Como tudo começou
Depois de apresentar a minha família no seu contexto histórico e geográfico, em outras palavras, como fruto de uma história e de um enraizamento num pedaço de chão específico, chegou o momento para refletir sobre o como foi moldada a minha identidade pessoal, minha personalidade, minha cosmovisão, meu relacionamento com a natureza e os homens, meus parceiros de jornada, tanto humanos quanto animais e vegetais, quanto o panorama geográfico. A busca de explicações e respostas para essas perguntas devem ser procuradas naquela família, naquela comunidade humana, naquela paisagem única que foi o cenário onde tudo começou. E para início de conversa deixo claro que não estou disposto a engessar essas minhas “recordações”, com teorias e/ou referenciais teóricos em voga pois, neste particular ninguém menos que Teilhard de Chardin definiu sua utilidade e, ao mesmo tempo, sua falácia: “As teorias não costumam sobreviver a uma manhã de verão”. Parto da premissa de que a espécie humana faz parte ontológica da natureza. Em resumo isso significa que o corpo material do homem é feito dos mesmos elementos encontrados nos minerais e nos seres vivos de qualquer nível taxonômico; que a perpetuação e sobrevivência da espécie humana obedece às mesmas leis e processos físico químicos que regem as demais espécies vivas; que a espécie humana depende dos recursos naturais para viver e sobreviver; que a espécie humana encontra na natureza os estímulos para realizar e moldar as características do seu universo psicológico, o imaginário nas suas diversas modalidades, suas capacidades artísticas, suas concepções religiosas e/ou mágicas que, enfim, permitem a consumação do verdadeiro “humano no homem” – “die Menschlichkeit”. Limito-me aqui ao esboço do que significa o pertencimento ontológico da espécie humana à natureza, ou então o significado de que o homem é “Adam – o nascido da Terra”. Para maiores informações sobre essa premissa ou “tese”, remeto os interessados ao meu livro “A Natureza como Síntese”, publicado em 2017 pela Ed. Oykos.
Depois de definir o fundamento que servirá de baliza para as “Recordações” objeto do texto que segue, defino o ponto de partida valendo-me de duas frases de Holger Zaborowski na sua excelente reflexão sobre a “Fenomenologia do Morar”: (Die Pfänomenologie des Wohnes”). “Também onde moramos, para onde nos mudamos e donde viemos, determina quem somos. Lugares, espaços e caminhos moldam a nossa identidade”. (cf. Zaborowski. 1974, p. 223). Pois, os lugares, espaços e caminhos que foram determinantes do que sou, localizam-se geográfica e espacialmente no Morro da Manteiga, hoje distrito do município de Tupandi, antigo oitavo distrito de Montenegro. Mais acima, ao me referir aos primeiros moradores, pioneiros na fronteira de colonização daquele altiplano, na segunda metade do século XIX, lembrei que meus avós por parte do pai e da mãe foram os primeiros moradores da porção oriental com vista para o atual município de Bom Princípio. Quando nasci em 1930 já se tinham passado 60 anos daquele começo. Nesse meio tempo consolidara-se aquela fronteira de colonização com colonos exclusivamente de origem alemã e católicos, uma comunidade étnica e confessionalmente identificada, isto é, formada exclusivamente por descendentes de alemães e católicos - uma “Einheitskolonie”, como costumavam chamar esse modelo de colonização.
“Lugares, espaços e caminhos moldaram a minha identidade”. Uma reflexão um pouco mais atenta sobre o sentido mais profundo dos três conceitos enunciados nessa sentença de Zaborowski, descortina-se diante dos olhos o cenário, o palco no qual foi moldada a identidade das comunidades humanas e, principalmente as pessoas como indivíduos a ela pertencentes. E ao falar em cenário nessa perspectiva entende-se muito mais do que panoramas físicos, acidentes geográficos, florestas, savanas, desertos, montanhas, planícies, lagos, rios, caminhos, trilhas e estradas que permitem circular neles. Os incontáveis lugares, espaços e caminhos que por milhões e bilhões de anos foram moldados pelas leis que regem a dinâmica telúrica da história do nosso planeta, terminaram por receber, abrigar, alimentar e inspirar a humanidade a partir do momento em que começou a dar os primeiros passos na sua caminhada pelos séculos e milênios afora. E, pressupondo que a espécie humana insere-se ontologicamente nessa história da terra, conclui-se que sua identidade cultural coletiva e individual prosperou nas suas milhões, senão bilhões de modalidades, em algum lugar, num espaço único no qual cada pessoa ensaiou os primeiros passos na caminhada da vida. Foi nesse lugar, nesse espaço e nessas trilhas que teve início a simbiose entre o corpo e a alma de cada pessoa com o entorno geográfico e é nesse lugar que se encontram as raízes mestras que explicam, em grande parte pelo menos, o perfil da identidade pelo resto da vida. Em outras palavras. É a estação na qual aconteceu o embarque para empreender a viagem pela vida afora, levando na bagagem o norte a alcançar e as balizas a apontar o rumo a seguir, evitando perder-se no caminho. Depois dessa reflexão de natureza genérica, volto às minhas recordações, relembrando que “somos o que fomos, mas também o que não fomos e que podíamos ser”. (Caldera, 2004, p. 14).