Da Enxada à Cátedra [ 21 ]

Despedi-me do meu irmão Bertoldo e da entrada da portaria do colégio acompanhei-o descendo a encosta levando o meu cavalo na rédea de volta ao Morro da Manteiga que, lá longe se destacava do restante do planalto. Flagrei-me no meu íntimo com a sensação de que, daí para frente só voltaria esporadicamente para percorrer aqueles lugares, espaços e caminhos, e encontrar as pessoas que moldaram os fundamentos da minha personalidade. Confesso que naquela tarde e nas semanas seguintes chorei vezes sem conta com aquele cenário como pano de fundo. Mas, como menino de 12 anos recém completados, havia tomado a decisão de dedicar a vida a uma missão e não a uma simples profissão. Como já lembrei, na portaria esperava o Fr. Urbano Müller, prefeito da “divisão dos pequenos”, que seria meu orientador imediato. Ele apresentou-me a um aluno veterano, o Amaro Weber que seria o meu “anjo”, isto é, indicado para familiarizar-me com a rotina do dia a dia do internato. Acompanhou-me até o dormitório e me indicou a cama reservada para mim e me ajudou a guardar minhas roupas no devido lugar num grande armário para depois levar-me até a sala de estudos e, em seguida mostrar-me o refeitório, enfermaria, rouparia, salas de jogos, pátios e demais dependências da instituição. Alguns anos mais tarde esse meu “anjo” deixou o colégio e terminou como dono duma empresa de ônibus com sede em Curitiba.

Alguns dias depois fui levado, em companhia de outros “novatos” para o museu, lugar onde a pequena orquestra costumava fazer os ensaios. Pelo que me lembro o Pe. Frederico Maute, regente da orquestra, quis verificar se algum dos meninos tinha talento para integrar o conjunto. Como eu não tinha nenhum conhecimento de solfejo nem noção de como tocar algum instrumento de música, nem fui escolhido para tentar. Aliás nunca aprendi nos anos seguintes tocar um instrumento qualquer. Por menos de um ano participei do coral do colégio. Isso, porém, não impediu que apreciasse corais cantando, orquestras tocando, principalmente peças clássicas. Hoje ainda costumo dedicar a última meia hora do dia, ou um pouco mais para escutar música clássica ou popular de preferência alemã. Sempre gostei de música, mas nunca me interessei em ser músico.

Antes de começarem as aulas, nós novatos, fomos submetidos a uma exame para averiguar o nosso nível de conhecimento. Já lembrei mais acima que minha formação na escola elementar do Morro da Manteiga foi atropelada no meio do caminho com a implantação da Campanha de Nacionalização. Nos dois primeiros anos a escola ainda funcionava no velho estilo das colônias. A língua de ensino foi alemão, os livros impressos em caracteres góticos e nos manuscritos usava- se o “Süterlin”. A partir do 3o ano os decretos que disciplinavam a nacionalização da escola exigiam o português como língua de ensino. Os livros didáticos em alemão foram substituídos por outros em português e a escrita manual obrigatoriamente em letra latina. Como se pode concluir fui na prática alfabetizado duas vezes e de acordo com duas realidades de todo diferentes. Para encurtar. Com isso apresentei-me no Colégio Santo Inácio, um pouco mais do que alfabetizado. A avaliação do meu nível de conhecimentos e dos meus colegas também recém chegados, foi conduzido pelo irmão leigo jesuíta Vicente Slany que constou, se não me falha a memória, de um ditado, de uma breve redação e de uma entrevista oral. O resultado não podia ter sido outro. Fui matriculado no terceiro ano primário, o nível mais baixo da instituição. Em outras palavras comecei na prática, e pela terceira vez, da estaca zero. Na escola elementar aprendera o alemão ao ponto de ler livros e escrever cartas mas, sem condições para me inserir num nível um pouco mais adiantado do programa de estudos do colégio. Na época o tirocínio básico do colégio estava dividido em dois níveis: o Primário de dois anos, o terceiro e o quarto primário e cinco anos de Ginásio. Minha perspetiva, portanto, para ficar internado no Santo Inácio, somava no mínimo sete anos, caso não ocorresse um acidente de percurso. Fui contemplado com um desses acidentes de percurso que fez com que me demorasse 8 anos. Os detalhes desse acidente ficam para mais abaixo.

Em fins de fevereiro ou começos de março, não me lembro bem, teve início o ano escolar. O responsável pelo terceiro ano primário foi o já citado Ir. Vicente Slany, irmão jesuíta austríaco, representante emblemático daquela categoria de jesuítas (os Bruder – Irmãos) como eram carinhosamente chamadas nos colégios e paróquias onde se encarregavam da logística do funcionamento dessas instituições. Ficavam o resto da vida com a formação acadêmica que tinham ao entrar na Ordem. Conheci e convivi ainda com um bom número deles. Hoje pelo que me consta encontra-se em extinção essa importante classe de jesuítas, verdadeiros heróis que, no anonimato de pedreiros, marceneiros, escultores, motoristas de caminhão, ferreiros, enfermeiros, porteiros, encadernadores, cozinheiros, alfaiates, alguns com um nível de formação mais elaborado professores nos colégios, cumpriam com heroísmo sua parte como autênticos missionários. O Pe. Arthur Rabuske (in memoriam) dedicou um estudo à memória dos “Bruder”. Pois, o Ir. Slany fazia parte dessa categoria. Entrara na Ordem com uma formação mais aprimorada e foi destacado pelos superiores como professor responsável pela terceira série primária. Lembro-me dele como um homem alto e robusto, cabelo castanho cortado no estilo escovinha, sempre bem disposto, entusiasmado, mão firme sem ultrapassar os limites da razoabilidade, desenhista habilidoso e, sobretudo, talhado para lidar com aqueles meninos vindos da colônia, xucros, assutados que, não raro desandavam num sonoro choro de saudades de casa em meio a uma aula de geografia ou gramática. A admiração por esse homem foi muito mais duradoura do que aquele remoto ano de 1942. E sem eu me dar conta, parece que o Ir. Slany não se esqueceu daquele seu aluno que com ele aprendeu a desenhar navios e colocar os nomes de cada um dos componentes no devido lugar. A prova foi um desenho do seu punho especialmente feito para mim que ele me mandou lá de Curitiba onde passou últimos anos no Colégio Medianeira, mais de 30 anos depois. Antes, porém, de detalhar a formação que recebi nos 8 anos que passei no Santo Inácio, quero dar uma ideia da rotina do quotidiano daquele internato.

A rotina do dia a dia

Os um pouco mais de 100 internos estavam divididos em 3 divisões, de acordo com a idade e em parte também pelo nível de estudo em que se encontravam. Cada divisão encontrava-se sob a direção de um “prefeito”, isto é um jovem jesuíta que tinha concluído a faculdade de Filosofia e cumpria o período de 3 ou 4 anos de estágio de magistério obrigatório como parte da formação do jesuíta na época. Os prefeitos costumavam ser tratados como “fratres”, isto éirmãos” no latim para distingui-los dos irmãos leigos aos quais também já me referi. Meu prefeito na primeira divisão foi o Fr. Urbano Müller, já conhecido também de uma referência acima. Um “prefeito geral”, um padre com todos as etapas da formação jesuítica concluídas, coordenava a rotina das 3 divisões com seus “prefeitos”. O quarto do prefeito da respetiva divisão localizava-se num canto reservado do dormitório. Os dias normais de aula (segunda, terça, quinta, sexta e sábado obedeciam a uma rotina comum. De manhã às 5,30 o prefeito saía do quarto e com uma sineta na mão acordava os seus tutelados. Depois de meia hora, vestidos, rostos lavados nas bacias sobre um bidê ao lado da cama, as camas feitas, descíamos em fila até o campo de exportes. Alinhados novamente em filas começava a meia hora de ginástica. Consistia em alongamentos, flexões, enfim, exercícios corporais completos, conhecidos como “Ginástica Sueca”, comandada pelo prefeito ou um aluno escalado para tanto. Nos dias de chuva a ginástica acontecia debaixo de um telheiro no pátio ou nos espaçosos corredores do andar térreo. Depois da ginástica assistíamos à missa seguida do café da manhã. A partir das 8 h seguiam 4 aulas de 45 minutos com um recreio de meia hora entre as duas primeiras e duas últimas. O almoço era servido ao meio dia por um grupo de alunos que se alternavam semanalmente. Como já lembrei mais acima enquanto o corpo se alimentava o espírito recebia também a sua porção com a leitura de um livro a cargo de um aluno também indicado para essa trefa. Entretanto, observava-se silêncio e o “prefeito geral” circulava pelo recinto desencorajando qualquer tipo de quebra de disciplina. Seria desnecessário lembrar que a refeição começava e terminava com uma oração. Terminada a refeição, um grupo de internos, alternando-se a cada semana, encarregava-se de recolher a louça, lavá-la e guardá-la. Os demais saíam em fila até o pátio para uma hora de recreio com jogos que consistiam basicamente em apostas de corridas, caminhadas, cabo de guerra, tênis de mesa, basquete, jogos de mesa, prática de algum artesanato, tudo de acordo com as condições do tempo. O futebol costumava ser praticado nos domingos e/ou feriados. Seguiam-se duas horas de aula entre as 14 e as 16 horas. Às 16 h. servia-se um lanche para em seguida, em grupos os alunos darem conta das diferentes tarefas de faxina das salas de aula, dos corredores, dos dormitórios e demais dependências. Outro grupo costumava ser destacado para descascar batatas, aipim, frutas e ajudar o irmão cozinheiro a lavar panelas, abastecer a cozinha com lenha etc. Um terceiro grupo encarregava-se da limpeza dos pátios e campos de exporte e um quarto grupo cuidava do pomar e ajudava o irmão responsável pelas plantações. Chamo a atenção que todas as tarefas auxiliares de manutenção de uma instituição, normalmente a cargo de pessoas contratadas para tal, no caso do Colégio Santo Inácio, ficavam sob a responsabilidade dos próprios internos. Com essa contribuição pagavam parte da pensão reduzindo-a a um valor suportável para os pais que na sua quase totalidade eram simples colonos e não dispunham de muitos recursos para arcar com uma pensão mais cara. Meu pai, por ex., não tinhas as mínimas condições de custear meus estudos pagando uma anuidade como por ex. do Colégio Anchieta em Porto Alegre. Para tarefas mais cansativas como cuidar de bois, vacas e porcos, lavrar a terra e manter as plantações que abasteciam o internato, a direção empregava meia dúzia ou um pouco mais de rapazes da colônia que recebiam salário e, ao mesmo tempo, tinham ocasião de contarem com aulas à noite especialmente programadas para eles. Destacado para ministrar aulas de geografia, história e ciências para esses rapazes de 13 ou 14 anos, que comecei a minha carreira de professor em 1949 aos 19 anos e nunca mais parei até 2008 com 78 anos. Mas, essa é uma história que pretendo contar em detalhes mais abaixo. Depois desse inciso retomo a rotina diária do internato. O período das 17 às 19 h. era reservado ao chamávamos de “estudo sério”, isto é, dedicado a fazer as tarefas escolares para o dia seguinte. Seguia a janta às 19 h. e, para concluir a rotina diária, uma hora de recreio com exportes diversos ao ar livre quando o tempo o permitia ou nos corredores e salas de jogos quando chovia ou fazia muito frio. Seguia-se uma oração em comum na capela para em seguida subir nos dormitórios no terceiro andar para dormir.

O que acabei de detalhar resume a rotina dos dias normais de aula. Nos sábados à tarde, nos domingos e feriados, o ritmo tomava outra dinâmica. Nos sábados à tarde a primeira hora, ou hora e meia era reservada para o que chamávamos de “estudo livre”, isto é, dedicado a leituras do interesse de cada um sem compromisso com aulas. Essas leituras atendiam aos gostos e preferências individuais: romances, livros piedosos, romances históricos, relatos de viagens e por aí vai. Naquela fase da minha vida minhas preferências recaíam sobre romances históricos e, de modo especial, relatos de viagem. Aliás o primeiro livro que li, da primeira à última página, antes ainda de entrar no internato do seminário levava o título “Noni und Mani”. O livro conta a história da infância de dois irmãos, “Noni e Mani”, na longínqua Islândia lá perto do Ártico. O autor Jón Svenson foi o “Noni” da história. Mais tarde viveu como jesuíta na Alemanha quando descreveu sua infância vivida com o irmão, o “Mani” na ilha dos vulcões, das fontes quentes e dos invernos polares. Aquela leitura abriu para mim, melhor, escancarou para mim as janelas do grande, maravilhoso, misterioso e fantástico mundo de Deus e os povos que nele construíram e ainda constroem, cada qual à sua maneira, culturas únicas, plurais na sua forma, porém, unas na sua essência humana. Naquelas horas de “estudo livre”, melhor talvez “leitura livre”, devorei, entre outras a obra a de Swen Hedin, “Von Pol zu Pol” – “de Polo a Polo” e, dentre os romances históricos de Karl May aqueles que tinham como personagens os índios do centro oeste dos Estados Unidos, caçando livremente búfalos que pastavam aos milhões nas pradarias que, lá longe, se confundiam com o horizonte. Do mesmo escritor gravei na memória a descrição da viagem “De Bagdad a Istambul”. Devo ter lido mais do que uma dúzia da obra completa de Karl May. Depois do “estudo livre” seguia a faxina diária das dependências do internato, já descritas mais acima e após um banho de piscina tinha lugar a confissão semanal com um confessor de livre escola entre os padres da casa. Meu confessor predileto foi o Pe. Johannes Rick até o seu falecimento em maio de 1946. Com ele não havia “frescura”. Especialista mundialmente conhecido pelas pesquisas com fungos, costumava receber os penitentes com um chapéu surrado sobre a mesa e nele uma vistosa bosta de vaca coberta de fungos e ao lado uma lupa. Empurrava o chapéu e a lupa para o lado, colocava em seu lugar um crucifixo na sua frente, e sem maiores cerimônias e perguntas desnecessárias, resolvia a questão. A tarde do sábado terminava com uma hora de estudo, janta, mais uma hora de recreio com jogos diversos, uma visita em comum à capela e pelas 9 h. cama.

Falta falar do domingo e dias santos. O despertar se dava na mesma hora dos outros dias da semana. Seguia-se meia hora de ginástica, café, recreio seguido de missa cantada. Programações recreativas ocupavam o restante da manhã. Depois do almoço, sempre um pouco mais variado e caprichado do que o diário durante a semana, uma hora de recreio, em seguida a tão apreciada,pelo menos por mim, hora de “estudo livre”. Depois, até às 18,30 podiam ser ocupadas com jogos de futebol, voleibol, caminhadas, etc. Com mais um ou dois colegas costumava percorrer as trilhas abertas pela floresta virgem que cobria mais da metade da propriedade do colégio de em torno de 400 hectares. Micos, inhambus, aracuãs, tucanos, gatos do mato, até juaguartiricas, além de dezenas de espécies de pássaros de grande, médio e pequeno porte viviam naquele pedaço de paraíso. Atenção especial mereciam as numerosas jararacas que se multiplicavam naquele ambiente favorável e costumavam aproveitar as manchas de sol na beira das trilhas para se aquecer. A elas voltarei mais abaixo. No final da tarde pelas 18 h. acontecia a bênção do “Santíssimo” seguida da janta, uma hora de recreio, visita comum à capela e dormir, para na outra manhã recomeçar a rotina de uma nova semana.

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