Deitando Raízes #4

Depois de termos examinado a Crônica como um documento importante para demonstrar que os imigrantes alemães, desde muito cedo, começaram a jornada de inserção no contexto geográfico e sócio cultural da nova querência, chamamos a atenção a uma série de outras informações preciosas nela contidas.
Além de oferecer de dados importantes que apontam para uma inserção precoce do imigrante alemão no entorno que encontrou no Sul do Brasil, constitui-se numa fonte não menos valiosa para outros aspectos importantes. Um deles é especialmente significativo. O Pe. Schlitz, seu autor, soma-se a outros jesuítas que vieram da Alemanha para dar assistência pastoral aos imigrantes alemães. Acontece que a atuação desses religiosos inseriu-se no contexto do Projeto da Restauração Católica, então patrocinado pela Igreja. Dessa forma eles atuaram como agentes de vanguarda no Brasil  desse Projeto universal da Igreja. É do conhecimento geral de que a Restauração Católica significou essencialmente um retorno à doutrina e à disciplina do Concílio de Trento. Tomando esse fato como ponto de partida entende-se o estilo pastoral revelado nas páginas da Crônica e, ao mesmo tempo, o seu choque com o catolicismo luso-brasileiro e a metade protestante dos imigrantes alemães de Bom Jardim. É historicamente conhecida a situação doutrinária e disciplinar do catolicismo luso-brasileiro. As circunstâncias históricas e o entorno social, político e econômico, imprimiram-lhe um perfil próprio. O regime de padroado vigente durante o Império, fez  com que as fronteiras entre o Estado e a Igreja, não fossem claramente identificáveis. O catolicismo era a religião oficial do Estado e o Imperador também chefe da Igreja. A criação de dioceses, paróquias e capelanias, exigia a chancela das autoridades civis. A nomeação dos bispos, párocos e capelães e demais postos da hierarquia, dependiam da aprovação das autoridades do Estado. A união entre a Igreja e o Estado, sendo  a religião católica a oficial, fez com que as demais fossem apenas toleradas e determinados atos seus considerados à margem da lei. Aos protestantes vedava-se, por ex., o sepultamento em cemitérios públicos, os prédios em que oficiavam seus cultos eram proibidos de ostentar sinais externos de templo e seus matrimônios considerados  ilegítimos ou concubinato. Sob muitos aspectos essa realidade condenou os imigrantes protestantes à marginalização. Com o correr dos anos alguns arranjos e algumas brechas na legislação fizeram com que as décadas finais do Império, fossem menos desconfortáveis para os protestantes. Em poucas palavras, os católicos encontraram uma Igreja submissa e dependente dos caprichos dos governantes e administradores civis. A doutrina, a fé e os bons costumes pouco ou nada contavam ou decidiam. O Imperador era, de fato, a autoridade maior, enquanto Roma contentava-se com a  ratificação os atos dos detentores do poder, tanto civil quanto eclesiástico.
Para os imigrantes vindos da Europa do Norte e Central o tipo de clero que respondia pela cura das almas deve ter no mínimo causado surpresa. A disciplina clerical não era seu forte. Um grande número de sacerdotes era filiado à maçonaria. Outros tantos entregavam-se a atividades políticas, outros eram fazendeiros ou dedicavam-se  qualquer outra ocupação, menos a efetiva cura de almas. No seu quotidiano como párocos os sacerdotes dependiam da vontade dos políticos, dos detentores  do poder econômico, que ditavam e impunham as normas nas freguesias, nas capelanias e nas confrarias.
Os milhares de quilômetros que separavam os sacerdotes  nas suas estações pastorais  da sede episcopal, até a década de 1850, no Rio de Janeiro, impediam o bispo de exercer um  mínimo  de vigilância e dar conforto. O clero estava entregue a si mesmo. E não é de admirar que se deixasse influenciar e, na maioria dos casos, fosse vítima do clima profano em que vivia. A atividade pastoral limitava-se ao cumprimento da rotina burocrática de batizar, legitimar os matrimônios e encomendar os defuntos, rezar missas e presidir as cerimônias e festividades religiosas.  Mesmo nessas funções via-se coagido a observar os costumes e rituais impostos pelas lideranças leigas da freguesia que, na maioria dos casos, pouco ou nada tinham a ver com autêntico catolicismo.
Nessas circunstâncias de abandono e, ao mesmo tempo, tutela tirânica do Estado e do espírito mundano laico, entende-se que a disciplina  clerical sofresse sérios arranhões. A participação de sacerdotes nos acontecimentos profanos e da vida mundana e a não observância do celibato, tornaram quase regra. O sacerdote vivendo com uma companheira e com filhos já não causava surpresa. A situação  não era só tolerada como aprovada e aceita pelos fiéis. O clero costumava envolver-se em negócios profanos, amealhando em muitos casos fortunas apreciáveis e exercendo grande influência política.
 Nessas circunstâncias a Igreja como instituição desempenhava o papel todo peculiar. Quem de fato mandava na freguesia eram as lideranças locais, os chefes políticos, os donos do poder econômico, os comandantes das guarnições militares, os provedores das irmandades, etc. As práticas do culto, as cerimônias e os rituais, atendiam, antes de mais nada, aos caprichos dos e não às exigências do culto divino. Sacerdotes pouco ou nada recomendáveis pela conduta pessoal, celebravam a missa e administravam os sacramentos, conforme as normas ditadas pelos mandatários de plantão. Em sua prédicas nas missas e falas por ocasião de batizados, matrimônios e encomendações discorriam sobre o que agradava aos presentes. Não havia espaço para uma verdadeira vida sacramental. Predominavam festas e procissões ruidosas, nas quais o profano costumava mascarar o religioso.
Em resumo. Os imigrantes encontraram uma Igreja que exibia os defeitos e sofria dos vícios e distorções que o regime do padroado terminou por imprimir. A seu serviço encontrava-se um clero, distante e alheio aos  princípios doutrinários e preceitos disciplinares, ditados por Roma. Encontraram uma Igreja sufocada por uma mentalidade que se esgotava em rituais e manifestações mais profanas do que religiosas. Encontraram  uma Igreja carente da verdadeira piedade, carente de fé, carente de vida sacramental.  (Cf. Rambo A. B. A Igreja dos Imigrantes. in 500 anos do Brasil e a Irgeja na América Meridional, org. Martin N. Dreher, Ed. EST, 2002, p. 58-59)
Pelo que se pode deduzir a esse respeito da Crônica, o catolicismo luso-brasileiro não conseguiu firmar pé na região de Bom Jardim em particular e na região colonial como um todo. Embora se encontrasse nas duas primeiras décadas sob a jurisdição da freguesia de São Leopoldo, os contatos com a sede paroquial eram poucos e os estritamente indispensáveis. Para tanto contribuíram de modo especial três fatores: a língua, a distância e os cultos organizados pelos próprios colonos em suas comunidades. O pároco de São Leopoldo não entendendo o alemão, limitava-se nas suas visitas esporádicas a rezar missa, batizar e regularizar os matrimônios. Não fazia sentido pregar, ministrar catequese ou ouvir confissões. Só na fase preparatória da instalação da paróquia os colonos tiveram ocasião de experimentar, muito de passagem, o que era o clero que representava o espírito luso-brasileiro. A partir de 1849 a comunidade de Bom Jardim contou com visitas intermitentes do Pe. Lipinski de Dois Irmãos ou do Pe. Sedlac de São José do Hortêncio. Em 1859 o bispo nomeou um capelão residente em Bom Jardim, na pessoa do Pe. Johannes M. Traube. Embora alemão e um bom pregador, levava uma vida nada condizente com a  sua condição de cura de almas. Conforme conta o Pe. Schlitz na Crônica organizava reuniões dançantes  na sua residência e participava delas. Envolveu-se numa séria polêmica com o bispo diocesano, valendo-se de uma linguagem agressiva nas suas cartas e escritos. O bispo exonerou-o de suas funções e, pelo que consta, os protestantes o teriam sondado para ser seu pregador, o que de fato não aconteceu. Essa foi a vivência mais importante dos colonos alemães com o espírito do catolicismo luso-brasileiro. Pelo visto não fez            estragos pois, foi transitória e limitada ao convívio de um sacerdote em particular e não inserido numa comunidade mista com luso-brasileiros.
Depois de alguns anos de uma assistência  religiosa irregular, Bom Jardim foi elevado à condição de paróquia autônoma em 1859 e confiada as padres jesuítas. O fato  se deu um pouco antes da celebração do Concílio Vaticano I. Nele foram definidos a doutrina, os preceitos morais e as normas disciplinares eclesiásticas que deveriam nortear a implantação da Restauração Católica. Acontece que os jesuítas por tradição e por imposição do seu estatuto, alinham-se na vanguarda da Igreja e costumam ocupar postos avançados na implantação de seus projetos. Nada mais normal, portanto, que batalhassem  para tornar a Igreja Restaurada uma realidade entre os colonos alemães. Entende-se que abraçassem a tarefa com o fervor, diria quase com o furor de pioneiros. Essa característica é flagrante e subentendida  nas passagens da Crônica que se ocupam com a ação pastoral e o espírito religioso daquela comunidade. Para entender o autor  ao definir a autoridade e a competência do pároco, do bispo, do papa, é preciso situar-se numa realidade  histórica em que a hierarquização e, conseqüentemente, a hierarquia na Igreja, era levada ao quase extremo, pois, constituía-se  num dos pilares mestre sem o qual todo o Projeto da Restauração  estava comprometido. No mesmo sentido vai a exigência, próximo ao exagero, ao ressaltar a necessidade da pureza doutrinária, a correção dos costumes e o comportamento ao fustigar as aberrações e desvios . Riolando Azzi, estudioso das questões da História da Igreja, assim definiu a discrepância entre a cristandade luso-brsileira e o cristianismo da Restauração Católica, que ele chamou de Cristandade Clerical.
“Daí surge uma diferença bem significativa entre a Cristandade Luso-brasileira e essa nova Cristandade em formação. Na Cristandade colonial predominava a idéia de que a instituição eclesiástica fazia parte  integrante do próprio estado lusitano católico.  A fé, portanto, permeava as próprias instituições políticas. Já nas áreas de imigração existe uma separação muito nítida, entre as manifestações religiosas e a esfera política do Estado brasileiro, geralmente minimizada ou ignorada. Na medida em que padres seculares se instalaram na região dos imigrantes, as vinculações mais expressivas serão feitas com a Santa Sé. Por isso, ao analisar o catolicismo de imigração no Rio Grande do Sul, Luis de Boni chega a indicar a formação de um verdadeiro “estado papal”.  (Rambo, A.B. A igreja dos Imigrantes ... idem p. 63)
Na nota introdutória da Crônica o autor deixa claro que entre os motivos que levaram a escrevê-la, sobressaem dois. Em primeiro lugar  não deixar cair  no esquecimento a história de Bom Jardim: os começos na mata virgem; o envolvimento dos colonos nos acontecimentos históricos como a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, a Guerra contra Rosas, o episódio dos Mucker, o surto de varíola, a Revolução Federalista; a progressiva inserção  na comunidade nacional; a evolução e a consolidação da colonização sob todos os seus aspectos.
Em segundo lugar  fixa-se a Crônica na  história da paróquia e da comunidade católica. Se sob todos os aspectos relata até às minúcias a história local, não deixa de ser uma amostra paradigmática para a colonização alemã no Sul do Brasil em geral e ao mesmo tempo não deixa de ser uma história confessional, por declarar ser uma história da comunidade católica. Com isso fica faltando a história da comunidade protestante, levemente mais numerosa. Em luar nenhum na Crônica o Pe. Schlitz se refere em tom de animosidade contra os protestantes. Não faz referência aos pontos de conflito mais comuns relativos aos restrições aos casamentos mistos e padrinhos protestantes em batismos de católicos.
Concluindo vale dizer que a Crônica de Bom Jardim representa um documento precioso, único e indispensável para se formar uma opinião ojetiva dos primeiros 70 nos da colonização alemã no Rio Grande do Sul, com o foco local mas numa perspectiva regional.

                                                                                                                 Arthur Bl. Rambo

Deitando Raízes #3

O início da imigração coincidiu com as disputas pelas pela fixação das fronteiras no sul, normalmente conhecidas como a Guerra da Cisplatina. Um número considerável  de rapazes e homens participaram das lutas, engajados nos batalhões imperiais. Esse envolvimento direto com importantes questões nacionais, como foi a definição das fronteiras e o convívio com os camaradas luso brasileiros, constituiu-se, com certeza, numa importante via de aproximação com a nova realidade. Familiarizaram-se, uns mais outros menos, com a língua do país. Mas não foi só na campanha que fixou as fronteiras que homens e rapazes serviram nas tropas imperiais da época. A participação dos colonos alemães na Guerra do Paraguai é fato mais do que conhecido. Durante o período da Nacionalização no Estado Novo a contribuição dos alemães nesse episódio foi desqualificado como uma atitude esporádica e aventureira. Coelho de Souza, Secretário da Educação naquele período, referiu-se nos seguintes termos a esse fato em sua "Denúncia."
"Antes de entrar na apreciação de cada um desses, quero abrir um parêntesis, para dizer que não empresto maior significado político à atitude  dos alemães e teuto-brasileiros que tomaram parte nas Guerras do Paraguai e na Revolução Farroupilha, atitude essa largamente explorada em perorações dos velhos discursos políticos, perseguidores de votos."
"O simples cotejo  das datas da sua entrada no País, e dos acontecimentos históricos referidos mostram, convincentemente, que essa conduta não decorreu de uma integração nacional: representava apenas o espírito de aventura da época, que facilitara ao Império a organização de batalhões mercenários, ou a intenção de defesa material do trato de terra que lhes coubera, na distribuição do Novo Mundo."
"O que não se pode afirmar, de certo, sem superficialidade,
 que essas atividades bélicas dos colonos e da primeira geração aqui nascida, significam integração no espírito nacional."  
Em poucas páginas o Pe. Schlitz faz desfilar diante dos olhos do leitor o que significou a Guerra do Paraguai em termos de comprometimento dos colonos alemães. O número de colonos mobilizados e que participaram efetivamente dos combates, as baixas (cerca da metade dos que entraram em combate), a participação nos combates, a citação de nomes de convocados e voluntários, demonstra que a avaliação de Coelho de Souza não foi apenas parcial mas  principalmente injusta. Fica claro que a participação nessa campanha se deu no mínimo com o mesmo espírito que animou as tropas luso-brasileiras em companhia das quais os  colonos alemães lutaram nos mesmos batalhões e regimentos. A presença de aventureiros e mercenários, um fenômeno sempre presente em tais circunstâncias, certamente não foi menor entre os luso-brasileiros.
A Crônica do Pe. Schlitz constitui-se numa fonte de informações ricas e preciosas que demonstram a versatilidade e a capacidade de adaptação e o jogo de cintura dos colonos alemães. Neste sentido uma das ocasiões mais emblemáticas foi a Guerra dos Farrapos. Esse episódio é, antes de mais nada importante, porque surpreendeu os colonos ainda no final da primeira década da sua presença na região. Acabavam de fazer os primeiros contatos com o entorno físico geográfico e sócio político e criadas as condições mínimas para começarem a prosperar. O conceito que se firmou e impôs em relação ao envolvimento dos colonos na Revolução, parece coincidir muito pouco ou nada com a realidade histórica. É pelo menos isso que fica bem claro na Crônica. Os fatos nela registrados relativos aos acontecimentos farroupilhas, derrubam o estereótipo do colono alemão  acuado na sua propriedade no meio do mato, sendo assaltado, roubado, espoliado e assassinado pelos bandos revolucionários. O colono abandonado à sua sorte, entregue à sanha dos assaltantes e às rapinagens, perde muito do seu charme épico romântico quando se examina com um pouco mais de atenção as informações contidas na Crônica.
Em meio a esses dados, fatos e feitos que registra, emerge um colono alemão à altura para enfrentar os acontecimentos que o envolvem. Soube entrar no jogo e na dinâmica revolucionária sem ficar devendo muito aos luso brasileiros. Por convicção, por oportunismo, por coação ou por razões bem mais rasteiras, aderiu a uma ou outra das facções. Não poucos mudaram de lado na medida das necessidades ou oportunidades. A Crônica desfaz também o mito da fidelidade do colono alemão, principalmente católico, ao Imperador. Apresenta neste particular um panorama no qual próximo da metade defendia as trincheiras dos imperiais e a outra combatia pela causa revolucionária. Levanta até certo ponto surpresa que Dois Irmãos tivesse aderido na sua maioria ao Império e Bom Jardim à Revolução. Os episódios de degolas, assassinatos, torturas e execuções sumárias, com a participação de colonos alemães, provam que eles marcavam presença ativa no  que acontecia de bom e de mau,  na esteira sócio política mais ampla em que se encontravam.
Ao relatar os acontecimentos da Revolução Farroupilha o Pe Schlitz evoca de modo especial a "Companhia alemã", conhecida também como "os Voluntários". Tanto a composição da Companhia quanto o seu envolvimento  naquele episódio, constituem-se talvez num dos contra argumentos mais contundentes do isolamento ou enquistamento étnico dos colonos alemães. A base da Companhia era formada por antigos soldados recrutados na Europa para servirem ao imperador. Desmobilizados daquela condição transferiram-se para o sul e, como voluntários, organizaram a Companhia Alemã. Nela foram incorporados numerosos filhos de colonos. A Companhia contava ao todo com 100 homens formando uma tropa de elite, sob o comando superior do Barão do Jacui. Gozava de grande prestígio perante os luso-brasileiros e do comando das tropas imperiais. Tanto assim que o soldo mensal pago a cada homem era de 27 mil réis, enquanto os demais recebiam apenas 10 mil réis. Sua missão consistia em proteger as áreas nas proximidades de Porto Alegre.
Passados 50 anos da Revolução Farroupilha os descendentes de primeira e segunda geração dos primeiros imigrantes, mais os imigrantes mais tardios, viram-se levados de roldão pela Revolução Federalista. Seu envolvimento naqueles acontecimentos de 1893-1895 foi, em grandes linhas, muito parecido com a Revolução Farroupilha.
Para a região do vale do Rio dos Sinos e do Caí a movimentação dos Maragatos tornou-se mais visível depois da morte Gomercindo Saraiva em agosto de 1894. Na verdade tratava-se de tropas irregulares ou,  melhor dito, de bandos organizados e armados, que se formaram no contexto confuso e anárquico que costuma acompanhar a evolução de fatos históricos do gênero. Deixando de lado eufemismos não passavam de bandos de salteadores que se diziam revolucionários, comandados pelos irmãos Correa e Leão. Animados por pouca, ou melhor, nenhuma motivação política, percorriam as linhas e picadas dos colonos, saqueando as propriedades, cometendo as maiores violências, inclusive assassinatos.
Também neste caso a crônica mostra o envolvimento dos colonos no atacado e no varejo. No atacado. Como na Revolução Farroupilha, também nesta os colonos dividiram-se, pela simpatia e engajamento efetivo, na causa política dos Maragatos de um lado e dos Legalistas do outro.
Durante a Revolução federalista foram mobilizados pela primeira vez os "Grupos de Autodefesa", [1] grupos paramilitares recrutados, armados, treinados e comandados pelos próprios colonos. Seus feitos e resultados bélicos foram mais espetaculares no vale do Taquari. José Diehl comandou, por ex., o grupo de autodefesa que impôs uma pesada derrota aos Maragatos num assalto a Santa Clara. No vale do Sinos esses grupos não primaram pela organização, pela disciplina e pela competência dos comandantes, de maneira que não chegaram a representar um perigo mais sério para os bandos dos Correa e
No varejo. A Crônica descreve as filigranas do envolvimento dos colonos nos acontecimentos: intrigas, jogos de pressão e de interesse, provando que, não somente não estavam alheios, como sabiam perfeitamente quais os lances e como dá-los no jogo do qual participavam.




[1] Os grupos de auto-defesa foram organizados e integrados pelos colonos alemães para a defesa de suas comunidades e propriedades, pois, na Revolução Federalista e na Revolução de 1923,  não podiam contra com a proteção official. Pode-se dizer que formavam uma organização para-militar até bem vinda pelas autoridades constituídas. Sua eficiência dependia em grande parte da capacidade de liderança e commando das diversas picadas que defendiam. Assim na região da Picada Café e arredores, durante a revolução federalista, foram pouco eficientes. O contrario aconteceu em Santa Calra do Sul durante a mesma revolução. Sob o commando de José Diehl os defensores da picada e arredores, impediram que os federalistas tomassem conta da região. Um fato semelhante aconteceu com os grupos de auto-defesa de Cerro Largo que impediram que os insurretos atravessassem o rio Ijui. Na ocasião Borges de Medeiros mandou entregar armas modernas ao grupo.

Deitando Raízes #2

Feitas essas observações preliminares, passamos a apontar alguns aspectos que tornam a Crônica uma fonte obrigatória para os estudiosos da imigração no Sul do Brasil. A história convencional apresenta o imigrante como vítima indefesa de duas situações: a total falta de perspectivas na Alemanha de então do lado de lá e, do lado de cá, o abandono unicamente à sua capacidade de se impor a um meio hostil. Fiquemos apenas com o que aconteceu do lado de cá.
A transposição de migrantes, imigrantes, emigrantes, dependendo do ponto de vista que se olha, vem acompanhado de duas dimensões. De um lado o migrante que parte para não mais retornar, em outras palavras, estabelecer-se em outra parte, país ou continente, deixa para trás toda uma história e pouco a pouco distancia-se das suas raízes. Em contrapartida é forçado a se inserir num outro ambiente geográfico, num outro contexto social, numa outra tradição cultural.
 Essa caminhada dos migrantes assume proporções mais ou menos dramáticas de acordo com as situações em que essa trajetória acontece. De importância é, sem dúvida, a distância que separa a terra de origem da terra de destino. E, neste particular, cabe um papel importante à época histórica em que aconteceu a imigração. Esses dois fatores combinados representam  um dos elementos talvez mais decisivos que determinam  o ritmo do afastamento das raízes e  a inserção na nova realidade. Exemplificando. Vale, por ex., para o migrante que no século dezoito partia da Europa e viajava em veleiros para a América do Norte, e depois passava meses, anos e, na maioria dos casos, o resto da vida sem se comunicar com os parentes e amigos deixados na terra de origem. Retornar em definitivo ou para uma visita, nem pensar. Entre o ponto de partida e a terra de destino a barreira intransponível do oceano, a erradicação de um lado e ou enraizamento do outro, acontecia compulsoriamente, acompanhado de todos os traumas imagináveis. Com os migrantes do começo do século vinte que dispunham de navios a vapor para transpor o oceano e trens para levá-los para o interior das novas terras, a situação mudara por completo e para melhor.
Um outro fator que não pode ser esquecido quando se acompanha os migrantes que vão estabelecer-se  numa terra estranha é o ambiente geográfico diferente. A relevância dessa questão assume proporções mais ou menos importantes, na medida em que as características das terras de origem são muito diferentes das do destino. Assim por ex., os migrantes  que se fixaram  nos Estados Unidos e no Canadá encontraram florestas com uma composição fitogeográfica parecida com a Europa. A maioria das espécies de árvores e a distribuição relativa, tanto das coníferas quanto das de folhas caducas dos dois continentes, tinham bastantes semelhanças. O mesmo já não se podia afirmar do Sul do Brasil. Uma floresta pluvial subtropical quase impenetrável, composta por espécies desconhecidas para o europeu, povoadas por animais, aves e insetos também desconhecidos, cobriam as terras destinadas aos imigrantes. Para esses imigrantes  acresceu, além disso, a adaptação à inversão  das estações no ciclo anual e a ausência de invernos rigorosos com neve e muito gelo.
 Sobre esse pano de fundo estabeleceram-se os primeiros contatos dos imigrantes alemães com a nova realidade. O primeiro desafio  consistiu em aprender a lidar com a mata, como derrubá-la e como livrar-se dos galhos e dos troncos.  Estabeleceram-se assim os primeiros contatos  com os luso-brasileiros e os indígenas da região. Aprenderam deles  os métodos de como criar condições para sobreviver e consolidar a sua situação nessas circunstâncias . Aprenderam a limpar o mato com foice para depois derrubar as árvores maiores. Para remover árvores e  arbustos depois de secos, os imigrantes recorreram ao método indígena da coivara, queimando o material seco.
O segundo problema a ser resolvido foi mais complexo, porém, de um significado cultural muito mais profundo. Referimo-nos à transferência dos referenciais simbólicos ligados à floresta, suas árvores, plantas e animais da Europa, para a mata, as árvores, as plantas e animais do Sul do Brasil. A importância do conjunto de processos neste particular, não raro escapa ao historiador. Acontece que neles residem elementos explicativos relevantes quando se pretende entender a gênese e a dinâmica dos processos culturais em geral e a aculturação ou enculturação em particular. Começa por aí que o homem vive numa relação existencial, simbiótica com o meio geográfico em que se encontra, tanto a nível biológico, quanto sob o ponto de vista cultural, psicológico e até religioso. É neste sentido que a relação com natureza, a relação prazerosa, a relação hostil, a relação exploratória, o clima de mistério, os ciclos que a regem, moldam os traços e contornos da paisagem em que imigrante construiu a sua nova terra natal, a sua nova "Heimat", a sua nova "querência". E assim o entorno geográfico deixa de significar um mero potencial para garantir a subsistência, para transformar-se numa paisagem humanizada  que chega a um nível tal de abstração que se fala na "paisagem como sendo um estado de espírito."
A outra gama de surpresas que esperava o imigrante na sua chegada, foram os homens, os povos e as culturas nativas. Nenhuma das ondas migratórias dos últimos séculos encontrou as terras de destino despovoadas. Na América do Norte entraram em condições de superioridade numérica e, principalmente, tecnológica. Os nativos terminaram massacrados, os sobreviventes confinados em reservas e as culturas reduzidas a curiosidades antropológicas.
Com os  imigrantes alemães, italianos, poloneses, etc., aqui no Sul do Brasil, as coisas aconteceram de forma bem diferente. Encontraram os luso-brasileiros há quase um século solidamente instalados na Província de São Pedro. Concentravam em suas mãos o poder econômico nas suas estâncias de gado, dominavam o comércio com a movimentação de tropas e com as caravanas de mulas, levavam charque e couros até as praças do centro do país. Ao mesmo tempo, concentravam em suas mãos todo o poder político regional e exerciam não pouca influência sobre a política imperial. Neste contexto coube aos alemães e, mais tarde, às outras correntes imigratórias, na condição de grupos minoritários, povoar e tornar produtivas as assim chamadas terras devolutas e as áreas cobertas de mata das estâncias de gado.  A justaposição geográfica com o entorno luso-brasileiro e o aparente isolamento étnico, cultural e lingüístico, social e político, levaram à interpretação equivocada do imigrante enquistado, fechado sobre si mesmo em suas picadas,  refratário a uma abertura para o mundo que não fosse o dele, desinteressado e alienado das movimentações sociais e políticas que aconteciam em sua volta. Por muito tempo prevaleceu a falsa idéia do imigrante que venceu sozinho e apesar de tudo, os desafios da sobrevivência num contexto geográfico e humano hostil e vítima das convulsões sociais e das guerras que intranqüilizaram o Sul do Brasil no decorrer do século dezenove.
O trabalho pioneiro mais consistente nessa revisão da relação dos imigrantes alemães com a realidade geográfica e social em que foram inseridos, é o do prof. Marcos Justo Tramontini, uma grande esperança da nova geração de historiadores da imigração prematuramente falecido de câncer e 2004. Reuniu para a sua tese de doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, um vasto arsenal de documentos e fontes que desmontam em grande parte ao menos, a idealização do imigrante alemão como um mero espectador, vítima, sobrevivente em meio às vicissitudes circunstanciais em que foi obrigado a tentar uma nova vida. À documentação e às fontes reunidas pelo prof. Tramontini, estamos em condições de acrescentar a Crônica de Bom Jardim do Pe. Carl Schlitz, uma minuciosa história regional, que tem como foco os  vales do rios dos Sinos e do Caí, mas insere-se na perspectiva  da história do Rio Grande do Sul como um todo, contada por testemunhas oculares dos acontecimentos nela enfocados.
O começo, isto é, de modo especial até a primeira colheita, implicou em vivências penosas e difíceis, acompanhadas de um aprendizado muito duro. Baseado em informantes que tinham participado dessa experiência, o Pe. Schlitz fixou um quadro minucioso daquela situação.
O primeiro grande desafio enfrentado pelos recém chegados, foi a alimentação. Precariamente alojados em alguma propriedade já existente ou, simplesmente ao relento, obrigaram-se a consumir o que era possível encontrar por perto. E, no caso dos pioneiros de Bom Jardim, o único recurso disponível em quantidade suficiente, resumia-se  em abóboras e laranjas compradas no Portão. Nos primeiros meses as refeições não passavam do mingau de abóbora no desjejum, no almoço e na janta. Em outros pratos como feijão, carne, arroz, etc. ou em pão, nem pensar.
A Crônica mostra também em detalhes  como os pioneiros aprenderam a lidar com a mata virgem. Abriram as primeiras clareiras munidos apenas com facão, foice e machado. E, para livrar-se dos galhos e vegetação seca depois de posta abaixo, recorreram à técnica dos nativos da coivara, a queima do material seco. Feito isso à base de muito esforço, os primeiros metros quadrados de chão estavam livres para receberem as sementes. A questão que se colocava então foi: o que plantar e como proceder. Observando os luso brasileiros nas redondezas os imigrantes adotaram o cultivo dos produtos que serviam de base da alimentação na região: feijão, milho. aipim, abóboras, batata doce, cana de açúcar, ... A adoção dessas culturas veio acompanhada do aprendizado de como cultivá-las. Como se pode  ver, os colonos viram-se, desde o começo,  na contingência de recorrer à população  luso brasileira e aos próprios nativos, para se apropriarem dos meios indispensáveis para a sobrevivência. Desde logo pois, somam-se  as evidências de que o isolamento que se atribui aos imigrantes alemães nas primeiras gerações foi, no mínimo, algo muito relativo. Pela força das circunstâncias e pela convicção própria dos colonos de que aqui estavam-se fixando em caráter  definitivo, o isolamento, assim como é apresentado como um fato pacificamente aceito, de fato nunca existiu. A imagem do colono alemão jogado na mata virgem, sozinho e entregue à própria sorte, é talvez verdadeira em alguns poucos aspectos. O processo de inserção na nova realidade, tanto física quanto cultural, se fez sentir desde o primeiro dia.


Um dos grandes méritos da Crônica do Pe. Schlitz é exatamente este. Informado por testemunhas que viveram essa trajetória desde o seu começo, não há como ignorá-los ou desprezá-los, pelo menos no essencial. E todos concordam numa coisa. O processo  de inserção começou desde o primeiro dia. Seu ritmo e suas características foram determinadas pelas circunstâncias. Pouco visíveis e espetaculares nos primeiros anos, acabaram por intensificar-se e diversificar-se, na medida em que a colonização se consolidava. Além da adoção  de técnicas para lidar com a mata virgem, o manejo do solo e tipos de culturas nativas, a Crônica informa sobre contatos dos alemães  com o entorno social, político e econômico. Fala  da experiência de três rapazes que foram trabalhar como peões numa estância no interior do estado. Conviveram perto de um ano com os hábitos do quotidiano de uma fazenda de criação de gado. Aprenderam a falar português e trouxeram para casa uma boa soma em dinheiro.