensa ou se quer admitir. Nessa perspectiva entende-se que “em muitas línguas se percebe claramente a relação semântica próxima entre o morar e o viver, entre a casa e a vida pois, o morar não significa apenas nos  fixarmo-nos ou nos demoramos em algum lugar. Importa que enquanto moramos vivemos e o viver significa muito mais do que a vida biológica.” (cf. Zaborowski, 1974, p. 223). O autor continua com uma reflexão de Heidegger: “Pois, a minha e a tua maneira de ser, como criaturas humanas na terra, resume-se em construir e morar. Ser humano (Menschlich) implica em vivermos como mortais na terra o que significa morar”. (in Zaborowski, p. 223). Não é aqui o lugar para entrar mais a fundo na filosofia ou fenomenologia do “bem morar”. Remeto esses tipo de reflexões para mais abaixo e os pensadores que mergulharam fundo no sentido do que significa o conceito  do “bem morar” e o monumental desafio da pós modernidade com suas concentrações urbanas, expansão das metrópoles e multiplicação de megalópoles, oferecer o mínimo de “lugares, espaços e caminhos” capazes de permitir que o humano no homem possa realizar-se na plenitude da sua riqueza e complexidade que tem como condição “o bem morar”.  

 

Depois dessa digressão que justifico como alerta que o conceito “morar” significa para os humanos muito mais do que um abrigo contra as intempéries, um refúgio para se proteger dos perigos que espreitam por todos os lados, ou um canto seguro e privativo para se reproduzir, permito-me voltar aos lugares, aos espaços e caminhos em que vivi meus primeiros anos de vida. Mais acima já os descrevi. Até aos 8 anos esse foi o meu mundo. Nasci naquela casa toda de madeira nobre abrigada na sombra de uma faixa de mata virgem e das árvores frutíferas e de sombra em volta dela. Naquele remoto 1930 o hospital mais próximo com médico e enfermeiras e respectivos equipamentos ficava em Porto Alegre a 100 quilômetros de distância por estradas precárias ou via fluvial a partir de São Sebastião do Cai. Todos os nascimentos, também o meu, aconteciam em casa normalmente com o acompanhamento de uma parteira. 

 

Não posso deixar passar o momento para render uma homenagem toda especial à personagem das parteiras, verdadeiros anjos da guarda sempre a postos para que o momento da entrada na vida de mais uma criatura humana acontecesse com os menores traumas possíveis, tanto para a mãe quanto para o nascituro. Essas mulheres carinhosamente chamadas de “tias” ou “tias cegonhas” (Tante ou Storchentante), salvaram a vida de centenas e mais centenas de parturientes e seus bebês naquelas incontáveis situações de risco de vida tanto para as mães quanto para as crianças. Costumavam ser mulheres de colonos com famílias numerosas como era o hábito daquela época, treinadas por parteiras experientes. A partir do final do século XIX o médico austríaco Gabriel Schlatter manteve junto a seu consultório em Estrela uma escola de treinamento de parteiras. Escolhia moças procedentes do interior colonial porque, segundo ele, essa missão pressupunha o conhecimento das circunstâncias e dos usos e costumes familiares daquele meio. Para quem se interessar por mais informações sobre essa missão e suas protagonistas recomendo a tese de doutorado de Giesela Büttner Lermen escrita sob minha orientação no Programa de Pós Graduação em História da Unisinos e publicada em língua alemã com o título: “Deutsche Einwanderinnen in Südbrasilien, 2004”. A versão original em português também acaba de ser oferecida pela Edit. Oykos. 

 

Como mandava o costume o batizado dos recém nascidos costumava acontecer na igreja matriz de Salvador, hoje Tupandi no decorrer das duas semanas após o nascimento. Um primo meu Arthur Rambo, do qual herdei o nome, foi meu padrinho e minha madrinha a Bárbara Both, uma prima em segundo grau do meu pai. A escolha do nome costumava ser feito verificando no calendário o santo padroeiro do dia. Como nasci no dia 3 de fevereiro e como santo do dia venerava-se São Braz ou São Blasio, meu nome completo e registrado tanto no religioso como no civil veio a ser Arthur Blasio Rambo. O registro civil costumava ser feito depois do batizado demorando, não raro, meses e até anos. Assim em não poucos casos havia uma diferença de até um ou dois anos entre a data do registro civil e do religioso.  

 

Cerca de 4 a 5 semanas dois do nascimento, a mãe refeita do parto e suas sequelas, levava o recém-nascido para assistir à missa no domingo e receber a bênção da purificação diante da comunidade reunida. Foi a primeira missa que assisti no colo da minha mãe e tenho toda a convicção, embora de nada me lembre como é óbvio, que aquele momento deve ter deixado uma marca no meu íntimo que continua a influenciar até hoje a minha postura perante os valores perenes da vida. Hoje, 94 anos depois, quando vez por outra visito aquela igreja, minha atenção dirige-se invariavelmente para aquele degrau à esquerda, ao lado do confessionário, onde as mães costumavam ajoelhar-se com seus recém nascidos para receber a bênção da purificação no final da missa, na presença de toda comunidade. Essa prática remontava à tradição judaica que obrigava as mães a apresentar a criança ao Senhor no templo, 20 dias depois do nascimento se fosse menino e 40 dias depois se menina. A comemoração da purificação de Nossa Senhora acontece no dia 2 de fevereiro, celebrado sob os mais diversos títulos. Em Porto Alegre a procissão pluvial de Nossa Senhora dos Navegantes faz parte dos acontecimentos religiosos e turísticos de destaque na cidade.