Depois de termos
examinado a Crônica como um documento importante para demonstrar que os imigrantes
alemães, desde muito cedo, começaram a jornada de inserção no contexto
geográfico e sócio cultural da nova querência, chamamos a atenção a uma série
de outras informações preciosas nela contidas.
Além de oferecer de
dados importantes que apontam para uma inserção precoce do imigrante alemão no
entorno que encontrou no Sul do Brasil, constitui-se numa fonte não menos
valiosa para outros aspectos importantes. Um deles é especialmente
significativo. O Pe. Schlitz, seu autor, soma-se a outros jesuítas que vieram
da Alemanha para dar assistência pastoral aos imigrantes alemães. Acontece que
a atuação desses religiosos inseriu-se no contexto do Projeto da Restauração
Católica, então patrocinado pela Igreja. Dessa forma eles atuaram como agentes
de vanguarda no Brasil desse Projeto
universal da Igreja. É do conhecimento geral de que a Restauração Católica
significou essencialmente um retorno à doutrina e à disciplina do Concílio de
Trento. Tomando esse fato como ponto de partida entende-se o estilo pastoral
revelado nas páginas da Crônica e, ao mesmo tempo, o seu choque com o
catolicismo luso-brasileiro e a metade protestante dos imigrantes alemães de
Bom Jardim. É historicamente conhecida a situação doutrinária e disciplinar do
catolicismo luso-brasileiro. As circunstâncias históricas e o entorno social,
político e econômico, imprimiram-lhe um perfil próprio. O regime de padroado
vigente durante o Império, fez com que
as fronteiras entre o Estado e a Igreja, não fossem claramente identificáveis.
O catolicismo era a religião oficial do Estado e o Imperador também chefe da
Igreja. A criação de dioceses, paróquias e capelanias, exigia a chancela das
autoridades civis. A nomeação dos bispos, párocos e capelães e demais postos da
hierarquia, dependiam da aprovação das autoridades do Estado. A união entre a
Igreja e o Estado, sendo a religião
católica a oficial, fez com que as demais fossem apenas toleradas e
determinados atos seus considerados à margem da lei. Aos protestantes
vedava-se, por ex., o sepultamento em cemitérios públicos, os prédios em que
oficiavam seus cultos eram proibidos de ostentar sinais externos de templo e
seus matrimônios considerados ilegítimos
ou concubinato. Sob muitos aspectos essa realidade condenou os imigrantes
protestantes à marginalização. Com o correr dos anos alguns arranjos e algumas
brechas na legislação fizeram com que as décadas finais do Império, fossem
menos desconfortáveis para os protestantes. Em poucas palavras, os católicos
encontraram uma Igreja submissa e dependente dos caprichos dos governantes e
administradores civis. A doutrina, a fé e os bons costumes pouco ou nada
contavam ou decidiam. O Imperador era, de fato, a autoridade maior, enquanto
Roma contentava-se com a ratificação os
atos dos detentores do poder, tanto civil quanto eclesiástico.
Para os imigrantes
vindos da Europa do Norte e Central o tipo de clero que respondia pela cura das
almas deve ter no mínimo causado surpresa. A disciplina clerical não era seu
forte. Um grande número de sacerdotes era filiado à maçonaria. Outros tantos
entregavam-se a atividades políticas, outros eram fazendeiros ou
dedicavam-se qualquer outra ocupação,
menos a efetiva cura de almas. No seu quotidiano como párocos os sacerdotes
dependiam da vontade dos políticos, dos detentores do poder econômico, que ditavam e impunham as
normas nas freguesias, nas capelanias e nas confrarias.
Os milhares de
quilômetros que separavam os sacerdotes
nas suas estações pastorais da
sede episcopal, até a década de 1850, no Rio de Janeiro, impediam o bispo de
exercer um mínimo de vigilância e dar conforto. O clero estava
entregue a si mesmo. E não é de admirar que se deixasse influenciar e, na
maioria dos casos, fosse vítima do clima profano em que vivia. A atividade
pastoral limitava-se ao cumprimento da rotina burocrática de batizar, legitimar
os matrimônios e encomendar os defuntos, rezar missas e presidir as cerimônias
e festividades religiosas. Mesmo nessas
funções via-se coagido a observar os costumes e rituais impostos pelas
lideranças leigas da freguesia que, na maioria dos casos, pouco ou nada tinham
a ver com autêntico catolicismo.
Nessas
circunstâncias de abandono e, ao mesmo tempo, tutela tirânica do Estado e do
espírito mundano laico, entende-se que a disciplina clerical sofresse sérios arranhões. A
participação de sacerdotes nos acontecimentos profanos e da vida mundana e a
não observância do celibato, tornaram quase regra. O sacerdote vivendo com uma
companheira e com filhos já não causava surpresa. A situação não era só tolerada como aprovada e aceita
pelos fiéis. O clero costumava envolver-se em negócios profanos, amealhando em
muitos casos fortunas apreciáveis e exercendo grande influência política.
Nessas circunstâncias a Igreja como
instituição desempenhava o papel todo peculiar. Quem de fato mandava na
freguesia eram as lideranças locais, os chefes políticos, os donos do poder
econômico, os comandantes das guarnições militares, os provedores das
irmandades, etc. As práticas do culto, as cerimônias e os rituais, atendiam,
antes de mais nada, aos caprichos dos e não às exigências do culto divino.
Sacerdotes pouco ou nada recomendáveis pela conduta pessoal, celebravam a missa
e administravam os sacramentos, conforme as normas ditadas pelos mandatários de
plantão. Em sua prédicas nas missas e falas por ocasião de batizados,
matrimônios e encomendações discorriam sobre o que agradava aos presentes. Não
havia espaço para uma verdadeira vida sacramental. Predominavam festas e
procissões ruidosas, nas quais o profano costumava mascarar o religioso.
Em resumo. Os
imigrantes encontraram uma Igreja que exibia os defeitos e sofria dos vícios e
distorções que o regime do padroado terminou por imprimir. A seu serviço
encontrava-se um clero, distante e alheio aos
princípios doutrinários e preceitos disciplinares, ditados por Roma.
Encontraram uma Igreja sufocada por uma mentalidade que se esgotava em rituais
e manifestações mais profanas do que religiosas. Encontraram uma Igreja carente da verdadeira piedade,
carente de fé, carente de vida sacramental.
(Cf. Rambo A. B. A Igreja dos Imigrantes. in 500 anos do Brasil e a
Irgeja na América Meridional, org. Martin N. Dreher, Ed. EST, 2002, p. 58-59)
Pelo que se pode
deduzir a esse respeito da Crônica, o catolicismo luso-brasileiro não conseguiu
firmar pé na região de Bom Jardim em particular e na região colonial como um
todo. Embora se encontrasse nas duas primeiras décadas sob a jurisdição da
freguesia de São Leopoldo, os contatos com a sede paroquial eram poucos e os
estritamente indispensáveis. Para tanto contribuíram de modo especial três
fatores: a língua, a distância e os cultos organizados pelos próprios colonos
em suas comunidades. O pároco de São Leopoldo não entendendo o alemão,
limitava-se nas suas visitas esporádicas a rezar missa, batizar e regularizar
os matrimônios. Não fazia sentido pregar, ministrar catequese ou ouvir
confissões. Só na fase preparatória da instalação da paróquia os colonos
tiveram ocasião de experimentar, muito de passagem, o que era o clero que
representava o espírito luso-brasileiro. A partir de 1849 a comunidade de Bom
Jardim contou com visitas intermitentes do Pe. Lipinski de Dois Irmãos ou do
Pe. Sedlac de São José do Hortêncio. Em 1859 o bispo nomeou um capelão
residente em Bom Jardim, na pessoa do Pe. Johannes M. Traube. Embora alemão e
um bom pregador, levava uma vida nada condizente com a sua condição de cura de almas. Conforme conta
o Pe. Schlitz na Crônica organizava reuniões dançantes na sua residência e participava delas.
Envolveu-se numa séria polêmica com o bispo diocesano, valendo-se de uma
linguagem agressiva nas suas cartas e escritos. O bispo exonerou-o de suas
funções e, pelo que consta, os protestantes o teriam sondado para ser seu
pregador, o que de fato não aconteceu. Essa foi a vivência mais importante dos
colonos alemães com o espírito do catolicismo luso-brasileiro. Pelo visto não
fez estragos pois, foi transitória e limitada ao
convívio de um sacerdote em particular e não inserido numa comunidade mista com
luso-brasileiros.
Depois de alguns
anos de uma assistência religiosa
irregular, Bom Jardim foi elevado à condição de paróquia autônoma em 1859 e
confiada as padres jesuítas. O fato se
deu um pouco antes da celebração do Concílio Vaticano I. Nele foram definidos a
doutrina, os preceitos morais e as normas disciplinares eclesiásticas que
deveriam nortear a implantação da Restauração Católica. Acontece que os
jesuítas por tradição e por imposição do seu estatuto, alinham-se na vanguarda
da Igreja e costumam ocupar postos avançados na implantação de seus projetos.
Nada mais normal, portanto, que batalhassem
para tornar a Igreja Restaurada uma realidade entre os colonos alemães.
Entende-se que abraçassem a tarefa com o fervor, diria quase com o furor de
pioneiros. Essa característica é flagrante e subentendida nas passagens da Crônica que se ocupam com a
ação pastoral e o espírito religioso daquela comunidade. Para entender o
autor ao definir a autoridade e a
competência do pároco, do bispo, do papa, é preciso situar-se numa realidade histórica em que a hierarquização e,
conseqüentemente, a hierarquia na Igreja, era levada ao quase extremo, pois,
constituía-se num dos pilares mestre sem
o qual todo o Projeto da Restauração
estava comprometido. No mesmo sentido vai a exigência, próximo ao
exagero, ao ressaltar a necessidade da pureza doutrinária, a correção dos
costumes e o comportamento ao fustigar as aberrações e desvios . Riolando Azzi,
estudioso das questões da História da Igreja, assim definiu a discrepância
entre a cristandade luso-brsileira e o cristianismo da Restauração Católica,
que ele chamou de Cristandade Clerical.
“Daí surge uma
diferença bem significativa entre a Cristandade Luso-brasileira e essa nova
Cristandade em formação. Na Cristandade colonial predominava a idéia de que a
instituição eclesiástica fazia parte
integrante do próprio estado lusitano católico. A fé, portanto, permeava as próprias
instituições políticas. Já nas áreas de imigração existe uma separação muito
nítida, entre as manifestações religiosas e a esfera política do Estado
brasileiro, geralmente minimizada ou ignorada. Na medida em que padres
seculares se instalaram na região dos imigrantes, as vinculações mais
expressivas serão feitas com a Santa Sé. Por isso, ao analisar o catolicismo de
imigração no Rio Grande do Sul, Luis de Boni chega a indicar a formação de um
verdadeiro “estado papal”. (Rambo, A.B.
A igreja dos Imigrantes ... idem p. 63)
Na nota introdutória
da Crônica o autor deixa claro que entre os motivos que levaram a escrevê-la, sobressaem
dois. Em primeiro lugar não deixar
cair no esquecimento a história de Bom
Jardim: os começos na mata virgem; o envolvimento dos colonos nos
acontecimentos históricos como a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, a
Guerra contra Rosas, o episódio dos Mucker, o surto de varíola, a Revolução
Federalista; a progressiva inserção na
comunidade nacional; a evolução e a consolidação da colonização sob todos os
seus aspectos.
Em segundo
lugar fixa-se a Crônica na história da paróquia e da comunidade
católica. Se sob todos os aspectos relata até às minúcias a história local, não
deixa de ser uma amostra paradigmática para a colonização alemã no Sul do
Brasil em geral e ao mesmo tempo não deixa de ser uma história confessional,
por declarar ser uma história da comunidade católica. Com isso fica faltando a
história da comunidade protestante, levemente mais numerosa. Em luar nenhum na
Crônica o Pe. Schlitz se refere em tom de animosidade contra os protestantes.
Não faz referência aos pontos de conflito mais comuns relativos aos restrições
aos casamentos mistos e padrinhos protestantes em batismos de católicos.
Concluindo vale
dizer que a Crônica de Bom Jardim representa um documento precioso, único e
indispensável para se formar uma opinião ojetiva dos primeiros 70 nos da
colonização alemã no Rio Grande do Sul, com o foco local mas numa perspectiva
regional.
Arthur
Bl. Rambo