Introdução
É óbvio que não tenho como registrar recordações pessoais das condições em que meu trisavô começou a vida enfrentado a floresta virgem nas proximidades de São José do Hortêncio pois, nasci cem anos mais tarde. Mas, dispomos de registros testemunhais de pioneiros da fundação de Ivoti e redondezas na segunda metade da década de 1820, ainda vivos. O Pe. Karl Schlitz, pároco de Bom Jardim, hoje Ivoti, com formação em história na Alemanha, teve a feliz ideia de ouvir, anotar e publicar na década de 1890, os depoimentos de fundadores da colônia do final da década de 1820 ainda vivos. O título por ele dado foi “Chronik von Bom Jardim – Crônica de Bom Jardim”. A publicação original aconteceu entre dezembro de 1896 e 15 de março de 1898, na edição dominical do jornal Deutsches Volksblatt – Sontagstimmen”. A tradução do original com 241 páginas, espaço simples, devidamente acompanhada com notas de rodapé explicativas feita por mim, foi publicada pela Editora Oikos em 2021 com o título: “Deitando Raízes”. Tendo em vista que as circunstâncias iniciais com suas dificuldades foram, em linhas gerais, idênticas em todas as novas fronteiras de colonização que foram implantadas nos 150 anos que se seguiram, tanto no Rio Grande do Sul, quanto em Santa Catarina e oeste do Paraná, recomendo como pano de fundo das recordações que seguem, o cenário apresentado pelo Pe. Schlitz no primeiro capítulo da sua Crônica: “A fundação da colônia – a Família na mata virgem”.
A Imigração Alemã, como qualquer outra vertente emigratória, imigratória ou simplesmente migratória, oferece um número e uma variedade sem conta de formas e aspectos dignos de serem considerados e analisados. A comemoração do bicentenário da imigração alemã no Brasil não pode deixar de sugerir uma reflexão sobre o itinerário que marcou a inserção gradativa na comunidade nacional brasileira desses imigrantes e dos seus descendentes, a essa altura na nona e décima geração. Há sessenta anos o Pe. Balduino Rambo, um dos fundadores da FECCAB, Federação dos Centros de Cultura Alemã no Brasil), resumiu essa história valendo-se da metáfora, que a resume em toda sua extensão e profundidade: “O rebento do carvalho alemão deitou raízes na Terra das Palmeiras”. Os conceitos migração, migrante, imigrante, emigrante implicam num universo que afeta o ser humano no mais profundo e mais sagrado da sua existência. Três aspectos dessa realidade merecem atenção. Em primeiro lugar, o migrante da história, não falo dos aventureiros, viajantes, caçadores de tesouros, mas daqueles que migraram por necessidade e por isso mesmo deixaram para trás um chão, uma história e uma comunidade humana, uma tradição cultural consolidada durante muitos séculos. Os antigos romanos, na sua lendária sabedoria, deixaram entre seus muitos provérbios, este sobre o “migrar”: “Ubi bene ibi patria”- mal traduzido: A pátria dos homens encontra-se lá onde se sentem bem, onde são felizes, onde seus anseios e demandas materiais e espirituais são atendidas e satisfeitas. Ninguém deixa para trás a pátria, a terra natal, parentes, amigos, conhecidos, enfim uma história e uma paisagem, lugares, espaços e caminhos, senão tangido pela necessidade. Os motivos imediatos que desencadearam as grandes correntes migratórias da História e continuam motivando as de hoje, seja de um continente para o outro, ou as internas de um país ou de uma região para a outra, ou do mundo rural para o urbano, podem ser de natureza econômica, social, política, étnica ou outras. Todas são motivadas, entretanto, por um fato comum: o migrante vai em busca de algo melhor, real, imaginário, romântico ou utópico.
Em segundo lugar, o migrar implica necessariamente em duas dimensões, o que vale de modo especial para as grandes correntes migratórias que partiram da Europa, para as Américas, à Austrália, o sul da África e outros destinos, a partir do século XVIII e que se prolongaram até meados do século XX. De um lado o migrante que partia da Alemanha, da Itália, da Inglaterra, da Polônia e dos outros pontos da Europa, deixava para trás uma história e uma tradição, construída durante milênios e solidamente enraizada na “pátria” “na querência” na “Heimat”, que ficava para trás para sempre. Em contrapartida via-se forçado a inserir-se numa outra paisagem geográfica, num outro contexto social, numa outra tradição cultural. Em outras palavras. O desenraizamento compulsório de um lado levava inevitavelmente a um enraizamento, também compulsório do outro, acompanhado dos muitos e diversos desafios e traumas imagináveis, com características peculiares para cada caso concreto
Em terceiro lugar, os nossos antepassados encontraram uma floresta pluvial, subtropical quase impenetrável, composta por uma vegetação desconhecida para um europeu, povoada por animais, aves e insetos também desconhecidos. Somou-se a isso a adaptação à inversão das estações do ano, a ausência de invernos rigorosos e verões longos e quentes. Neste contexto estabeleceram-se os primeiros contatos com os luso-brasileiros e os próprios nativos. Aprenderam deles a cortar com foice a vegetação secundária para depois derrubar as árvores maiores com machado. Aprenderam dos índios a prática da coivara, queimando a vegetação depois de seca. Aprenderam a cultivar mandioca, milho, batata doce, cana de açúcar, abóboras, morangas e melancias. O “rebento do carvalho” começava a deitar raízes na “terra das palmeiras”. A “nova terra natal”, a nova “Heimat”, a nova “Querência” tomava formas e contornos. Emoldurada pela paisagem da “terra das palmeiras”, a dedicação ao trabalho, à família, à comunidade solidária, à religiosidade, à cultura e prática das diversas modalidades de lazer, característicos do “carvalho” da nossa metáfora, foram moldando uma nova paisagem humana, nos vales médios e superiores do rio dos Sinos do Caí, do Taquari, do Pardo, do Jacuí. A partir de 1880 transformaram consideráveis áreas da Serra, Missões e Alto Uruguai, para, já no século XX, avançar pelo centro oeste de Santa Catarina, adentrar o centro oeste do Paraná e, sempre mais para o norte: Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Acre, Rondônia e mais além até a fronteira com a Venezuela, além de bolsões no Centro Oeste, Maranhão, Baía e outros lugares mais.
E no andar dessa história, completando 200 anos, o “Rebento do Carvalho” deitou raízes profundas e definitivas na “Terra das Palmeiras”. Cultivando com fervor e entusiasmo crescente a memória dos antepassados, os imigrantes alemães participaram ativamente do desenvolvimento da nova pátria. A memória e a fidelidade aos velhos valores espirituais, humanos e materiais, trazidos do outro lado do oceano, temperados pelo clima e a geografia da nova “eimatHeimatHeimat”, e redesenhados pela realidade humana da nova “Querência”, fizeram deles cidadãos brasileiros plenos e conscientes. A maioria deles já não fala mais o dialeto das terras de origem da Renânia, da Baviera, da Vestfália, de Hannover, da Pomerânia, da Silésia, da Áustria, da Suíça e de outros territórios. Encontramos seus representantes, de igual para igual com os brasileiros de outras procedências étnicas, ocupando posições em todos escalões da vida pública e em todas as atividades da iniciativa privada. Em não poucos casos somente o sobrenome, muitas vezes bem ou mal grafado e registrado, denota ainda sua procedência remota. Parafraseando Thomas Mann, diríamos: Muitas das características por natureza transitórias ficaram ao longo da estrada durante esses 200 anos. Mas é exatamente essa transitoriedade referenciada à linha mestra da perenidade da nossa história é que moldou o perfil dos herdeiros dos imigrantes alemães, que a partir de 1824 desembarcaram em São Leopoldo.