Da Enxada à Cátedra [ 5 ]

Como tudo começou 

 

Depois de apresentar a minha família no seu contexto histórico e geográfico, em outras palavras, como fruto de uma história e de um enraizamento num pedaço de chão específico, chegou o momento para refletir sobre o como foi moldada a minha identidade pessoal, minha personalidade, minha cosmovisão, meu relacionamento com a natureza e os homens, meus parceiros de jornada, tanto humanos quanto animais e vegetais, quanto o panorama geográfico. A busca de explicações e respostas para essas perguntas devem ser procuradas naquela família, naquela comunidade humana, naquela paisagem única que foi o cenário onde tudo começou. E para início de conversa deixo claro que não estou disposto a engessar essas minhas “recordações”, com teorias e/ou referenciais teóricos em voga pois, neste particular ninguém menos que Teilhard de Chardin definiu sua utilidade  e, ao mesmo tempo, sua falácia: “As teorias não costumam sobreviver a uma manhã de verão”. Parto da premissa de que a espécie humana faz parte ontológica da natureza. Em resumo isso significa que o corpo material do homem é feito dos mesmos elementos encontrados nos minerais e nos seres vivos de qualquer nível taxonômico; que a perpetuação e sobrevivência da espécie humana obedece às mesmas leis e processos físico químicos que regem as demais espécies vivas; que a espécie humana depende dos recursos naturais para viver e sobreviver; que a espécie humana encontra na natureza os estímulos para realizar e moldar as características do seu universo psicológico, o imaginário nas suas diversas modalidades, suas capacidades artísticas, suas concepções religiosas e/ou mágicas que, enfim,  permitem a consumação do verdadeiro “humano no homem” – “die Menschlichkeit”. Limito-me aqui ao esboço do que significa o pertencimento ontológico da espécie humana à natureza, ou então o significado de que o homem é “Adam – o nascido da Terra”. Para maiores informações sobre essa premissa ou “tese”, remeto os interessados ao meu livro “A Natureza como Síntese”, publicado em 2017 pela Ed. Oykos. 

 

Depois de definir o fundamento que servirá de baliza para as “Recordações” objeto do texto que segue, defino o ponto de partida valendo-me de duas frases de Holger Zaborowski na sua excelente reflexão sobre a “Fenomenologia do Morar”: (Die Pfänomenologie des Wohnes”). “Também onde moramos, para onde nos mudamos e donde viemos, determina quem somos. Lugares, espaços e caminhos moldam a nossa identidade”. (cf. Zaborowski. 1974, p. 223). Pois, os lugares, espaços e caminhos que foram determinantes do que sou, localizam-se  geográfica e espacialmente no Morro da Manteiga, hoje distrito do município de Tupandi, antigo oitavo distrito de Montenegro. Mais acima, ao me referir aos primeiros moradores, pioneiros na fronteira de colonização daquele altiplano, na segunda metade do século XIX, lembrei que meus avós por parte do pai e da mãe foram os primeiros moradores da porção oriental com vista para o atual município de Bom Princípio. Quando nasci em 1930 já se tinham passado 60 anos daquele começo. Nesse meio tempo consolidara-se aquela fronteira de colonização com colonos exclusivamente de origem alemã e católicos, uma comunidade étnica e confessionalmente identificada, isto é, formada exclusivamente por descendentes de alemães e católicos - uma “Einheitskolonie”, como costumavam chamar esse modelo de colonização.  

 

“Lugares, espaços e caminhos moldaram a minha identidade”. Uma reflexão um pouco mais atenta sobre o sentido mais profundo dos três conceitos enunciados nessa sentença de Zaborowski, descortina-se diante dos olhos o cenário, o palco no qual foi moldada a identidade das comunidades humanas  e, principalmente as pessoas como indivíduos a ela pertencentes. E ao falar em cenário nessa perspectiva entende-se muito mais do que panoramas físicos, acidentes geográficos, florestas, savanas, desertos, montanhas, planícies, lagos, rios, caminhos, trilhas  e estradas que permitem circular neles. Os incontáveis lugares, espaços e caminhos que por milhões e bilhões de anos foram moldados pelas leis que regem a dinâmica telúrica da história do nosso planeta, terminaram por receber, abrigar, alimentar e inspirar a humanidade a partir do momento em que começou a dar os primeiros passos na sua caminhada pelos séculos milênios afora. E, pressupondo que a espécie humana insere-se ontologicamente nessa história da terra, conclui-se que sua identidade cultural coletiva e individual prosperou nas suas milhões, senão bilhões de modalidades, em algum lugar, num espaço único no qual cada pessoa ensaiou os primeiros passos na caminhada da vida. Foi nesse lugar, nesse espaço e nessas trilhas que teve início a simbiose entre o corpo e a alma de cada pessoa com o entorno geográfico e é nesse lugar que se encontram as raízes mestras que explicam, em grande parte pelo menos, o perfil da identidade pelo resto da vida. Em outras palavras. É a estação na qual aconteceu o embarque para empreender a viagem pela vida afora, levando na bagagem o norte a alcançar e as balizas a apontar o rumo a seguir,   evitando perder-se no caminho. Depois dessa reflexão  de natureza genérica, volto às minhas recordações, relembrando que “somos o que fomos, mas também o que não fomos e que podíamos ser”. (Caldera,  2004, p. 14).  

Da Enxada à Cátedra [ 4 ]

Minha terra natal 

 

No final da década de 1840 os primeiros povoadores, na maioria da primeira geração de imigrantes que haviam povoado São Leopoldo e arredores, Dois Irmãos e arredores, São José do Hortêncio e Ivoti e vizinhanças, avançaram sobre as florestas virgens do vale do Caí. A bacia média desse rio, coberta de florestas contava como eixo principal na margem direita o arroio “Salvador”. Pertencia à fazenda de Juca InácioTeixeira com sede em Pareci Novo. O nome do arroio veio de um certo Salvador que exercia a função de administrador da parte da fazenda coberta de florestas. No distrito de São Benedito do atual município de Tupandi, operava uma serraria que processava a madeira nobre abundante na região. No demais tudo era mata virgem. O dono da fazenda decidiu dividir em lotes de cerca de 40 a 50 hectares toda a área coberta de mata virgem e vende-los aos colonos alemães, filhos e netos dos primeiros imigrantes alemães fixados nas áreas acima mencionadas. João Kuhn e João Heck foram contratados como corretores. Na seleção dos pretendentes adotaram o critério confessional  e étnico, vendendo lotes exclusivamente para católicos e de descendência alemã. Wilhelm Winter adotou o mesmo critério na colonização do hoje município de Bom Princípio. Assim a colônia Salvador, hoje Tupandi como Bom Princípio, até poucas décadas atrás figuravam como modelos clássicos de colônias religiosa e etnicamente identificadas. (Eineitskolonien). Esse modelo serviria de modelo para as colonizações posteriores de Cerro Azul, hoje Cerro Largo, Santo Cristo e mais tarde Porto Novo (Itapiranga) e Porto Feliz (Mondai) no oeste de Santa Catarina. Um modelo desses com certeza causaria arrepios aos sociólogos e antropólogos de hoje. Considerando, porém, as circunstâncias acima detalhadas, a opção por esse modelo fazia sentido. A união, o entendimento e o compromisso entre os pioneiros e, consequentemente a formação de comunidades sólidas e unas, era fundamental para que uma nova fronteira de colonização fosse exitosa e se consolidasse. Os estudos mostram que os imigrantes alemães e por isso mesmo também seus descendentes dividiam-se em aproximadamente 54% de protestantes e 46% de católicos. O convívio costumava ser pacífico, cordial e até de colaboração em assuntos que interessavam as duas partes. 

 

Os problemas entre as duas vertentes confessionais costumavam originar-se de dois preceitos canônicos católicos, na época, inegociáveis pelos párocos e curas de alma: as regras exigidas para  casamentos mistos e a proibição de padrinhos protestantes em batizados católicos.  Os casamentos mistos eram tolerados mas, sob condições muito severas. O cônjuge protestante tinha que se comprometer a não impedir que a parte católica cumprisse suas obrigações religiosas e os filhos fossem batizados na igreja católica. Com isso o pai ou a mãe protestante renunciavam, na prática,  à continuidade da tradição confessional da família. Para entender essa situação é preciso ter em conta que estamos em plena “Restauração Católica” oficialmente adotada pelo Concílio Vaticano I, isto é, o retomo à ortodoxia doutrinária e à disciplina do Concílio de Trento. Desta forma originou-se uma colonização exclusivamente católica e de descendência alemã que em grandes linhas cobria a área que hoje é o município de Tupandi. Meu avô paterno Pedro Rambo casado com Bárbara Brand, nascido em São José do Hortêncio e meu avô materno, Pedro Vier e sua esposa Maria Walter nascido em Dois Irmãos, foram os primeiros moradores da porção oriental do planalto conhecido como “Morro da Manteiga”. Uma poderosa floresta virgem cobria aquele planalto com seus morros que subiam até 350 e 400 metros de altura. Meus tios paternos e maternos nasceram e cresceram naquele morro. Seria redundante descrever as dificuldades e peripécias dos primeiros anos. Tanto meu avô paterno quanto o materno faleceram com menos de 50 anos. Meu pai, Nicolau, era o mais velho da família de meu avô Pedro Rambo. Minha mãe foi a terceira da família de meu avô materno Pedro Vier. Seus dois irmãos mais velhos, depois de casados, partiram para novas fronteiras de colonização, o mais velho, o João, para Puerto Rico no norte da Argentina e o segundo, o Felipe, para Bom Retiro em Santa Catarina no vale do rio do Peixe seguido mais tarde pelo Roberto o penúltimo da família. O Pedro o mais novo, ordenou-se sacerdote diocesano e foi pároco de Santa Clara do Sul e mais trade de Mato Leitão, sempre acompanhado de minha avó materna viúva. Os dois estão sepultados no cemitério de Mato Leitão. A tia Anna foi casada com um irmão do meu pai. Não cheguei a conhece-la pois, faleceu em consequência de um parto. A tia materna Ida casou com um  primo do meu pai e viveu até os 91 anos. Uma outra irmã da minha mãe, a Vitória, entrou para a congregação das irmãs franciscanas. Faleceu com menos de 30 anos e está sepultada no memorial das irmãs no convento em Santa Maria. 

 

Dois dos meus tios paternos ordenaram-se sacerdotes. O Edmundo padre diocesano e por toda a vida, até aposentar-se, pároco de “Arroio dos Ratos”. Passou os últimos anos na paróquia de Harmonia e está sepultado no cemitério de Bom Princípio. Um segundo, o Inácio entrou na Companhia de Jesus, foi pároco de Santa Cruz do Sul nos anos da construção da catedral. Faleceu aos 42 anos durante a missa em consequência de um avc e se encontra sepultado no cemitério daquela cidade. Três das minhas tias do lado paterno entraram na congregação das irmãs franciscanas e estão sepultadas no cemitério do Colégio São José em São Leopoldo. Uma outra irmã do meu pai, a terceira mais velha da família ficou solteira e dedicou-se aos irmãos mais novos ainda menores pois, meu avô faleceu com apenas 47 anos. Meus outros tios paternos, o Jacó, o Pedro, o João, o Antônio e o mais novo Leopoldo casaram e ficaram morando na terra natal, hoje Tupandi 

 

Como se pode deduzir, tanto a família do lado paterno, quanto do materno, foram numerosas, colonos típicos da época, muito religiosas, comprometidas com os valores familiares e sociais tradicionais inegociáveis. A minha família continuou cultivando os mesmos valores: numerosa, muito religiosa, educação firme mas sem exageros. Meu pai e minha mãe conheciam basicamente dois caminhos: o diário de ida e volta para a roça e o dominical de ida e volta para a missa. Dos meus irmãos, o mais velho o Balduino fez-se jesuíta, foi professor universitário, fundador da cátedra de Etnografia e Etnologia da UFRGS, professor de Ciências Naturais no Colégio Anchieta e ficou conhecido, dentro e fora do País como  Botânico, ambientalista, fundador do Parque dos Aparados da Serra, do Jardim Botânico em Porto Alegre e do Zoológico de Sapucaia do Sul, além de uma intensa atividade em favor da preservação dos valores culturais nas comunidades dos descendentes dos imigrantes alemães no sul do Brasil. Um outro irmão, o Roberto, fez-se também jesuíta e foi professor de química, física, matemática e alemão no seminário em Salvador do Sul e bioquímica na Unisinos. Uma das minhas duas irmãs, a Tecla, entrou para a Congregação das Irmãs Franciscanas, fez doutorado em literatura inglesa e americana na Universidade Católica de Washington. Foi professora dessa especialidade na FIC (Faculdade Imaculada Conceição), hoje UNIFRA (Universidade Franciscana) em Santa Maria. Paralelamente foi professora titular da sua especialidade na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Faleceu com 85 anos no convento da sua congregação  em Santa Maria e acha-se sepultada no memorial das irmãs Franciscanas perto da sua tia Vitória. Um outro irmão completou o ensino médio e foi, por uns bons anos, professor na escola da comunidade de Harmonia e, depois, escriturário da Cooperativa de Suinicultores do local. Uma segunda irmã, a Anna, teve paralisia infantil e como na época ainda não havia tratamento eficaz para a poliomielite, ficou com a bacia e as pernas parcialmente deformadas e faleceu com 32 anos, em consequência de um tumor no cérebro. O segundo e o terceiro dos irmãos casaram e continuaram a tradição de colonos. O mais velho, o Raimundo faleceu com 44 anos vítima de um câncer linfático, deixando para trás uma família numerosa, com apenas as duas filhas mais velhas casadas. O terceiro mais velho dos meus irmãos, o Fridolino migrou com a família para a nova colonização de São João do Oeste, onde faleceu com 59 anos. Eu, da minha parte, entrei aos 12 anos no Seminário dos Jesuítas em Salvador do Sul. Terminado o ginásio, (correspondente ao ensino médio de hoje), entrei com 20 anos na Ordem dos jesuítas em 1950. Depois de dois anos de noviciado fiz o bacharelado em Letras Clássicas: Grego, Latim e Português com as respectivas literaturas e paralelamente um curso teórico e prático de retórica. Depois de me bacharelar nessa área, fiz o bacharelado em Filosofia em São Leopoldo como aluno da primeira turma desse curso oficializado, semente da futura Unisinos. Obtido o bacharelado em Filosofia fui Cursar História Natural e Geologia na UFRGS e, ao mesmo tempo lecionava Ciências no Colégio Anchieta. Concluído o bacharelado nessa área, meu irmão Balduino, catedrático de  Etnografia e Etnologia na UFRGS convidou-me para ser seu assistente na disciplina de “Antropologia Física”, que consistia numa Introdução ao Estudo do Homem – origem e evolução do homem, genética, raças humanas, dispersão do homem pelo planeta terra, sua relação com  o meio físico geográfico, biogeografia humana, etc. Fiquei com um contrato de 12 horas para dispor de tempo suficiente para me licenciar em Teologia. Cumpria as 12 horas nas terças-feiras de tarde e quartas de manhã e tarde. Mais tarde passei para o regime de 40 horas e nos dois últimos anos para a dedicação exclusiva. Neste meio tempo, em 1976, conquistei o título de Livre Docente em Antropologia e de Doutor em Filosofia na PUCRGS. Completei a minha trajetória de formação acadêmica em 1988 com um pós-doutorado na Universidade V, René Descartes, em Paris. Em abril de 1991, cumprida a jornada de 30 anos, (na época os professores das universidades públicas aposentavam-se com esse tempo de serviço) aposentei-me passando para a categoria de prof. Titular Emérito dessa instituição.