Deitando Raízes #3

O início da imigração coincidiu com as disputas pelas pela fixação das fronteiras no sul, normalmente conhecidas como a Guerra da Cisplatina. Um número considerável  de rapazes e homens participaram das lutas, engajados nos batalhões imperiais. Esse envolvimento direto com importantes questões nacionais, como foi a definição das fronteiras e o convívio com os camaradas luso brasileiros, constituiu-se, com certeza, numa importante via de aproximação com a nova realidade. Familiarizaram-se, uns mais outros menos, com a língua do país. Mas não foi só na campanha que fixou as fronteiras que homens e rapazes serviram nas tropas imperiais da época. A participação dos colonos alemães na Guerra do Paraguai é fato mais do que conhecido. Durante o período da Nacionalização no Estado Novo a contribuição dos alemães nesse episódio foi desqualificado como uma atitude esporádica e aventureira. Coelho de Souza, Secretário da Educação naquele período, referiu-se nos seguintes termos a esse fato em sua "Denúncia."
"Antes de entrar na apreciação de cada um desses, quero abrir um parêntesis, para dizer que não empresto maior significado político à atitude  dos alemães e teuto-brasileiros que tomaram parte nas Guerras do Paraguai e na Revolução Farroupilha, atitude essa largamente explorada em perorações dos velhos discursos políticos, perseguidores de votos."
"O simples cotejo  das datas da sua entrada no País, e dos acontecimentos históricos referidos mostram, convincentemente, que essa conduta não decorreu de uma integração nacional: representava apenas o espírito de aventura da época, que facilitara ao Império a organização de batalhões mercenários, ou a intenção de defesa material do trato de terra que lhes coubera, na distribuição do Novo Mundo."
"O que não se pode afirmar, de certo, sem superficialidade,
 que essas atividades bélicas dos colonos e da primeira geração aqui nascida, significam integração no espírito nacional."  
Em poucas páginas o Pe. Schlitz faz desfilar diante dos olhos do leitor o que significou a Guerra do Paraguai em termos de comprometimento dos colonos alemães. O número de colonos mobilizados e que participaram efetivamente dos combates, as baixas (cerca da metade dos que entraram em combate), a participação nos combates, a citação de nomes de convocados e voluntários, demonstra que a avaliação de Coelho de Souza não foi apenas parcial mas  principalmente injusta. Fica claro que a participação nessa campanha se deu no mínimo com o mesmo espírito que animou as tropas luso-brasileiras em companhia das quais os  colonos alemães lutaram nos mesmos batalhões e regimentos. A presença de aventureiros e mercenários, um fenômeno sempre presente em tais circunstâncias, certamente não foi menor entre os luso-brasileiros.
A Crônica do Pe. Schlitz constitui-se numa fonte de informações ricas e preciosas que demonstram a versatilidade e a capacidade de adaptação e o jogo de cintura dos colonos alemães. Neste sentido uma das ocasiões mais emblemáticas foi a Guerra dos Farrapos. Esse episódio é, antes de mais nada importante, porque surpreendeu os colonos ainda no final da primeira década da sua presença na região. Acabavam de fazer os primeiros contatos com o entorno físico geográfico e sócio político e criadas as condições mínimas para começarem a prosperar. O conceito que se firmou e impôs em relação ao envolvimento dos colonos na Revolução, parece coincidir muito pouco ou nada com a realidade histórica. É pelo menos isso que fica bem claro na Crônica. Os fatos nela registrados relativos aos acontecimentos farroupilhas, derrubam o estereótipo do colono alemão  acuado na sua propriedade no meio do mato, sendo assaltado, roubado, espoliado e assassinado pelos bandos revolucionários. O colono abandonado à sua sorte, entregue à sanha dos assaltantes e às rapinagens, perde muito do seu charme épico romântico quando se examina com um pouco mais de atenção as informações contidas na Crônica.
Em meio a esses dados, fatos e feitos que registra, emerge um colono alemão à altura para enfrentar os acontecimentos que o envolvem. Soube entrar no jogo e na dinâmica revolucionária sem ficar devendo muito aos luso brasileiros. Por convicção, por oportunismo, por coação ou por razões bem mais rasteiras, aderiu a uma ou outra das facções. Não poucos mudaram de lado na medida das necessidades ou oportunidades. A Crônica desfaz também o mito da fidelidade do colono alemão, principalmente católico, ao Imperador. Apresenta neste particular um panorama no qual próximo da metade defendia as trincheiras dos imperiais e a outra combatia pela causa revolucionária. Levanta até certo ponto surpresa que Dois Irmãos tivesse aderido na sua maioria ao Império e Bom Jardim à Revolução. Os episódios de degolas, assassinatos, torturas e execuções sumárias, com a participação de colonos alemães, provam que eles marcavam presença ativa no  que acontecia de bom e de mau,  na esteira sócio política mais ampla em que se encontravam.
Ao relatar os acontecimentos da Revolução Farroupilha o Pe Schlitz evoca de modo especial a "Companhia alemã", conhecida também como "os Voluntários". Tanto a composição da Companhia quanto o seu envolvimento  naquele episódio, constituem-se talvez num dos contra argumentos mais contundentes do isolamento ou enquistamento étnico dos colonos alemães. A base da Companhia era formada por antigos soldados recrutados na Europa para servirem ao imperador. Desmobilizados daquela condição transferiram-se para o sul e, como voluntários, organizaram a Companhia Alemã. Nela foram incorporados numerosos filhos de colonos. A Companhia contava ao todo com 100 homens formando uma tropa de elite, sob o comando superior do Barão do Jacui. Gozava de grande prestígio perante os luso-brasileiros e do comando das tropas imperiais. Tanto assim que o soldo mensal pago a cada homem era de 27 mil réis, enquanto os demais recebiam apenas 10 mil réis. Sua missão consistia em proteger as áreas nas proximidades de Porto Alegre.
Passados 50 anos da Revolução Farroupilha os descendentes de primeira e segunda geração dos primeiros imigrantes, mais os imigrantes mais tardios, viram-se levados de roldão pela Revolução Federalista. Seu envolvimento naqueles acontecimentos de 1893-1895 foi, em grandes linhas, muito parecido com a Revolução Farroupilha.
Para a região do vale do Rio dos Sinos e do Caí a movimentação dos Maragatos tornou-se mais visível depois da morte Gomercindo Saraiva em agosto de 1894. Na verdade tratava-se de tropas irregulares ou,  melhor dito, de bandos organizados e armados, que se formaram no contexto confuso e anárquico que costuma acompanhar a evolução de fatos históricos do gênero. Deixando de lado eufemismos não passavam de bandos de salteadores que se diziam revolucionários, comandados pelos irmãos Correa e Leão. Animados por pouca, ou melhor, nenhuma motivação política, percorriam as linhas e picadas dos colonos, saqueando as propriedades, cometendo as maiores violências, inclusive assassinatos.
Também neste caso a crônica mostra o envolvimento dos colonos no atacado e no varejo. No atacado. Como na Revolução Farroupilha, também nesta os colonos dividiram-se, pela simpatia e engajamento efetivo, na causa política dos Maragatos de um lado e dos Legalistas do outro.
Durante a Revolução federalista foram mobilizados pela primeira vez os "Grupos de Autodefesa", [1] grupos paramilitares recrutados, armados, treinados e comandados pelos próprios colonos. Seus feitos e resultados bélicos foram mais espetaculares no vale do Taquari. José Diehl comandou, por ex., o grupo de autodefesa que impôs uma pesada derrota aos Maragatos num assalto a Santa Clara. No vale do Sinos esses grupos não primaram pela organização, pela disciplina e pela competência dos comandantes, de maneira que não chegaram a representar um perigo mais sério para os bandos dos Correa e
No varejo. A Crônica descreve as filigranas do envolvimento dos colonos nos acontecimentos: intrigas, jogos de pressão e de interesse, provando que, não somente não estavam alheios, como sabiam perfeitamente quais os lances e como dá-los no jogo do qual participavam.




[1] Os grupos de auto-defesa foram organizados e integrados pelos colonos alemães para a defesa de suas comunidades e propriedades, pois, na Revolução Federalista e na Revolução de 1923,  não podiam contra com a proteção official. Pode-se dizer que formavam uma organização para-militar até bem vinda pelas autoridades constituídas. Sua eficiência dependia em grande parte da capacidade de liderança e commando das diversas picadas que defendiam. Assim na região da Picada Café e arredores, durante a revolução federalista, foram pouco eficientes. O contrario aconteceu em Santa Calra do Sul durante a mesma revolução. Sob o commando de José Diehl os defensores da picada e arredores, impediram que os federalistas tomassem conta da região. Um fato semelhante aconteceu com os grupos de auto-defesa de Cerro Largo que impediram que os insurretos atravessassem o rio Ijui. Na ocasião Borges de Medeiros mandou entregar armas modernas ao grupo.

Deitando Raízes #2

Feitas essas observações preliminares, passamos a apontar alguns aspectos que tornam a Crônica uma fonte obrigatória para os estudiosos da imigração no Sul do Brasil. A história convencional apresenta o imigrante como vítima indefesa de duas situações: a total falta de perspectivas na Alemanha de então do lado de lá e, do lado de cá, o abandono unicamente à sua capacidade de se impor a um meio hostil. Fiquemos apenas com o que aconteceu do lado de cá.
A transposição de migrantes, imigrantes, emigrantes, dependendo do ponto de vista que se olha, vem acompanhado de duas dimensões. De um lado o migrante que parte para não mais retornar, em outras palavras, estabelecer-se em outra parte, país ou continente, deixa para trás toda uma história e pouco a pouco distancia-se das suas raízes. Em contrapartida é forçado a se inserir num outro ambiente geográfico, num outro contexto social, numa outra tradição cultural.
 Essa caminhada dos migrantes assume proporções mais ou menos dramáticas de acordo com as situações em que essa trajetória acontece. De importância é, sem dúvida, a distância que separa a terra de origem da terra de destino. E, neste particular, cabe um papel importante à época histórica em que aconteceu a imigração. Esses dois fatores combinados representam  um dos elementos talvez mais decisivos que determinam  o ritmo do afastamento das raízes e  a inserção na nova realidade. Exemplificando. Vale, por ex., para o migrante que no século dezoito partia da Europa e viajava em veleiros para a América do Norte, e depois passava meses, anos e, na maioria dos casos, o resto da vida sem se comunicar com os parentes e amigos deixados na terra de origem. Retornar em definitivo ou para uma visita, nem pensar. Entre o ponto de partida e a terra de destino a barreira intransponível do oceano, a erradicação de um lado e ou enraizamento do outro, acontecia compulsoriamente, acompanhado de todos os traumas imagináveis. Com os migrantes do começo do século vinte que dispunham de navios a vapor para transpor o oceano e trens para levá-los para o interior das novas terras, a situação mudara por completo e para melhor.
Um outro fator que não pode ser esquecido quando se acompanha os migrantes que vão estabelecer-se  numa terra estranha é o ambiente geográfico diferente. A relevância dessa questão assume proporções mais ou menos importantes, na medida em que as características das terras de origem são muito diferentes das do destino. Assim por ex., os migrantes  que se fixaram  nos Estados Unidos e no Canadá encontraram florestas com uma composição fitogeográfica parecida com a Europa. A maioria das espécies de árvores e a distribuição relativa, tanto das coníferas quanto das de folhas caducas dos dois continentes, tinham bastantes semelhanças. O mesmo já não se podia afirmar do Sul do Brasil. Uma floresta pluvial subtropical quase impenetrável, composta por espécies desconhecidas para o europeu, povoadas por animais, aves e insetos também desconhecidos, cobriam as terras destinadas aos imigrantes. Para esses imigrantes  acresceu, além disso, a adaptação à inversão  das estações no ciclo anual e a ausência de invernos rigorosos com neve e muito gelo.
 Sobre esse pano de fundo estabeleceram-se os primeiros contatos dos imigrantes alemães com a nova realidade. O primeiro desafio  consistiu em aprender a lidar com a mata, como derrubá-la e como livrar-se dos galhos e dos troncos.  Estabeleceram-se assim os primeiros contatos  com os luso-brasileiros e os indígenas da região. Aprenderam deles  os métodos de como criar condições para sobreviver e consolidar a sua situação nessas circunstâncias . Aprenderam a limpar o mato com foice para depois derrubar as árvores maiores. Para remover árvores e  arbustos depois de secos, os imigrantes recorreram ao método indígena da coivara, queimando o material seco.
O segundo problema a ser resolvido foi mais complexo, porém, de um significado cultural muito mais profundo. Referimo-nos à transferência dos referenciais simbólicos ligados à floresta, suas árvores, plantas e animais da Europa, para a mata, as árvores, as plantas e animais do Sul do Brasil. A importância do conjunto de processos neste particular, não raro escapa ao historiador. Acontece que neles residem elementos explicativos relevantes quando se pretende entender a gênese e a dinâmica dos processos culturais em geral e a aculturação ou enculturação em particular. Começa por aí que o homem vive numa relação existencial, simbiótica com o meio geográfico em que se encontra, tanto a nível biológico, quanto sob o ponto de vista cultural, psicológico e até religioso. É neste sentido que a relação com natureza, a relação prazerosa, a relação hostil, a relação exploratória, o clima de mistério, os ciclos que a regem, moldam os traços e contornos da paisagem em que imigrante construiu a sua nova terra natal, a sua nova "Heimat", a sua nova "querência". E assim o entorno geográfico deixa de significar um mero potencial para garantir a subsistência, para transformar-se numa paisagem humanizada  que chega a um nível tal de abstração que se fala na "paisagem como sendo um estado de espírito."
A outra gama de surpresas que esperava o imigrante na sua chegada, foram os homens, os povos e as culturas nativas. Nenhuma das ondas migratórias dos últimos séculos encontrou as terras de destino despovoadas. Na América do Norte entraram em condições de superioridade numérica e, principalmente, tecnológica. Os nativos terminaram massacrados, os sobreviventes confinados em reservas e as culturas reduzidas a curiosidades antropológicas.
Com os  imigrantes alemães, italianos, poloneses, etc., aqui no Sul do Brasil, as coisas aconteceram de forma bem diferente. Encontraram os luso-brasileiros há quase um século solidamente instalados na Província de São Pedro. Concentravam em suas mãos o poder econômico nas suas estâncias de gado, dominavam o comércio com a movimentação de tropas e com as caravanas de mulas, levavam charque e couros até as praças do centro do país. Ao mesmo tempo, concentravam em suas mãos todo o poder político regional e exerciam não pouca influência sobre a política imperial. Neste contexto coube aos alemães e, mais tarde, às outras correntes imigratórias, na condição de grupos minoritários, povoar e tornar produtivas as assim chamadas terras devolutas e as áreas cobertas de mata das estâncias de gado.  A justaposição geográfica com o entorno luso-brasileiro e o aparente isolamento étnico, cultural e lingüístico, social e político, levaram à interpretação equivocada do imigrante enquistado, fechado sobre si mesmo em suas picadas,  refratário a uma abertura para o mundo que não fosse o dele, desinteressado e alienado das movimentações sociais e políticas que aconteciam em sua volta. Por muito tempo prevaleceu a falsa idéia do imigrante que venceu sozinho e apesar de tudo, os desafios da sobrevivência num contexto geográfico e humano hostil e vítima das convulsões sociais e das guerras que intranqüilizaram o Sul do Brasil no decorrer do século dezenove.
O trabalho pioneiro mais consistente nessa revisão da relação dos imigrantes alemães com a realidade geográfica e social em que foram inseridos, é o do prof. Marcos Justo Tramontini, uma grande esperança da nova geração de historiadores da imigração prematuramente falecido de câncer e 2004. Reuniu para a sua tese de doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, um vasto arsenal de documentos e fontes que desmontam em grande parte ao menos, a idealização do imigrante alemão como um mero espectador, vítima, sobrevivente em meio às vicissitudes circunstanciais em que foi obrigado a tentar uma nova vida. À documentação e às fontes reunidas pelo prof. Tramontini, estamos em condições de acrescentar a Crônica de Bom Jardim do Pe. Carl Schlitz, uma minuciosa história regional, que tem como foco os  vales do rios dos Sinos e do Caí, mas insere-se na perspectiva  da história do Rio Grande do Sul como um todo, contada por testemunhas oculares dos acontecimentos nela enfocados.
O começo, isto é, de modo especial até a primeira colheita, implicou em vivências penosas e difíceis, acompanhadas de um aprendizado muito duro. Baseado em informantes que tinham participado dessa experiência, o Pe. Schlitz fixou um quadro minucioso daquela situação.
O primeiro grande desafio enfrentado pelos recém chegados, foi a alimentação. Precariamente alojados em alguma propriedade já existente ou, simplesmente ao relento, obrigaram-se a consumir o que era possível encontrar por perto. E, no caso dos pioneiros de Bom Jardim, o único recurso disponível em quantidade suficiente, resumia-se  em abóboras e laranjas compradas no Portão. Nos primeiros meses as refeições não passavam do mingau de abóbora no desjejum, no almoço e na janta. Em outros pratos como feijão, carne, arroz, etc. ou em pão, nem pensar.
A Crônica mostra também em detalhes  como os pioneiros aprenderam a lidar com a mata virgem. Abriram as primeiras clareiras munidos apenas com facão, foice e machado. E, para livrar-se dos galhos e vegetação seca depois de posta abaixo, recorreram à técnica dos nativos da coivara, a queima do material seco. Feito isso à base de muito esforço, os primeiros metros quadrados de chão estavam livres para receberem as sementes. A questão que se colocava então foi: o que plantar e como proceder. Observando os luso brasileiros nas redondezas os imigrantes adotaram o cultivo dos produtos que serviam de base da alimentação na região: feijão, milho. aipim, abóboras, batata doce, cana de açúcar, ... A adoção dessas culturas veio acompanhada do aprendizado de como cultivá-las. Como se pode  ver, os colonos viram-se, desde o começo,  na contingência de recorrer à população  luso brasileira e aos próprios nativos, para se apropriarem dos meios indispensáveis para a sobrevivência. Desde logo pois, somam-se  as evidências de que o isolamento que se atribui aos imigrantes alemães nas primeiras gerações foi, no mínimo, algo muito relativo. Pela força das circunstâncias e pela convicção própria dos colonos de que aqui estavam-se fixando em caráter  definitivo, o isolamento, assim como é apresentado como um fato pacificamente aceito, de fato nunca existiu. A imagem do colono alemão jogado na mata virgem, sozinho e entregue à própria sorte, é talvez verdadeira em alguns poucos aspectos. O processo de inserção na nova realidade, tanto física quanto cultural, se fez sentir desde o primeiro dia.


Um dos grandes méritos da Crônica do Pe. Schlitz é exatamente este. Informado por testemunhas que viveram essa trajetória desde o seu começo, não há como ignorá-los ou desprezá-los, pelo menos no essencial. E todos concordam numa coisa. O processo  de inserção começou desde o primeiro dia. Seu ritmo e suas características foram determinadas pelas circunstâncias. Pouco visíveis e espetaculares nos primeiros anos, acabaram por intensificar-se e diversificar-se, na medida em que a colonização se consolidava. Além da adoção  de técnicas para lidar com a mata virgem, o manejo do solo e tipos de culturas nativas, a Crônica informa sobre contatos dos alemães  com o entorno social, político e econômico. Fala  da experiência de três rapazes que foram trabalhar como peões numa estância no interior do estado. Conviveram perto de um ano com os hábitos do quotidiano de uma fazenda de criação de gado. Aprenderam a falar português e trouxeram para casa uma boa soma em dinheiro.

Deitando Raízes

Caros amigos e amigas frequentadores do meu Blog.
Depois de uma interrupçãoo de mais de meio ano volto com uma nova série de postagens. Elas têm como objeto um documento histórico publicado no “Deutschess Volksblatt” em sequência semanal que cobre o período de 15 de dezembro de 1896 e março de 1898. Por se tratar de uma crônica que retra em detalhes a situação da colonização alemã da épcoa, tendo como referência Bom Jardim, hoje Ivoti, decidi oferecer ao público sua versão em portugês, com uma apresentação de contextualização e notas de rodapé, como segue. Pelo seu significado histórico optei pelo título: “Deitando Raízes”


Apresentação

Entre as muitas fontes inéditas relacionadas com a imigração alemã no Rio Grande do Sul, figura "a Crônica de Bom Jardim - Chronik von Bom Jardim" - do Pe. Carl Schlitz. Trata-se de um extenso e minucioso relato sobre os acontecimentos dos primeiros 70 anos da colonização alemã de São Leopoldo e arredores, publicado numa seqüência no jornal "Deutsches Volksblatt", entre 15 de dezembro de 1896 e 15 de março de 1898. O título original completo foi "Chronik von Bom Jardim oder kurzgefasste Geschichte der dortigen katholischen Gemeinde - Crônica de Bom Jardim ou história condensada da comunidade católica local." Na média aconteceu um seguimento por semana. Como fica claro no título completo, o foco das atenções do autor veio a ser a comunidade católica de Bom Jardim. É do conhecimento geral dos historiadores que a comunidade católica de Bom Jardim, antes Berghanerschneis e hoje Ivoti, foi uma das primeiras a ser organizada no contexto da imigração alemã para a região. A elevação à categoria de paróquia aconteceu em 1857. Mais antigas no meio imigratório  foram apenas as paróquias de Dois Irmãos em 1849 e de São José do Hortêncio também em 1849, criadas com a chegada dos primeiros jesuítas alemães, o Pe. Augustin Lipinski e o Joseph Sedlac.
A Crônica  de Bom Jardim constitui-se num documento único e numa fonte preciosa para enriquecer os conhecimentos sobre as primeiras décadas da imigração alemã no Rio Grande do Sul. O Pe. Carl Schlitz, seu autor, não foi um amador, nem tão pouco um diletante,  em assuntos históricos. De um lado contava em seu currículo com um elevado nível de formação superior, inclusive de História e, como ele mesmo declara no início da Crônica, um amante da História. Do outro lado como pároco de Bom Jardim da época, vivia em diuturno contato com as questões que envolveram a comunidade em si e as circunvizinhanças em geral.  Embora o seu interesse imediato fosse o bem estar religioso e espiritual dos paroquianos, o envolvimento nos acontecimentos políticos, o bem estar material e cultural, refletiam-se necessariamente sobre a tranqüilidade ou a perturbação do bem estar espiritual. E, como pároco, gozando da confiança dos paroquianos, tinha acesso fácil às fontes que lhe forneciam as informações para a Crônica: os informantes orais. Quando o Pe. Schlitz recolheu os dados no início da década de 1890, um bom número dos "pioneiros da mata virgem" ainda estavam em condições de transmitir oralmente suas vivências, suas experiências e suas reminiscências.
Não há dúvida de que, considerando tanto o autor quanto as fontes orais, o exame do conteúdo merece algumas precauções.
Primeiro. Quanto ao autor Pe. Schlitz. No próprio subtítulo ele explicita que se trata de  "uma breve história da comunidade católica." Como é do conhecimento geral as primeiras comunidades de imigrantes alemães de Dois Irmãos, São José do Hortêncio, Bom Jardim e as demais, eram confessionalmente mistas, com uma leve predominância dos protestantes. Compreende-se assim  que uma boa parte da Crônica se ocupe quase que exclusivamente dos católicos. Ao tratar do desenvolvimento político, revoluções, guerra do Paraguai, progresso econômico, a distinção confessional praticamente desaparece. Considerando esse fato encontramo-nos, sob certo aspecto, diante de uma história confessional, acompanhada de um tal ou qual caráter apologético em pelo menos alguns capítulos. E, relacionado com isso ou, melhor dito, como pano de fundo, o projeto da Restauração Católica, [1] consagrado pelo Concílio Vaticano segundo, encontra-se em plena implantação, também nas paróquias na área de colonização do Rio Grande do Sul. Como se sabe esse Projeto de Igreja tinha como parâmetro a ortodoxia, a pureza da Fé e a volta à disciplina religiosa do Concílio de Trento. O conceito "ecumenismo" não tinha lugar neste contexto. Regras disciplinares rígidas definidas pelo Direito Canônico, encarregavam-se de evitar o trânsito livre entre católicos e protestantes em situações que pudessem facilitar a abertura de brechas na ortodoxia católica. Citamos duas dessas situações. Os casamentos mistos e o convite de padrinhos protestantes para batizados de crianças católicas. Essas duas determinações do Direito Canônico foram uma constante preocupação dos curas de almas dos católicos. Na condição de leis canônicas positivas não havia como negociá-las com os protestantes. Tinham que ser aplicadas como o texto canônico o disciplinava. No caso dos casamentos mistos, se fossem de fato inevitáveis, havia duas saídas. Ou aconteciam à revelia da lei canônica  o que acarretava a expulsão do cônjuge católico da Igreja, com todos as suas seqüelas; ou o casamento era celebrado no rito católico com o compromisso da parte protestante de não impedir o cônjuge católico de praticar a sua religião e batizar e educar os filhos como católicos. Neste caso a parte protestante abdicava na prática da sua confissão para as gerações que nasceriam dessa união. Observe-se, porém, que o casamento misto legitimado pelo rito católico nestas condições, em muitos casos, na prática, não passava de um formalismo que  não era levado a sério e por isso  resultava na diminuição do espírito religioso e, em casos extremos, na perda da fé. E, na verdade, se a convivência entre protestantes e católicos no terreno político, social, econômico e cultural, costumava ser pacífica e até de mútua colaboração e estímulo, os conflitos davam-se mais no plano da disciplina canônica do que propriamente a nível de doutrina e fé.  Foi para evitar esse tipo de inconvenientes que, aos poucos, criou corpo a idéia de em novas fronteiras de colonização, instalarem-se comunidades confessionalmente separadas e identificadas. Os exemplos mais conhecidos são Bom Princípio e São Salvador, hoje Tupandi. E, quando mais tarde, no começo do século vinte, as fronteiras avançaram sobre as matas da região das Missões, Alto Uruguai e Oeste de Santa Catarina, em alguns casos firmaram-se acordos interconfessionais neste sentido, sobressaindo como exemplo a colonização de Serro Azul, hoje Cerro Largo e Porto Feliz e Porto Novo, hoje Mondaí e Itapiranga, respectivamente.
Segundo. A Crônica é uma história com foco local, inserida numa perspectiva regional, cujas fronteiras foram, em grandes linhas, os três estados que hoje formam a  Região Sul do Brasil: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Essa delimitação espacial justifica-se, tomando em consideração, com destaque especial para o Rio Grande do Sul, dos seguintes aspectos.
Em primeiro lugar a Crônica descreve o modelo de ocupação, de povoamento, de organização comunitária, econômica e religiosa, que se tornou paradigma para a presença dos imigrantes alemães e seus descendentes nas décadas que se seguiram. O começo da colonização protagonizado pelos alemães e seus descendentes em todas as frentes de colonização, deu-se em áreas de mata virgem. Certamente não era tarefa para fracos enfrentar a mata virgem do Sul do Brasil. Deste encontro do imigrante alemão com a mata virgem resultou, sem tardar, um cenário de agricultura diversificada, sobre lotes coloniais de tamanho médio a pequeno. Em menos de uma geração as matas quase impenetráveis, cederam lugar a uma paisagem humanizada. E não apenas a uma paisagem nova humanizada, mas ao surgimento e à consolidação  de um modelo de economia rural, até então inédito no Brasil. A pequena propriedade familiar, baseada na policultura no começo visando a subsistência, foi conquistando espaço ao lado das enormes estâncias criadoras de gado. Na medida em que o processo avançava e consolidava-se, os povoadores agruparam-se. organizaram-se e formaram comunidades. Na forma de "picadas" ou "linhas", movimentavam-se em torno dos seus interesses simbolizados pela igreja, a escola, o cemitério, a casa de comércio, os artesanatos, os clubes, as sociedades e associações.
O que a  Crônica conta sobre a gênese de Bom Jardim durante as primeiras décadas, irá repetir-se inúmeras vezes  e em muitos lugares nos três estados do Sul. É um paradigma que, respeitadas as características locais, irá multiplicar-se nos mais de 180 anos, desde a entrada dos primeiros imigrantes. Foi por isso que mais acima falamos numa obra com inspiração local, que na verdade termina como um paradigma na perspectiva no mínimo  regional.
Em segundo lugar. A Crônica quando refere o envolvimento de Bom Jardim,
 de modo especial, na Guerra dos Farrapos, na Guerra do Paraguai e na Revolução Federalista, torna-se novamente  um documento importante para compreender a história regional. Mais detalhes a respeito serão dados mais abaixo, ao analisarmos as informações do Pe. Schlitz, referentes a esses acontecimentos e o envolvimento dos colonos alemães neles.
Em terceiro lugar. Como a Crônica se ocupa, antes de mais nada, com a comunidade católica de Bom Jardim, as referências à comunidade protestante são poucas e só de passagem. Em todo o caso o autor não procura desqualificar os protestantes, muito menos envolver-se em polêmicas e discussões apologéticas, até compreensíveis na época. Tem-se a impressão que neste particular ele evita cautelosamente pontos de desencontro e atrito. Os casamentos mistos e os padrinhos protestantes em batizados de católicos, inegociáveis para um cura de almas católico, mereceram referências apenas periféricas. Sabe-se por outras fontes que foram esses os dois pontos dos maiores e mais dolorosos desencontros entre as duas confissões. Tem-se a impressão de que, salvo melhor juízo, a Crônica, para não acirrar as diferenças, não se fixou na metade protestante de Bom Jardim.



[1] O projeto da Restauração Católica consistiu essencialmente  na reafirmação das bases doutrinárias dogmaticas, morais e disciplinares do Concílio de Trento, concentrando toda a autoridade no papa. Chamado também de projeto ultramontano destinado a fazer frente ao avanço do “modernismo” com  as suas, de modo especial o cientificismo, o socialismo, os diversos tipos de igrejas nacionais, a laicização, etc. O Concílio Vaticano I foi momento culminante pelas iniciativas tomadas e pelos princípios doutrinários impostos a toda a Igreja. Os jesuítas, por assim dizer, a elite de vanguarda da Igreja foram os grandes propagadores implantadores desse projeto, onde quer que exercessem as suas atividades, obviamente também entre os colonos das paróquias que fundavam e administravam