Capítulo III
A raiz humana da crises
ecológica
Neste
terceiro capítulo da Encíclica detalha as causas determinantes que levaram a agressão à natureza ao ponto crítico que ora se encontra.
Todas elas de forma direta ou indireta dizem respeito às ferramentas
tecnológicas que moldaram e continuam moldando a fisionomia do modelo
civilizatório em que, a esta altura, a humanidade como um todo se debate.
Ninguém está imune aos seus efeitos positivos e/ou negativos. A essa altura dos acontecimentos já não há mais
“povos e rebanhos” como diria Nietszsche, mas uma gigantesca manada de mais de
7 bilhões de seres humanos tangidos em direção a um futuro de incerteza preocupante.
Há milênios os antigos egípcios nos legaram a imortal imagem esculpida em pedra da Esfinge de Gisé,
encarando o deserto com seu rosto e olhar enigmático. Ressalvadas as devidas
peculiaridades e características de duas épocas tão distantes uma da outra, o
atual momento histórico sugere a metáfora
da esfinge como que representando a humanidade do começo do terceiro
milênio, olhando perplexa para o futuro como um panorama imprevisível, se é que
o futuro ainda conta alguma coisa na dinâmica do cenário moldado pelo
“paradigma tecnocrático dominante
e no lugar que ocupa nele o ser humano e sua ação no mundo”. (Laudato si, 101).
Em todo o caso parece pertinente a observação do filósofo Alexandro S. Caldera:
“Toda a troca de século é como uma troca de pele. É chegar a uma situação-limite,
a uma das fronteiras do tempo, para olhar o incerto horizonte do futuro”. E
Maria Zambrano conclui: “O futuro é um Deus desconhecido”. (Caldera, 2004,
p.46)
Tecnologia, criatividade e
poder.
O
Papa começa por reafirmar o pensamento que direta e indiretamente fundamenta as
reflexões e considerações da Encíclica, legitimado por uma série de cientistas
dos mais influentes do século XX e XXI nas respectivas especialidades, já
referidos em outros momentos mais acima nas nossas reflexões. Partindo de perspectivas
diferentes convergem para uma conclusão comum: A natureza vem a ser uma
realidade de alta complexidade, altamente calibrada e de fina resolução. Os
elementos e funções que a compõem são complementares formando um intrincado
sistema, melhor, uma síntese na qual a subtração ou degradação de qualquer um
dos componentes, por mais insignificante que possa parecer, danifica de alguma
forma a estrutura e o bom funcionamento do todo.
Nunca é demais insistir que
tudo está interligado. O tempo e o espaço não são independentes entre si; nem
os próprios átomos ou as partículas subatômicas se podem considerar
separadamente. Assim como os vários componentes do planeta – físicos, químicos
e biológicos – estão relacionados entre si, assim também as espécies vivas formam
uma trama que nunca acabaremos de individuar e compreender. (Laudato si, 138)
Partindo
da concepção da natureza nesses termos, isto é, como uma gigantesca síntese,
não há necessidade de raciocínios complicados para concluir que a mínima
intervenção no sistema terminará em alguma repercussão no todo. Não são somente
as catástrofes globais que no passado contado em milhões de anos desfiguraram
até o irreconhecível a harmonia dessa síntese, como também perturbações de
menor amplitude. Erupções vulcânicas, terremotos, tsunamis, a constante
movimentação das placas tectônicas, abrem feridas e deixam cicatrizes na face
do nosso planeta, na “nossa casa”. Arranhões passageiros e por vezes invisíveis
limam e retocam, por assim dizer, constantemente seus desenhos e traços até nos
detalhes imperceptíveis ao observador comum.
A
esses fatores naturais vem somar-se a invasão planejada pelo homem, quando começou
a povoar sempre mais espaços em busca do sustento para sua sobrevivência
biológica e a satisfação das necessidades espirituais. Já refletimos, mais
acima, sobre a dinâmica e as características dessa caminhada da humanidade
desde que dispomos de dados objetivos fornecidos pela Paleoantropologia, a
Etnografia, a Etnologia e a História;
como viviam e sobreviviam os coletores,
caçadores e pescadores primigênios; como se deu e quais seus efeitos com o
começo e desenvolvimento da agricultura e do pastoreio ou “revolução dos
alimentos, segundo Darcy Ribeiro, ou “a primeira traição à natureza, segundo
Edward Wilson; como esse modelo civilizatório começou a ser substituído, a
partir do século XVIII, pela “revolução tecnológica”, novamente um conceito de
Darcy Ribeiro, ou pela “segunda traição à natureza”, no entendimento de Edward
Wilson. Na introdução do III capítulo da Encíclica o Papa enuncia o panorama e
o tamanho dos desafios que esperam, melhor exigem, senão uma solução definitiva
pelo menos políticas, iniciativas e ações concretas que no mínimo melhorem o
quadro de agressão à natureza.
Para nada serviria descrevermos
sintomas, se não conhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um modo
desordenado para conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a
realidade até o ponto de arruiná-la. Não poderemos deter-nos a pensar nisto
mesmo? Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma tecnocrático dominante
e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua ação no mundo. (Laudato si, 101)
A
humanidade de hoje debate-se nas consequências dos últimos dois séculos em que
a tecnologia com o seu potencial de “revolução” arquivou nos museus da história
inúmeras conquistas das dezenas de milhares de anos que a antecederam. A
máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo, a eletricidade, o automóvel, o avião,
as indústrias químicas, a medicina moderna, a informática, revolução digital,
as bio e as nanotecnologias, o mapeamento do código genético humano e o de
outros seres vivos, impactaram profundamente em conceitos como saúde física,
mental e espiritual e, ao mesmo tempo ofereceram meios poderosos para melhorar
a qualidade de vida em todos os níveis.
De outra parte ampliou ao indefinido o leque de oferta de bens destinados ao
atendimento das necessidades básicas das pessoas. Resultou numa autêntica
revolução no transporte de pessoas e mercadorias. O cenário de um mundo agrário
e pastoril vai sendo invadido e substituído por concentrações humanas cada vez
maiores, para terminar em dezenas de metrópoles e megalópoles em constante
crescimento e multiplicação em todos os continentes. A transição das
comunidades rurais para uma sociedade urbana vem acompanhada de uma radical
ressignificação do conceito de família como instituição base de uma comunidade.
Aliás num contexto urbano no sentido rigoroso do termo, não há mais lugar para
formarem-se comunidades como a
tradicional na qual se consolida um compromisso solidário entre pessoas
e famílias; em que o parentesco biológico e a vizinhança geográfica determinam
deveres e direitos mútuos. Num contexto urbano o parentesco não passa de
acidente biológico e a vizinhança de um acidente ou fatalidade geográfica.
Neste contexto os critérios de relacionamento deslocam-se para outros níveis
como associações, sociedades, clubes, funcionários de empresas de feitio
semelhante, sindicatos, classe social, associações comerciais e industrias, e
por aí vai. A revolução digital se encarrega para que a trama das relações
humanas flua cada vez mais rápida e de melhor qualidade, nessa civilização em
processo acelerado de globalização A tecnologia fornece instrumentos cada vez mais eficazes aperfeiçoando
e multiplicando em progressão geométrica suas modalidades e eficácia. De
momento, pelo menos, não há previsão de limites para à essa dinâmica. O Papa
observa que,
É justo que nos alegremos
com estes progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que
nos abrem estas novidades incessantes, porque a ciência e a tecnologia são um
produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu. A transformação da
natureza para fins úteis é uma característica do gênero humano, desde os seus primórdios;
e assim a técnica exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação
de certos condicionamentos materiais. (Laudato si, 102)
A tecnologia, bem
orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de
vida do ser humano, desde os objetos de uso doméstico até os grandes meios de
transporte, pontes, edifícios, espaços públicos. É capaz também de produzir
coisas belas e fazer o ser humano, imerso no mundo material, dar o salto para o
âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns
arranha-céus. Há obras pictóricas e musicais obtidas com o recurso aos novos
instrumentos técnicos. Assim, no desejo da beleza dá-se o salto para uma certa
plenitude propriamente humana. (Laudato si, 103)
As
inegáveis benefícios e também inegáveis riscos que a ciência e tecnologia
trouxeram para a humanidade, não podemos deixar de nos determos no fato de que,
nas últimas décadas, um autêntico terremoto subverteu os valores tradicionais e
com eles a forma de conceber os passado, o presente e o futuro. Alexandro S.
Caldera resumiu numa frase o dramático panorama histórico em que a humanidade
se debate no começo do terceiro milênio “Agora, o século XXI inicia com uma
profunda orfandade moral. A ausência do
humanismo trata-se de preencher com a tecnologia, a eficiência e a vertigem da
vida contemporânea”. (Caldera, 2004, p. 15)