Os limites da inovação biológica
a partir da pesquisa.
As
reflexões que precederam tiveram como uma das intensões básicas insistir no
fato de que a humanidade não apenas vive e subsiste na natureza, mas nela se encontra ontologicamente inserida
como espécie biológica. Entretanto, ocupa uma posição peculiar por ser dotada de inteligência que
lhe garante a capacidade observar
observar a natureza que o cerca e perguntar como ela funciona, como se originou, porque ela é assim, para
onde caminha e qual o lugar e o papel que cabe ao homem fazendo parte dela? A Encíclica resumiu em
poucas linhas o poder e, ao mesmo tempo, o limite do seu exercício posto nas
mãos do homem quando lhe foi confiado o “cultivo do jardim” no qual foi
colocado pelo Criador.
Na visão filosófica e
teológica o ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a
pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um fator externo que deva ser totalmente
excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e
animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina
que as experimentações sobre os animais só são legítimas ‘desde que não
ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas
humanas’. (Laudato si, 130).
Nessa
posição da Encíclica afirma-se, de um lado, a peculiaridade do homem dentre
todas a demais criaturas pela “razão e sua sabedoria”, sua “inteligência
reflexa” conceito recorrente de que nos
valemos nas reflexões acima quando está em jogo o relacionamento do homem com a
natureza. Essa peculiaridade “não é um fator
externo”, que deva ser excluído, melhor, ignorado como limitador ao
avanço científico e a aplicação dos seus resultados. É nessa perspectiva que se
coloca a experimentação recorrendo a animais como “cobaias” para desenvolver novos
medicamentos, transgênicos, modificações genéticas e todas demais experiências
partindo dessa base. Não se trata somente de fazer novas descobertas e nova
técnicas se não forem legitimadas pela ética que, como em qualquer intervenção
na natureza, deve ser a baliza que orienta as ações humanas. A Encíclica chama a atenção que “o poder humano tem limites e é contrário
à dignidade humana fazer sofrer
inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente de sus vidas”. (Laudato si,
130). Como se pode perceber encontramo-nos frente a um desafio de dimensões
incomuns. Em princípio toda e qualquer atividade científica tem como motivação
conhecer como funciona a natureza. Uma
vez de posse desses conhecimentos permite-lhe desenvolver tecnologias para
“cultivar o jardim” no qual passa a sua
existência. O “cultivar” pressupõe ações que, pela sua natureza são de
alguma forma invasivas. Em outros termos, interferem na natureza, desde um
nível quase imperceptível até o limite da quebra do equilíbrio de inúmeros
ecossistemas, comprometendo o equilíbrio biológico do planeta como um todo. Mas,
essa história já foi de alguma forma objeto das nossas reflexões mais acima.
Ciência e saúde
Chegou
o momento de nos ocuparmos com as tecnologias desenvolvidas para o tratamento
dos mais diversos males que afetam a saúde das pessoas, desenvolvendo
medicamentos cada vez mais diversificados e mais eficientes. Nessa área os últimos
150 anos foram decisivas para a melhora da
saúde do planeta, dobrando em não poucos países a expetativa de vida. Tomando por
base o recenseamento do Brasil de 1940, considerado o primeiro recenseamento
confiável, a expectativa de vida média o
brasileiro ficava em 40,2 anos e no de 2000 subiu para 70,4 e em 2015 para 75,5.
A partir de 1850, ano de referência desses dados a pesquisa e a tecnologia
correspondente deu um salto, uma revolução para melhor, de dimensões difíceis de avaliar.
O
primeiro grande nome de cientista nessa
verdadeira guerra contra os males responsáveis pela morte de milhões de
pessoas e a consequente baixa média da
expectativa de vida, foi Louis Pasteur (1822-1895). Pasteur já era um nome de
destaque na pesquisa científica antes de centrar suas atenção na área médica em
1865. Em 1861 recebera o prêmio da Academia de Ciências por ter desenvolvido
técnicas para controlar o desenvolvimento de micro-organismos em alimentos e
bebidas, método hoje conhecido como Pasteurização. Depois dessa memorável
conquista da ciência e criados os meios de a por em prática, Pasteur foi
requisitado para descobrir o motivo da mortandade que acometeu as larvas do
bicho da seda, causando prejuízos enormes a produção de seda na França. Em 1850
haviam sido produzidas 20000 toneladas
na França. O volume foi caindo até 4000 toneladas em 1865. Depois de
examinar os sintomas pôs-se a procurar a causa da epidemia. Chegou à conclusão
que os responsáveis eram micro-organismos presentes na poeira do ar dos
recintos em que as larvas eram criadas, contaminando as folhas da amoreira de
que se alimentavam, levando à morte aquelas que apresentavam predisposição
genética para desenvolver a “peprina” nome dado ao desenvolvimento de pontos
negros nas lavras, inclusive em sus órgãos internos. Pasteur ensinou os
produtores de seda como identificar os ovos defeituosos e eliminá-los e evitar
que as folhas da amoreira fossem contaminadas. A partir de de todas essas
pesquisas Pasteur chegou à conclusão que
as doenças eram causadas por micróbios específicos para cada uma. Comprovou que os estafilococos eram os
responsáveis pela desenvolvimento dos furúnculos, osteomielite e outras doenças.
Com
esses dados na mão Pasteur convenceu-se de que a causa de muitas doenças era externa ao organismo.
Com isso, estava criada a possibilidade de desenvolver técnicas de
esterilização e assepsia diminuindo drasticamente as infecções pós cirúrgicas, a obstetrícia,
ferimentos, injeções, e qualquer intervenção invasiva no organismo. Aos méritos
enumerados creditados a Pasteur soma-se mais um tão ou mais benéfico do que os
outros. Falamos da descoberta do princípio de como se desenvolve e como
funciona a vacina. Não é aqui o lugar para entrar nas particularidades
científicas e as técnicas da vacina. O fato é que se trata de uma descoberta
que abriu um leque sem limites posto à disposição da saúde da humanidade como
meio eficaz para se prevenir contra todo tipo de enfermidades que têm como
causa agentes externos como os micróbios. A técnica manual e em pequena
quantidade do começo desenvolveu-se numa velocidade e diversificação espantosa.
Hoje a descoberta do cientista francês anima centenas de laboratórios
especializados para atender a demanda de sempre novas modalidades de agentes
microbianos externos. Inclusive bioreatores são utilizados para a demanda em
plena expansão.
Louis
Pasteur é uma dessas personalidades emblemáticas de cientista que revolucionou
com suas descobertas o campo da saúde, lançou os fundamentos que moldaram o
panorama no qual se lida com a ela nas
muitas modalidades em que é praticada. Sobre este princípio o médico pesquisador Albert Sabin (1906-1993)
desenvolveu a famosa vacina das “duas gotinhas” contra a poliomielite ou
paralisia infantil causada por um vírus que se instala nos intestinos e ataca o
sistema nervoso, levando à paralisia parcial ou total. Temos aqui mais um
exemplo da importância das descobertas de Louis Pasteur e o desenvolvimento de
procedimentos para melhorar a saúde pública.
Milhões de crianças ficaram livres dos efeitos degenerativos da paralisia
infantil desde a década de 1940, quando essa vacina se popularizou e se tornou
um prática rotineira imunizando as
crianças por meio de campanhas de
vacinação. No mesmo patamar de importância de Pasteur e Sabin, Alexander
Fleming contribuiu no combate a muitas formas de doenças até então incuráveis.
Por um desses acasos que foram revolucionários em outras descobertas, em 1928,
ao estudar culturas Staphylococcus aureus Fleming constatou, numa amostra que
esquecera sobre a mesa durante suas férias, o desenvolvimento do um fungo do
gênero Penicillium que apresentava espaços transparentes. Fleming concluiu que
que os fungos liberavam algum tipo de substância que matava as bactérias. Depois de comprovado
que afetava as células de animais, foi alguns anos mais tarde purificado e
concentrado em laboratório por dois outros cientistas: Howard Florey e Ernst
Chain. Ficou mundialmente famosa com o nome de “Penicilina” e usada em grande
escala durante a Segunda Guerra Mundial para tratar ferimentos infectados por
bactérias. Na década de 1940, os três cientistas foram contemplados com o prêmio Nobel de
medicina e o antibiótico passou a ser posto
à disposição da população civil.
As
conquistas de Pasteur, Sabin e Fleming
muniram a medicina com poderosos e eficientes armas para combater doenças
que causavam constante preocupação e não havia medicamentos eficazes para
combate-las. Entre muitas vale destacar a pneumonia, sífilis, difteria,
meningite, bronquite, e outras infecções das mais diversas modalidades. A
Revolução dos três na área da medicina em nada ficam a dever a Galileu,
Copérnico e Keppler na astronomia, Newton na física e matemática, Darwin na
evolução, Max Plank na Física, Einstein
na Física, Mendel na genética, Marconi na telegrafia sem fio, Francis Collins
com o mapeamento do genoma humano, e não poucos outros.
Não
se podem esquecer os “senões” inevitavelmente relacionados como os aspectos
questionáveis que acompanham as descobertas científicas de dimensão planetária
sobre o controle dos agentes causadores de não poucas enfermidades graves. Mas,
esse é o lado da medalha que merece ser saudado com entusiasmo. Há, porém, o
outro lado que de maneira alguma pode ser ignorado ou relativizado. Essa outra
face do progresso da ciência e tecnologia oferece uma questão que de forma
alguma pode ser desprezada. Referimo-nos aos experimentos que se valem de
animais como “cobaias” para desenvolver e testar os novos medicamentos para
serem, uma vez confirmada sua eficácia e inocuidade, recomendadas pela autoridades
sanitárias e postos à disposição do público em farmácias, drogarias, postos de
saúde, etc. A Encíclica chama a atenção que o recurso a animais e plantas não
pode ser indiscriminada e tem seus limites. “o poder humano tem limites e que é
contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas. Todo o uso e experimentação exige um respeito
religioso pela integridade da criação”. (Laudadto si, 130). A essa consideração
a Encíclica acrescenta as ponderações de João Paulo II que resume o tamanho e o
número de implicações sobre outros campos induzidas pela manipulação da
natureza, de modo especial a genética.
Quero recolher aqui a
posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos
progressos científicos e tecnológicos, que ‘manifestam quanto é nobre a vocação do homem para
participar de modo responsável na ação criadora de Deus’, mas ao mesmo tempo
recordava que ‘que toda e qualquer intervenção numa área determinada do
ecossistema não pode prescindir da
consideração das suas consequências noutras áreas’. Afirmava que a Igreja
aprecia a contribuição ‘do estudo e das aplicações da biologia molecular,
completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria’,
embora disse também que isso não deve levar
uma ‘indiscriminada manipulação genética’ que ignore os efeitos
negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se
não se pode proibir a uma artista que exprima a sua capacidade criativa, também
não se pode proibir a um artista que exprima sua capacidade criativa, também
não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para progresso científico e
tecnológico, cuja capacidade foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao
mesmo tempo, não se pode deixar de considerar, os efeitos, o contexto e os
limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de poder de grandes
riscos. (Laudato si, 131).
Mais
acima já chamamos a atenção que todo o avanço tecnológico significa uma
contribuição para aperfeiçoar as ferramentas que impulsionam o progresso. Mas, ao mesmo tempo, se a produção
e comercialização dessas “ferramentas” forem controladas e monopolizadas por
empresas privadas ou governos, transformam-se em instrumentos de “poder”. Os
preços são estabelecidos por eles e, com
isso, dificultam que uma grande porcentagem da população se beneficie dos
resultados. Laboratórios de porte internacional detêm as patentes exclusivas dos
medicamentos, da manipulação genética responsáveis pela modificação de
organismos. A tudo isso soma-se à produção de transgênicos e o complexo de pesticidas,
herbicidas, adubos químicos e por aí vai. Os efeitos em termos ecológicos já
foram objeto de reflexões mais acima. A tudo isso acresce outro “senão” de
difícil dimensionamento. Com o poder da tecnologia sob controle, dificultam ou
simplesmente impedem o registro de novos medicamentos, com destaque para os
fitoterápicos cujo potencial de eficácia já foi comprovado na prática em não
poucas modalidades de enfermidades das quais as drogas químicas não dão conta. Fato
similar acontece com o combate biológico das “pragas” que reduzem a
produtividade das lavouras.
Com
esse panorama como fundo somos levados a insistir que a pesquisa científica faz
parte indispensável da missão do homem
de “cultivar” a “sua casa”, a “sua mãe e pátria”, que o sustenta e abriga para
cumprir a sua jornada existencial. No discurso proferido por João Paulo II na sessão
por ocasião da solene assembleia da Pontifícia Academia de Ciências em
homenagem a Einstein por ocasião do centenário do seu nascimento, o pontífice
confirmou que esse também é o entendimento da Igreja. “A Sé Apostólica quer também prestar a Albert
Einstein a homenagem que lhe é devida pela contribuição eminente que trouxe ao
progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade, presente no
mistério do universo”. (João Paulo II, 10 de novembro de 1979). Continua depois
relembrando a missão de Pio XI dada aos sábios integrantes da Pontifícia
Academia de Ciências, recriada por ele: a fazerem “progredir, cada vez mais
nobre e intensamente, as ciências, sem lhes pedir a mais; isto porque, neste
excelente propósito e neste labor, consiste
a missão de servir a verdade, da qual nós
os encarregamos”. (Motu próprio,
28 de outubro de 1936). Em seguida o pontífice resumiu o significado
central do conceito “fazer ciência”.
A investigação da verdade é
a tarefa fundamental da ciência. O investigador, que se move nesta primeira
vertente da ciência, sente toda a fascinação das palavras de Santo Agostinho:
“Intellectum valde ama” – “Ama muito a inteligência”
e a função que lhe é própria, de conhecer a verdade. A ciência pura é um bem,
digno de ser muito amado, porque ela é
conhecimento e portanto perfeição do homem na sua inteligência. Antes mesmo das
suas aplicações técnicas, deve ela ser honrada por si mesma, como parte
integrante da cultura. A ciência fundamental é bem universal, que todos os
povos devem poder cultivar em plena liberdade de qualquer forma de servidão
internacional ou de colonialismo intelectual.
A investigação fundamental
deve ser livre diante dos poderes político e econômico, que hão de colaborar
para o desenvolvimento dela, sem a deter na sua criatividade nem a fazer servir
aos próprios interesses. Como toda outra verdade, a verdade científica não tem,
como efeito, de dar contas senão a si mesma e à Verdade suprema que é Deus,
criador do homem e de todas as coisas”.
Na sua vertente, volta-se a
ciência para as aplicações práticas, que encontram o pleno desenvolvimento nas
diversas tecnologias. Na fase das suas realizações concretas a ciência é
necessária à humanidade para satisfazer as justas exigências da vida e vencer os diferentes males que ameaçam. Não há dúvida que a ciência
aplicada prestou e prestará aos homens
serviços imensos, contato que seja, ao menos um tanto, inspirada pelo amor,
regulada pela sabedoria e acompanhada pela coragem que a defende contra ingerência indevida de todos os
poderes tirânicos. A ciência aplicada deve aliar-se à consciência para que, no
trinômio ciência-tecnologia-consciência, seja servida a causa do verdadeiro bem do homem. (João
Paulo II, discurso para os integrantes da PAC, em assembleia comemorativa do
centenário de nascimento de Albert Einstein, 10 de novembro de 1979))
Essa
passagem do discurso de João Paulo II dirigida aos membros da Pontifícia
Academia de Ciências, resume o tripé sobre o qual se fundamenta o conceito de
“fazer ciência”. Em primeiro lugar, o “fazer ciência”, a investigação, a
curiosidade de conhecer a complexidade do universo e da natureza, faz parte da
própria condição humana. Dotado de intelecto, ou se preferirmos, de
inteligência reflexa, o homem não se contenta apenas em viver e sobreviver,
como também procurar entender “como” o mundo funciona e “porque” afinal é assim. Em outras
palavras, pela investigação, pelo fazer ciência, cultiva-se a inteligência em
busca da Verdade, independentemente da aplicação por meio de tecnologias
desenvolvidas a partir do potencial prático que oferece. Entendida assim a
ciência como resultado da atividade do intelecto é um bem em si. Ela se basta
si mesma independentemente de alguma aplicação prática. Neste nível ela se
resume numa demonstração do que é capaz a mente humana quando toma consciência
da magnificência, da beleza, do belo e do sublime revelado em milhões de formas e cores, nos matizes mais inusitados do universo e da
natureza. Desperta nela então a
curiosidade, a ânsia de procurar entender a multiplicidade, a complexidade e a
urdidura que faz com que a natureza mineral, os micro organismos, a flora, a
fauna e nela espécie humana se relacionam formando uma grande síntese. A
Ciência assim entendida constitui-se num dos elementos de todas as culturas.
Acontece que as muitas culturas e subculturas moldaram os seus perfis em
condições físico geográficas as mais variadas, a prática da investigação
científica percorre caminhos diversos e assume formas próprias. Mas todas elas partem
do mesmo fundamento enunciado na citação acima por Sto. Agostinho: “Intellectum
valde ama – Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria e converge
para o objetivo comum: a busca da Verdade.