REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 93

              

Os limites da inovação biológica a partir da pesquisa.
As reflexões que precederam tiveram como uma das intenções básicas insistir no fato de que a humanidade não apenas vive e subsiste na natureza, mas nela se encontra ontologicamente inserida como espécie biológica. Entretanto, ocupa uma posição peculiar por ser dotada de inteligência reflexa que lhe garante a capacidade observar a natureza que a cerca e perguntar como ela funciona, como se originou, porque ela é assim, para onde caminha e qual o lugar e o papel que cabe ao homem fazendo parte dela? A Encíclica resumiu em poucas linhas o poder e, ao mesmo tempo, o limite do seu exercício posto nas mãos do homem quando lhe foi confiado o “cultivo do jardim” no qual foi colocado pelo Criador. 

Na visão filosófica e teológica do ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um fator externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os animais só são legítimas ‘desde que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas’. (Laudato si, 130).

Com essa posição a Encíclica reafirma, de um lado, a peculiaridade do homem dentre todas a demais criaturas pela “razão e sua sabedoria”, sua “inteligência reflexa” conceito recorrente de que nos valemos nas reflexões acima quando está em jogo o relacionamento do homem com a natureza. Essa peculiaridade “não é um fator   externo”, que deve ser excluído, melhor, ignorado como limitador ao avanço científico e a aplicação dos seus resultados. É nessa perspectiva que se coloca a experimentação recorrendo a animais como “cobaias” para desenvolver novos medicamentos, transgênicos, modificações genéticas e todas demais experiências partindo dessa base. Não se trata somente de fazer novas descobertas e desenvolver nova técnicas se não forem legitimadas pela ética que, como em qualquer intervenção na natureza, deve ser a baliza que orienta as ações humanas. A Encíclica chama a atenção que “o poder humano tem limites e é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente de suas vidas”. (Laudato si, 130). Como se pode perceber encontramo-nos frente a um desafio de dimensões incomuns. Em princípio toda e qualquer atividade científica tem como motivação conhecer como funciona a natureza. Uma vez de posse desses conhecimentos permite-lhe desenvolver tecnologias para “cultivar o jardim” no qual passa a sua existência. O “cultivar” pressupõe ações que, pela sua natureza são de alguma forma invasivas. Em outros termos, interferem na natureza, desde um nível quase imperceptível até o limite da quebra do equilíbrio de inúmeros ecossistemas, comprometendo o equilíbrio biológico do planeta como um todo. Mas, essa história já foi de alguma forma objeto das nossas reflexões mais acima.

Ciência e saúde
Chegou o momento de nos ocuparmos com as tecnologias desenvolvidas para o tratamento dos mais diversos males que afetam a saúde das pessoas, desenvolvendo medicamentos cada vez mais diversificados e mais eficientes. Nessa área os últimos 150 anos foram decisivos para a melhora da saúde do planeta, dobrando em não poucos países a expetativa de vida. Tomando por base o recenseamento do Brasil de 1940, considerado o primeiro  confiável, a expectativa de vida média do brasileiro oscilava em torno dos 42 anos e no de 2000 subiu para 70,4 e em 2015 para 75,5. A partir de 1850, ano de referência desses dados a pesquisa e a tecnologia correspondente deu um salto, uma revolução para melhor, de dimensões difíceis de avaliar.

O primeiro grande nome de cientista nessa verdadeira guerra contra os males responsáveis pela morte de milhões de pessoas, a consequente baixa média da expectativa de vida, foi Louis Pasteur (1822-1895). Pasteur já era um nome de destaque na pesquisa científica antes de centrar sua atenção na área médica e da saúde em 1865. Em 1861 recebera o prêmio da Academia de Ciências por ter desenvolvido técnicas para controlar o desenvolvimento de micro-organismos em alimentos e bebidas, método hoje conhecido como Pasteurização. Depois dessa memorável conquista da ciência e criados os meios de a por em prática, Pasteur foi requisitado para descobrir o motivo da mortandade que acometeu as larvas do bicho da seda, causando prejuízos enormes à produção de seda na França. Em 1850 haviam sido colhidas 20000 toneladas na França. O volume foi caindo até 4000 toneladas em 1865. Depois de examinar os sintomas pôs-se a procurar a causa da epidemia. Chegou à conclusão de que os responsáveis eram micro-organismos presentes na poeira do ar dos recintos em que as larvas eram criadas, contaminando as folhas da amoreira de que se alimentavam, levando à morte aquelas que apresentavam predisposição genética para desenvolver a “peprina” nome dado ao desenvolvimento de pontos negros nas lavras, inclusive em seus órgãos internos. Pasteur ensinou os produtores de seda como identificar os ovos defeituosos e eliminá-los e evitar que as folhas da amoreira fossem contaminadas. A partir de todas essas pesquisas Pasteur chegou à conclusão que as doenças eram causadas por micróbios específicos para cada uma.  Comprovou que os estafilococos eram os responsáveis pelo desenvolvimento dos furúnculos, poliomielite e outras doenças.

Com esses dados na mão Pasteur convenceu-se de que a causa de muitas doenças era externa ao organismo. Com isso, estava criada a possibilidade de desenvolver técnicas de esterilização e assepsia diminuindo drasticamente as infecções pós cirúrgicas, a obstetrícia, ferimentos, injeções, e qualquer intervenção invasiva no organismo. Aos méritos enumerados creditados a Pasteur soma-se mais um tão ou mais benéfico do que os outros. Falamos da descoberta do princípio de como se desenvolve e como funciona a vacina. Não é aqui o lugar para entrar nas particularidades científicas e as técnicas da vacina. O fato é que se trata de uma descoberta que abriu um leque sem limites posto à disposição da saúde da humanidade como meio eficaz para prevenir-se contra todo tipo de enfermidades que têm como causa agentes externos como os micróbios. A técnica manual e em pequena quantidade do começo desenvolveu-se numa velocidade e diversificação espantosa. Hoje a descoberta do cientista francês anima centenas de laboratórios especializados para atender a demanda de sempre novas modalidades de agentes microbianos externos. Inclusive bioreatores são utilizados para atender a demanda em plena expansão.

Louis Pasteur é uma dessas personalidades emblemáticas de cientista que revolucionou com suas descobertas o campo da saúde, lançou os fundamentos que moldaram o panorama no qual se lida com ela nas muitas modalidades em que é praticada. Sobre este princípio o médico pesquisador Albert Sabin (1906-1993) desenvolveu a famosa vacina das “duas gotinhas” contra a poliomielite ou paralisia infantil causada por um vírus que se instala nos intestinos e ataca o sistema nervoso, levando à paralisia parcial ou total. Temos aqui mais um exemplo da importância das descobertas de Louis Pasteur e o desenvolvimento de procedimentos para melhorar a saúde pública. Milhões de crianças ficaram livres dos efeitos degenerativos da paralisia infantil desde a década de 1940, quando essa vacina se popularizou e se tornou um prática  rotineira imunizando as crianças por meio de campanhas de vacinação. No mesmo patamar de importância de Pasteur e Sabin, Alexander Fleming contribuiu no combate a muitas formas de doenças até então incuráveis. Por um desses acasos que foram revolucionários em outras descobertas, em 1928, ao estudar culturas do Staphylococcus aureus Fleming constatou, numa amostra que esquecera sobre a mesa durante suas férias, o desenvolvimento de um fungo do gênero Penicillium que apresentava espaços transparentes. Fleming concluiu que os fungos liberavam algum tipo de substância que matava as bactérias. Depois de comprovado que afetava as células de animais, foi alguns anos mais tarde purificado e concentrado em laboratório por dois outros cientistas: Howard Florey e Ernst Chain. Ficou mundialmente famosa com o nome de “Penicilina” e usada em grande escala durante a Segunda Guerra Mundial para tratar ferimentos infectados por bactérias. Na década de 1940, os três cientistas foram contemplados com o prêmio Nobel de medicina e o antibiótico passou a ser posto à disposição da população civil.

As conquistas de Pasteur, Sabin e Fleming muniram a medicina com poderosos e eficientes armas para combater doenças que causavam constante preocupação e não havia medicamentos eficazes para combate-las. Entre muitas vale destacar a pneumonia, sífilis, difteria, meningite, bronquite, e outras infecções das mais diversas modalidades. A Revolução dos três na área da medicina em nada fica a dever a Galileu, Copérnico e Keppler na astronomia, Newton na física e matemática, Darwin na evolução,  Max Plank na Física, Einstein na Física, Mendel e Dobzhansky na genética, Marconi na telegrafia sem fio, Francis Collins na genética médica, Edward Wilson no estudo dos ecossistemas e a importância dos insetos e inúmeros outros.

Não se podem esquecer os “senões” inevitavelmente relacionados como os aspectos questionáveis que acompanham as descobertas científicas de dimensão planetária sobre o controle dos agentes causadores de não poucas enfermidades graves. Mas, o lado positivo que acabamos de mencionar merece ser saudado com entusiasmo. Há, porém, o outro lado que de maneira alguma pode ser ignorado ou relativizado. Referimo-nos aos experimentos que se valem de animais como “cobaias” para desenvolver e testar os novos medicamentos para serem, uma vez confirmada sua eficácia e inocuidade, recomendadas pelas autoridades sanitárias e postos à disposição do público em farmácias, drogarias, postos de saúde, etc. A Encíclica chama a atenção que o recurso a animais e plantas não pode ser indiscriminada e tem seus limites. “O poder humano tem limites e que é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas. Todo o uso e experimentação exige um respeito religioso pela integridade da criação”. (Laudadto si, 130). A essa consideração a Encíclica acrescenta as ponderações de João Paulo II que resume o tamanho e o número de implicações sobre outros campos induzidas pela manipulação da natureza, de modo especial a genética.

Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que ‘manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus’, mas ao mesmo tempo recordava que ‘que toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir  da consideração das suas consequências noutras áreas’. Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição ‘do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria’, embora dissesse também que isso não deve levar a uma ‘indiscriminada manipulação genética’ que ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a uma artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para progresso científico e tecnológico, cuja capacidade foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar, os efeitos, o contexto e os limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de poder de grandes riscos. (Laudato si, 131).

Mais acima já chamamos a atenção que todo o avanço tecnológico significa uma contribuição para aperfeiçoar as ferramentas que impulsionam o progresso. Mas, ao mesmo tempo, se a produção e comercialização dessas “ferramentas” forem controladas e monopolizadas por empresas privadas ou governos, transformam-se em instrumentos de “poder”. Os preços são estabelecidos por eles e, com isso, dificultam que uma grande porcentagem da população se beneficie dos resultados. Laboratórios de porte internacional detêm as patentes exclusivas dos medicamentos, da manipulação genética responsáveis pela modificação de organismos. A tudo isso soma-se à produção de transgênicos e o complexo de pesticidas, herbicidas, adubos químicos e por aí vai. Os efeitos em termos ecológicos já foram objeto de reflexões mais acima. A tudo isso acresce outro “senão” de difícil dimensionamento. Com o poder da tecnologia sob controle, seus donos dificultam ou simplesmente impedem o registro de novos medicamentos, com destaque para os fitoterápicos cujo potencial de eficácia está sendo comprovado na prática em não poucas modalidades de enfermidades das quais as drogas químicas não dão conta. Fato similar acontece com o combate biológico das “pragas” que reduzem a produtividade das lavouras.

Com esse panorama como fundo somos levados a insistir que a pesquisa científica faz parte indispensável da missão do homem ao “cultivar” a “sua casa”, a “sua mãe e pátria”, que o sustenta e abriga para cumprir com sucesso a sua jornada existencial. No discurso proferido por João Paulo II na sessão por ocasião da solene assembleia da Pontifícia Academia de Ciências em homenagem a Einstein por ocasião do centenário do seu nascimento, o pontífice confirmou que esse também é o entendimento da Igreja.  “A Sé Apostólica quer também prestar a Albert Einstein a homenagem que lhe é devida pela contribuição eminente que trouxe ao progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade, presente no mistério do universo”. (João Paulo II, 10 de novembro de 1979). Continua depois relembrando a missão de Pio XI dada aos sábios integrantes da Pontifícia Academia de Ciências, recriada por ele: “a fazerem progredir, cada vez mais nobre e intensamente, as ciências, sem lhes pedir a mais; isto porque, neste excelente propósito e neste labor, consiste a missão de servir a verdade, da qual nós  os encarregamos”. (Motu próprio, 28 de outubro de 1936). Em seguida o pontífice resumiu o significado central do conceito “fazer ciência”.

A investigação da verdade é a tarefa fundamental da ciência. O investigador, que se move nesta primeira vertente da ciência, sente toda a fascinação das palavras de Santo Agostinho: “Intellectum valde ama” – “Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria, de conhecer a verdade. A ciência pura é um bem, digno de ser muito amado, porque ela é conhecimento e, portanto, perfeição do homem na sua inteligência. Antes mesmo das suas aplicações técnicas, deve ela ser honrada por si mesma, como parte integrante da cultura. A ciência fundamental é bem universal, que todos os povos devem poder cultivar em plena liberdade de qualquer forma de servidão internacional ou de colonialismo intelectual.
A investigação fundamental deve ser livre diante dos poderes político e econômico, que hão de colaborar para o desenvolvimento dela, sem a deter na sua criatividade nem a fazer servir aos próprios interesses. Como toda outra verdade, a verdade científica não tem, como efeito, de dar contas senão a si mesma e à Verdade suprema que é Deus, criador do homem e de todas as coisas”.
Na sua vertente, volta-se a ciência para as aplicações práticas, que encontram o pleno desenvolvimento nas diversas tecnologias. Na fase das suas realizações concretas a ciência é necessária à humanidade para satisfazer as justas exigências da vida e vencer os diferentes males que a ameaçam. Não há dúvida que a ciência aplicada prestou e prestará aos homens serviços imensos, contanto que seja, ao menos um tanto, inspirada pelo amor, regulada pela sabedoria e acompanhada pela coragem que a defende   contra ingerência indevida de todos os poderes tirânicos. A ciência aplicada deve aliar-se à consciência para que, no trinômio ciência-tecnologia-consciência, seja servida a causa do verdadeiro bem do homem. (João Paulo II, discurso para os integrantes da PAC, em assembleia comemorativa do centenário de nascimento de Albert Einstein, 10 de novembro de 1979)

Essa passagem do discurso de João Paulo II dirigida aos membros da Pontifícia Academia de Ciências, resume o tripé sobre o qual se fundamenta o conceito “fazer ciência”. O “fazer ciência”, a investigação, a curiosidade de conhecer a complexidade do universo e da natureza, faz parte da própria condição humana. Dotado de intelecto, ou se preferirmos, de inteligência reflexa, o homem não se contenta apenas em viver e sobreviver, como também procurar entender “como” o mundo funciona e “porque” afinal é assim e o “sentido” de tudo que nele se encontra. Em outras palavras, pela investigação, pelo fazer ciência, cultiva-se a inteligência em busca da Verdade, independentemente da aplicação por meio de tecnologias desenvolvidas a partir do potencial prático que oferece. Entendida assim a ciência como resultado da atividade do intelecto é um bem em si. Ela se basta si mesma independentemente de alguma aplicação prática. Neste nível ela se resume numa demonstração do que é capaz a mente humana quando se conscientiza da magnificência, da beleza, do belo e do sublime revelado em milhões de formas e cores, nos matizes mais inusitados do universo e da natureza.  Desperta nela então a curiosidade, a ânsia de procurar entender a multiplicidade, a complexidade e a urdidura que faz com que a natureza mineral, os micro-organismos, a flora, a fauna e nela a espécie humana se relacionam formando uma grande síntese. A Ciência assim entendida constitui-se num dos elementos de todas as culturas. Acontece que as muitas culturas e subculturas moldaram os seus perfis em condições físico geográficas as mais variadas. Sendo assim, a prática da investigação científica percorre caminhos diversos e assume formas próprias. Mas todas elas partem do mesmo fundamento enunciado por Sto. Agostinho citado mais acima: “Intellectum valde ama – Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria e que converge para o objetivo comum: a busca da Verdade. 







REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 92


Os limites da inovação biológica a partir da pesquisa.

As reflexões que precederam tiveram como uma das intensões básicas insistir no fato de que a humanidade não apenas vive e subsiste na natureza, mas  nela se encontra ontologicamente inserida como espécie biológica. Entretanto, ocupa uma posição  peculiar por ser dotada de inteligência que lhe garante  a capacidade observar observar a natureza que o cerca e perguntar como ela funciona,  como se originou, porque ela é assim, para onde caminha e qual o lugar e o papel que cabe ao homem  fazendo parte dela? A Encíclica resumiu em poucas linhas o poder e, ao mesmo tempo, o limite do seu exercício posto nas mãos do homem quando lhe foi confiado o “cultivo do jardim” no qual foi colocado pelo Criador. 

Na visão filosófica e teológica o ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria,  não é um fator externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os animais só são legítimas ‘desde que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas’. (Laudato si, 130).

Nessa posição da Encíclica afirma-se, de um lado, a peculiaridade do homem dentre todas a demais criaturas pela “razão e sua sabedoria”, sua “inteligência reflexa” conceito recorrente  de que nos valemos nas reflexões acima quando está em jogo o relacionamento do homem com a natureza. Essa peculiaridade “não é um fator   externo”, que deva ser excluído, melhor, ignorado como limitador ao avanço científico e a aplicação dos seus resultados. É nessa perspectiva que se coloca a experimentação recorrendo a animais como “cobaias” para desenvolver novos medicamentos, transgênicos, modificações genéticas e todas demais experiências partindo dessa base. Não se trata somente de fazer novas descobertas e nova técnicas se não forem legitimadas pela ética que, como em qualquer intervenção na natureza, deve ser a baliza que orienta as ações  humanas. A Encíclica chama a atenção  que “o poder humano tem limites e é contrário à dignidade humana  fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente de sus vidas”. (Laudato si, 130). Como se pode perceber encontramo-nos frente a um desafio de dimensões incomuns. Em princípio toda e qualquer atividade científica tem como motivação conhecer  como funciona a natureza. Uma vez de posse desses conhecimentos permite-lhe desenvolver tecnologias para “cultivar o jardim” no qual passa a sua  existência. O “cultivar” pressupõe ações que, pela sua natureza são de alguma forma invasivas. Em outros termos, interferem na natureza, desde um nível quase imperceptível até o limite da quebra do equilíbrio de inúmeros ecossistemas, comprometendo o equilíbrio biológico do planeta como um todo. Mas, essa história já foi de alguma forma objeto das nossas reflexões mais acima.


Ciência e saúde
Chegou o momento de nos ocuparmos com as tecnologias desenvolvidas para o tratamento dos mais diversos males que afetam a saúde das pessoas, desenvolvendo medicamentos cada vez mais diversificados e mais eficientes. Nessa área os últimos 150 anos  foram decisivas para a melhora da saúde do planeta, dobrando em não poucos países a expetativa de vida. Tomando por base o recenseamento do Brasil de 1940, considerado o primeiro recenseamento confiável,  a expectativa de vida média o brasileiro ficava em 40,2 anos e no de 2000 subiu para 70,4 e em 2015 para 75,5. A partir de 1850, ano de referência desses dados a pesquisa e a tecnologia correspondente deu um salto, uma revolução para melhor,  de dimensões difíceis de avaliar.

O primeiro grande  nome de cientista nessa verdadeira guerra contra os males responsáveis pela morte de milhões de pessoas  e a consequente baixa média da expectativa de vida, foi Louis Pasteur (1822-1895). Pasteur já era um nome de destaque na pesquisa científica antes de centrar suas atenção na área médica em 1865. Em 1861 recebera o prêmio da Academia de Ciências por ter desenvolvido técnicas para controlar o desenvolvimento de micro-organismos em alimentos e bebidas, método hoje conhecido como Pasteurização. Depois dessa memorável conquista da ciência e criados os meios de a por em prática, Pasteur foi requisitado para descobrir o motivo da mortandade que acometeu as larvas do bicho da seda, causando prejuízos enormes a produção de seda na França. Em 1850 haviam sido produzidas 20000 toneladas  na França. O volume foi caindo até 4000 toneladas em 1865. Depois de examinar os sintomas pôs-se a procurar a causa da epidemia. Chegou à conclusão que os responsáveis eram micro-organismos presentes na poeira do ar dos recintos em que as larvas eram criadas, contaminando as folhas da amoreira de que se alimentavam, levando à morte aquelas que apresentavam predisposição genética para desenvolver a “peprina” nome dado ao desenvolvimento de pontos negros nas lavras, inclusive em sus órgãos internos. Pasteur ensinou os produtores de seda como identificar os ovos defeituosos e eliminá-los e evitar que as folhas da amoreira fossem contaminadas. A partir de de todas essas pesquisas Pasteur  chegou à conclusão que as doenças eram causadas por micróbios específicos para cada uma.  Comprovou que os estafilococos eram os responsáveis pela desenvolvimento dos furúnculos, osteomielite  e outras doenças.

Com esses dados na mão Pasteur convenceu-se de que a causa  de muitas doenças era externa ao organismo. Com isso, estava criada a possibilidade de desenvolver técnicas de esterilização e assepsia diminuindo drasticamente  as infecções pós cirúrgicas, a obstetrícia, ferimentos, injeções, e qualquer intervenção invasiva no organismo. Aos méritos enumerados creditados a Pasteur soma-se mais um tão ou mais benéfico do que os outros. Falamos da descoberta do princípio de como se desenvolve e como funciona a vacina. Não é aqui o lugar para entrar nas particularidades científicas e as técnicas da vacina. O fato é que se trata de uma descoberta que abriu um leque sem limites posto à disposição da saúde da humanidade como meio eficaz para se prevenir contra todo tipo de enfermidades que têm como causa agentes externos como os micróbios. A técnica manual e em pequena quantidade do começo desenvolveu-se numa velocidade e diversificação espantosa. Hoje a descoberta do cientista francês anima centenas de laboratórios especializados para atender a demanda de sempre novas modalidades de agentes microbianos externos. Inclusive bioreatores são utilizados para a demanda em plena expansão.

Louis Pasteur é uma dessas personalidades emblemáticas de cientista que revolucionou com suas descobertas o campo da saúde, lançou os fundamentos que moldaram o panorama no  qual se lida com a ela nas muitas modalidades em que é praticada. Sobre este princípio  o médico pesquisador Albert Sabin (1906-1993) desenvolveu a famosa vacina das “duas gotinhas” contra a poliomielite ou paralisia infantil causada por um vírus que se instala nos intestinos e ataca o sistema nervoso, levando à paralisia parcial ou total. Temos aqui mais um exemplo da importância das descobertas de Louis Pasteur e o desenvolvimento de procedimentos para melhorar a saúde  pública. Milhões de crianças ficaram livres dos efeitos degenerativos da paralisia infantil desde a década de 1940, quando essa vacina se popularizou e se tornou um prática rotineira  imunizando as crianças por meio de campanhas  de vacinação. No mesmo patamar de importância de Pasteur e Sabin, Alexander Fleming contribuiu no combate a muitas formas de doenças até então incuráveis. Por um desses acasos que foram revolucionários em outras descobertas, em 1928, ao estudar culturas Staphylococcus aureus Fleming constatou, numa amostra que esquecera sobre a mesa durante suas férias, o desenvolvimento do um fungo do gênero Penicillium que apresentava  espaços transparentes. Fleming concluiu que que os fungos liberavam algum tipo de substância  que matava as bactérias. Depois de comprovado que afetava as células de animais, foi alguns anos mais tarde purificado e concentrado em laboratório por dois outros cientistas: Howard Florey e Ernst Chain. Ficou mundialmente famosa com o nome de “Penicilina” e usada em grande escala durante a Segunda Guerra Mundial para tratar ferimentos infectados por bactérias. Na década de 1940, os três cientistas  foram contemplados com o prêmio Nobel de medicina e o antibiótico passou a ser  posto à disposição da população civil.

As conquistas de Pasteur, Sabin e Fleming  muniram a medicina com poderosos e eficientes armas para combater doenças que causavam constante preocupação e não havia medicamentos eficazes para combate-las. Entre muitas vale destacar a pneumonia, sífilis, difteria, meningite, bronquite, e outras infecções das mais diversas modalidades. A Revolução dos três na área da medicina em nada ficam a dever a Galileu, Copérnico e Keppler na astronomia, Newton na física e matemática, Darwin na evolução,  Max Plank na Física, Einstein na Física, Mendel na genética, Marconi na telegrafia sem fio, Francis Collins com o mapeamento do genoma humano, e não poucos outros.

Não se podem esquecer os “senões” inevitavelmente relacionados como os aspectos questionáveis que acompanham as descobertas científicas de dimensão planetária sobre o controle dos agentes causadores de não poucas enfermidades graves. Mas, esse é o lado da medalha que merece ser saudado com entusiasmo. Há, porém, o outro lado que de maneira alguma pode ser ignorado ou relativizado. Essa outra face do progresso da ciência e tecnologia oferece uma questão que de forma alguma pode ser desprezada. Referimo-nos aos experimentos que se valem de animais como “cobaias” para desenvolver e testar os novos medicamentos para serem, uma vez confirmada sua eficácia e inocuidade, recomendadas pela autoridades sanitárias e postos à disposição do público em farmácias, drogarias, postos de saúde, etc. A Encíclica chama a atenção que o recurso a animais e plantas não pode ser indiscriminada e tem seus limites. “o poder humano tem limites e que é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente  os animais e dispor indiscriminadamente  das suas vidas. Todo  o uso e experimentação exige um respeito religioso pela integridade da criação”. (Laudadto si, 130). A essa consideração a Encíclica acrescenta as ponderações de João Paulo II que resume o tamanho e o número de implicações sobre outros campos induzidas pela manipulação da natureza, de modo especial a genética.

Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que ‘manifestam  quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus’, mas ao mesmo tempo recordava que ‘que toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir  da consideração das suas consequências noutras áreas’. Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição ‘do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação  tecnológica na agricultura e na indústria’, embora disse também que isso não deve levar  uma ‘indiscriminada manipulação genética’ que ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a uma artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se pode proibir a um artista que exprima sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para progresso científico e tecnológico, cuja capacidade foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar, os efeitos, o contexto e os limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de poder de grandes riscos. (Laudato si, 131).

Mais acima já chamamos a atenção que todo o avanço tecnológico significa uma contribuição para aperfeiçoar as ferramentas que impulsionam o  progresso. Mas, ao mesmo tempo, se a produção e comercialização dessas “ferramentas” forem controladas e monopolizadas por empresas privadas ou governos, transformam-se em instrumentos de “poder”. Os preços são  estabelecidos por eles e, com isso, dificultam que uma grande porcentagem da população se beneficie dos resultados. Laboratórios de porte internacional detêm as patentes exclusivas dos medicamentos, da manipulação genética responsáveis pela modificação de organismos. A tudo isso soma-se à produção de transgênicos e o complexo de pesticidas, herbicidas, adubos químicos e por aí vai. Os efeitos em termos ecológicos já foram objeto de reflexões mais acima. A tudo isso acresce outro “senão” de difícil dimensionamento. Com o poder da tecnologia sob controle, dificultam ou simplesmente impedem o registro de novos medicamentos, com destaque para os fitoterápicos cujo potencial de eficácia já foi comprovado na prática em não poucas modalidades de enfermidades das quais as drogas químicas não dão conta. Fato similar acontece com o combate biológico das “pragas” que reduzem a produtividade das lavouras.

Com esse panorama como fundo somos levados a insistir que a pesquisa científica faz parte indispensável  da missão do homem de “cultivar” a “sua casa”, a “sua mãe e pátria”, que o sustenta e abriga para cumprir a sua jornada existencial. No discurso proferido por João Paulo II na sessão por ocasião da solene assembleia da Pontifícia Academia de Ciências em homenagem a Einstein por ocasião do centenário do seu nascimento, o pontífice confirmou que esse também é o entendimento da Igreja.  “A Sé Apostólica quer também prestar a Albert Einstein a homenagem que lhe é devida pela contribuição eminente que trouxe ao progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade, presente no mistério do universo”. (João Paulo II, 10 de novembro de 1979). Continua depois relembrando a missão de Pio XI dada aos sábios integrantes da Pontifícia Academia de Ciências, recriada por ele: a fazerem “progredir, cada vez mais nobre e intensamente, as ciências, sem lhes pedir a mais; isto porque, neste excelente  propósito e neste labor, consiste a missão de servir a verdade, da qual nós  os encarregamos”. (Motu próprio,  28 de outubro de 1936). Em seguida o pontífice resumiu o significado central do conceito “fazer ciência”.

A investigação da verdade é a tarefa fundamental da ciência. O investigador, que se move nesta primeira vertente da ciência, sente toda a fascinação das palavras de Santo Agostinho: “Intellectum valde ama” – “Ama muito  a inteligência” e a função que lhe é própria, de conhecer a verdade. A ciência pura é um bem, digno de ser muito amado,  porque ela é conhecimento e portanto perfeição do homem na sua inteligência. Antes mesmo das suas aplicações técnicas, deve ela ser honrada por si mesma, como parte integrante da cultura. A ciência fundamental é bem universal, que todos os povos devem poder cultivar em plena liberdade de qualquer forma de servidão internacional ou de colonialismo intelectual.
A investigação fundamental deve ser livre diante dos poderes político e econômico, que hão de colaborar para o desenvolvimento dela, sem a deter na sua criatividade nem a fazer servir aos próprios interesses. Como toda outra verdade, a verdade científica não tem, como efeito, de dar contas senão a si mesma e à Verdade suprema que é Deus, criador do homem  e de todas as coisas”.
Na sua vertente, volta-se a ciência para as aplicações práticas, que encontram o pleno desenvolvimento nas diversas tecnologias. Na fase das suas realizações concretas a ciência é necessária à humanidade para satisfazer as justas exigências da vida e vencer  os diferentes males  que ameaçam. Não há dúvida que a ciência aplicada prestou e  prestará aos homens serviços imensos, contato que seja, ao menos um tanto, inspirada pelo amor, regulada pela sabedoria e acompanhada pela coragem que a defende   contra ingerência indevida de todos os poderes tirânicos. A ciência aplicada deve aliar-se à consciência para que, no trinômio ciência-tecnologia-consciência, seja servida  a causa do verdadeiro bem do homem. (João Paulo II, discurso para os integrantes da PAC, em assembleia comemorativa do centenário de nascimento de Albert Einstein, 10 de novembro de 1979))

Essa passagem do discurso de João Paulo II dirigida aos membros da Pontifícia Academia de Ciências, resume o tripé sobre o qual se fundamenta o conceito de “fazer ciência”. Em primeiro lugar, o “fazer ciência”, a investigação, a curiosidade de conhecer a complexidade do universo e da natureza, faz parte da própria condição humana. Dotado de intelecto, ou se preferirmos, de inteligência reflexa, o homem não se contenta apenas em viver e sobreviver, como também procurar entender “como” o mundo funciona  e “porque” afinal é assim. Em outras palavras, pela investigação, pelo fazer ciência, cultiva-se a inteligência em busca da Verdade, independentemente da aplicação por meio de tecnologias desenvolvidas a partir do potencial prático que oferece. Entendida assim a ciência como resultado da atividade do intelecto é um bem em si. Ela se basta si mesma independentemente de alguma aplicação prática. Neste nível ela se resume numa demonstração do que é capaz a mente humana quando toma consciência da magnificência, da beleza, do belo e do sublime revelado em  milhões de formas e cores,  nos matizes mais inusitados do universo e da natureza.  Desperta nela então a curiosidade, a ânsia de procurar entender a multiplicidade, a complexidade e a urdidura que faz com que a natureza mineral, os micro organismos, a flora, a fauna e nela espécie humana se relacionam formando uma grande síntese. A Ciência assim entendida constitui-se num dos elementos de todas as culturas. Acontece que as muitas culturas e subculturas moldaram os seus perfis em condições físico geográficas as mais variadas, a prática da investigação científica percorre caminhos diversos e assume formas próprias. Mas todas elas partem do mesmo fundamento enunciado na citação acima por Sto. Agostinho: “Intellectum valde ama – Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria e converge para o objetivo comum: a busca da Verdade.

REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 91


Inovação biológica a partir da pesquisa.

Depois de nos ocuparmos da Biotecnologia e de seus aspectos positivos e negativos quando posta em prática nos seres vivos, incluindo o homem; depois de nos termos centrado na importância da preservação de ecossistemas, ou pelo menos porções significativas deles, na forma de parques, áreas de proteção ambiental, biomas ou outros conceitos mais, falta refletir sobre os benefícios e, principalmente, malefícios dos assim chamados “defensivos” agrícolas. Esses produtos largamente utilizados para eliminar pragas que diminuem sensivelmente a produtividade ou a inviabilizam pura e simplesmente, vêm acompanhados de efeitos colaterais mais negativos do que se suspeita ou quer admitir. Em se tratando dos pesticidas apontamos os dois que parecem os mais discutíveis. Entre eles destacamos aquele que se refere ao combate das larvas e espécies de insetos em geral que invadem as plantações para alimentar-se comprometendo a produtividade. Acontece que com a sua eliminação em estágio larval e/ou adulto resulta, de alguma forma num desequilíbrio maior ou menor na harmonia do acontecer na natureza. Além das assim chamadas pragas todos os demais insetos, formigas, vermes nematoides, minhocas, ácaros, além de milhares de espécies de micro organismos  têm na vegetação e nos solos seu habitat. Uma tonelada de terra e húmus abriga dezenas de milhares de espécies de micro organismos.  Num punhado de terra vivem cerca de 10 bilhões de bactérias pertencentes a 6000 espécies diferentes. A população de ácaros da família Oribatidae praticamente invisíveis que se movimentam num toco de árvore em decomposição equivale à de toda Manhattan. As bactérias que convivem com esses ácaros equivalem à população do estado de Nova York. Todo esse micro e nano mundo passa despercebido para o homem e pior, é que poucos têm uma noção mínima da importância desse mundo de seres vivos microscópicos na manutenção do equilíbrio e da fertilidade dos solos que tornam possível a existência e a sustentabilidade da macro fauna e flora. Os parques nas cidades, a árvores plantadas nas calçadas das rua e avenidas, os canteiros de flores e plantas ornamentais nos jardins públicos, mesmo a vegetação que consegue desenvolver-se nas frestas dos muros e calçamentos, os vasos com flores nas sacadas, fervilham de vida. Seu continente é a floreira, o canteiro de fundo quintal, o húmus e o chão junto às raízes de uma árvore e as poças de água da chuva seus oceanos. (cf. Wilson, 2008).

Nossa intenção com esses dados e informações resume-se em dar uma ideia do que significa quando se fala em biosfera, isto é, a  finíssima e delicadíssima camada de solo que envolve o nosso planeta e na  qual prospera a vida terrestre. Em termos relativos forma uma fina película que envolve os continentes e ilhas. Pelas informações que a ciência está em condições de nos oferecer no momento em nenhum outro planeta, muito menos estrela ou cometa se comprovou existir algo semelhante à biosfera. Esses fato não exclui a possibilidade de que possa haver vida fora da terra, portanto, astros com  biosfera. Mas, essa é um desafio a se enfrentado pelos astrofísicos valendo-se dos sus métodos e instrumentos de pesquisa. No contexto em que estamos refletindo, isto é, “salvar a vida na terra”, na definição de Wilson, a preocupação centra-se em conscientizar as pessoas e chamar atenção daqueles que detêm algum poder sobre a direção em que vai a atual civilização, que a “nossa casa” encontra-se seriamente danificada e é preciso tomar decisões rápidas e de longo alcance para consertar os estragos já feitos. Cabe destacar que

A Terra oferece uma bolha auto regulada que nos sustenta  indefinidamente, sem nenhum raciocínio ou artifício da nossa parte. Esse escudo de proteção é a biosfera – a totalidade da vida, criadora de todo ar, purificadora de todas as águas, administradora de todo solo; mas ela é, em si mesma uma frágil membrana que mal consegue se agarrara à superfície da terra. De sua delicada saúde nós dependemos para cada momento da nossa vida.  ( ... ) nascemos aqui como espécie, somos intimamente adaptados às sua condições severas – não a todas, apenas aquelas reinantes em alguns regimes climáticos em certas partes da área terrestre. (Wilson, 208, p. 36)

Mais acima  já lembramos que os pesticidas aplicados em grande escala e em em superfícies gigantescas como nas monoculturas do agronegócio diminuem ou, em casos extremos, reduzem indistintamente a um nível crítico inúmeras espécies de insetos responsáveis pela polinização dos fanerógamos ou plantas com flores. Neste particular cabe às muitas espécies de abelhas melíferas um papel fundamental na polinização de pomares de maçãs, peras, ameixas, laranjeiras, e inúmeras outras espécies de plantas melíferas rasteiras, arbustivas e árvores de maior porte. Ha algum tempo assisti a um documentário que mostrava que na China gastam-se fortunas com  a polinização manual dos pomares de maçãs, simplesmente por que as abelhas foram varridas de regiões inteiras pelo excesso do emprego de pesticidas de todos os tipos e composições químicas nocivas, tanto aos insetos quanto ao próprio homem. Em termos de agressão à natureza os herbicidas, os fungicidas e os próprios adubos químicos não perdem dos pesticidas em restrições. Os danos causados aos insetos principalmente polinizadores, a fuga das aves, pequenos roedores, batráquios, repteis, deixam para trás uma paisagem biologicamente depauperada. A todos esses estragos soma-se mais um, pouco ou nada lembrado, ao se analisarem as inconveniências que resultam do recurso indiscriminado e exagerado de produtos químicos na agricultura. Pouco acima fizemos referência à espantosa quantidade e variedade de espécies de vermes, minhocas, micro e nano organismos que povoam os solos. Sua tarefa nessa engenhosa síntese que é natureza, consiste em manter o solo arejado, processar o material orgânico que  resulta do descarte das  folhas, dos vegetais e animais mortos além dos resíduos orgânicos que vão se acumulando na superfície. Depois de processado todo esse material e incorporado no solo combinado com o regime das chuvas, o clima mais frio, mais quente ou mais moderado formam a plataforma sem a qual os ecossistemas no rigoroso sentido  do conceito são inviáveis. As áreas afetadas com o excesso do recurso indiscriminado de produtos químicos, incluindo fertilizantes caminham para a esterilidade, fenômeno que exige sempre maior recurso a meios artificiais, com destaque para os químicos para garantir a produtividade.

Ao depauperamento dos solos somam-se outros efeitos colaterais que aos poucos vão sendo identificados e denunciados com crescente irritação das mega empresas que controlam a produção e a comercialização desse filão de produtos. Alguns são comprovadamente cancerígenos e sem as devidas precauções na sua aplicação afetam os pulmões e põe em risco a saúde e a própria vida dos que os manuseiam. A cada ano que passa o agronegócio baseado em monoculturas que ocupam centenas de milhares de hectares, avançam sobre novas fronteiras. Na verdade transformam as terras planas do planeta em desertos verdes nos quais a não há lugar  para a diversidade biológica, fundamental para o equilíbrio edafológico, climático, botânico e zoológico. A visita a uma paisagem como a descrita enche de entusiasmo o observador comum e, de modo especial os donos, com a promessa de uma colheita abundante. Visto, porém, do lado da ecologia, a agressão ao meio ambiente e o ritmo de depauperamento do nosso planeta, alongam-se diante do observador desertos verdes de milho, soja, algodão, trigo, florestas de pinus e eucaliptos, avançando até a linha do horizonte. Falar em biodiversidade nem pensar. A aparência vistosa impecavelmente alinhada prospera sobre um solo estéril, tornado fértil artificialmente. Não se escutam  pássaros cantando, abelhas zumbindo, o cri cri dos  grilos, as  mosca dançando ao sol, lagartos tomando sol, lebres saltando, codornas escondendo-se  do visitante, e por ai vai. O observador flagra-se numa paisagem ecologicamente  estéril. Apenas  o ronco de gigantescas máquinas faz trepidar o chão e  mascara o que sobrou da harmonia dos sons da natureza.

É preciso conceder que, para  dar conta das demandas mundiais de cereais e outras culturas de grande consumo, não há como não recorrer as técnicas  que permitem a  produção na proporção exigida pelo aumento da população mundial. Sob esse aspecto  justificam-se plenamente. Mas, o entusiasmo do agronegócio vem acompanhado dos “senões” que acabamos de apontar e outros ainda não identificados. Até que ponto os herbicidas, pesticidas, adubos químicos somadas à modificação genética e à transgenia além de outras manipulações contaminam os produtos, interferem na própria natureza genética das respectivas plantas  minando sem alarde a saúde dos consumidores. Costumam agir sorrateiramente e seus efeitos cancerígenos ou outras modalidades de agressão à saúde, não costumam ser imediatos. Manifestam-se depois de anos, a não ser que a intoxicação seja de tal ordem que comprometa o organismo a curto prazo. Já que esse modelo de produção de alimentos veio para ficar, a identificação do lado discutível das técnicas que o viabilizam requerem  uma atenção toda especial das autoridades sanitárias. Acontece que neste nível entramos num campo  minado. Os produtos utilizados para tocar o agronegócio em grande escala concentra-se nas mãos de gigantescas empresas donas das patentes. Seu poder de fogo costuma ser de tal ordem que impedem  o desenvolvimento de tecnologias alternativas com menor potencial de agressão à natureza. Como costumam ser empresas multinacionais, mantêm seus próprios laboratórios de pesquisa, estações experimentais, produção de sementes geneticamente modificadas e/ou transgênicas. Com o seu gigantismo sufocam os eventuais concorrentes. A prática mais eficiente de impedir a competição consiste em comprar as patentes dos mais fracos, ocultar ao grande público os riscos à saúde dos consumidores, impedir por ex., a comercialização de sementes não manipuladas, e por aí vai. Não é aqui o lugar para uma análise científica e técnica mais aprofundada sobre o que há de positivo e negativo para a qualidade de vida nesse complexo modelo de produção de alimentos em escala planetária. Deixo para uma reflexão mais exaustiva dos reflexos a médio e longo prazo sobre a saúde humana quando entram na alimentação direta ou indireta como componentes básicos da ração que alimenta bovinos de corte, vacas de leite e derivados, suínos, frangos, os ovos das galinhas de postura, peixes etc., etc. A Encíclica, ao se ocupar com a crescente necessidade de recorrer cada vez mais à tecnologia, faz a seguinte reflexão, dando um destaque para o reflexo da oferta de postos de trabalho.

Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não se deve procurar que  progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a  humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida mais digna através do trabalho. Mas a orientação da economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de como a ação do homem se voltar contra si mesmo. A diminuição dos postos de trabalho ‘tem também um impacto negativo no plano econômico com a progressiva corrosão do “capital social”, isto é daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras indispensável em qualquer convivência civil’. (Bento XVI, Enc. Caritas in veritate, 209). Em suma, os custos humanos são sempre também custos econômicos, e as disfunções econômicas acarretam também sempre custos humanos. Renunciar a investir nas pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade. (Laudato sil, 128).

Ainda bem que em torno de 70% da alimentação consumida diariamente é produto da policultura desenvolvida em propriedades menores, em hortas e pomares de pequenas e médias dimensões. Também nelas recorre-se à tecnologia para aumentar e qualificar a produção. Em compensação a  agressão ao meio ambiente é muito menos significativa por uma série de razões. Destaco algumas. Esse modelo produção costuma acontecer em regiões com topografia acidentada e as áreas cultiváveis com o auxílio de maquinário leve, estão rodeadas, pelo menos parcialmente com sobras de mata virgem original somadas ao avanço da mata secundária. Na vegetação nativa em franca recuperação somada à proibição da caça, principalmente nos cursos médios e superiores dos rios em regiões montanhosas, os animais nativos encontram refúgios seguros para se reproduzirem e alimentarem. Remeto para as considerações feitas mais acima ao comentar o projeto de valorização do Rio dos Sinos, ampliável sem maiores modificações nos rios que confluem para o Guaíba.  Também nessas áreas menores onde se pratica policultura orientada para o consumo direto, não faltam aqueles que abusam dos agrotóxicos. Nos hospitais próximos é comum encontrar agricultores tratando-se das consequências do uso desses produtos sem as devidas precauções. Nas áreas cultiváveis de pequeno porte prospera a horticultura responsável pelo abastecimento de legumes e hortaliças destinada a atender a demanda urbana. É nesse setor que é possível perceber uma guinada significativa para melhor quando se fala em produção de alimentos. O número de hortas “orgânicas” que dispensam por completo qualquer produto químico cresce de ano para ano e o número de fregueses acompanha esse ritmo.  Esse modelo de produção diversificada, principalmente alimentos saudáveis, vem acompanhado de um outro benefício de significado importante, comparando-o ao agronegócio monocultor em grande escala. Induz a criação de postos de trabalho em vez de de reduzi-los ao mínimo como na agricultura mecanizada. A Encíclica sugere o estímulo à produção diversificada de alimentos e outros insumos como solução parcial mas indispensável para reter filhos de agricultores na atividade rural.

Para se conseguir dar emprego é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de sistemas alimentares de pequena escala que continuam a alimentar a maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça e recolha de produtos silvestres,, quer na pesca artesanal. (Lauato si, 129)