Da Enxada à Cátedra [ 20 ]

O Colégio Santo Inácio

Antes de relembrar minha formação no nível médio nos 8 anos que passei no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul, penso ser oportuno falar um pouco sobre a natureza daquela instituição. Como já lembrei mais acima, recebia alunos em regime de internato principalmente do interior colonial que, em princípio, pretendiam entrar na Ordem dos Jesuítas depois de concluído o ginásio. Mas, o que me parece de um significado todo especial é chamar a atenção ao perfil da formação humana e acadêmica que se esperava dos egressos que passavam pelo currículo oferecido e praticado, somado aos recursos que complementavam a formação da personalidade como um todo.

O formato acadêmico e de formação humana do Colégio Santo Inácio foi inspirado no famoso “Colégio Stella Matutina” de Feldkirch na Áustria, moldado ao perfil do ideal de formação e educação nos colégios dos jesuítas, proposto na “Ratio Studiorum”. Este documento pode ser considerado a Carta Magna que, pelo menos naquela época ainda ditava a linha mestra da formação nas instituições de todos os níveis sob a responsabilidade da Companhia de Jesus. Os conteúdos foram organicamente planejados e acompanhados com as diretrizes didático pedagógicas e os instrumentos complementares indispensáveis para uma formação integral, como foi lembrado mais acima.

A implantação de colégios jesuítas têm o seu começo em 1548, portanto 8 anos depois da fundação oficial da Ordem pelo papa Júlio III. Santo Inácio e seus companheiros fundadores da Ordem estudavam humanidades na Universidade de Paris quando conceberam e deram formato definitivo ao projeto. Compreende-se assim que uma formação acadêmica aliada à religiosa fosse colocada entre os instrumentos mais importantes para a missão de evangelização que lhes cabia cumprir sob a autoridade direta do papa. Onde quer que implantassem uma nova sede de missão, a criação de uma escola contava entre as primeiras providências. Ao lado da catequese ensinavam as primeiras letras e mais tarde artes e ofícios. As primeiras escolas, ou “colégios”, datam de 1548. Multiplicaram-se e na medida em que os jesuítas se espalharam pela Europa e fora dela foram consolidando centros regionais de irradiação de evangelização. A multiplicação e dispersão dos “colégios” levou à uma perigosa pulverização dos conteúdos ensinados e dos métodos didático pedagógicos empregados nessas instituições. Em vista desse problema o Geral da Ordem Pe. Acquaviva formou uma comissão que, sob sua orientação, formulou e consolidou a codificação do “Plano de Estudos da Companhia de Jesus”. Depois de 15 anos de trabalho a comissão entregou o documento definitivo, intitulado “Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu”, conhecida normalmente como “Ratio Studiorum”. A partir de 1599 esse documento tornou-se o manual didático pedagógico obrigatório em todos os colégios sob a responsabilidade dos jesuítas espalhados pelo mundo todo. A essência do documento consistia em garantir a uniformidade de procedimentos em moldar a mente e o coração dos educandos dos jesuítas em meio à turbulência causada pelo movimento reformista do século XVI. Nesse formato a “Ratio Studiorum” serviu de orientação por dois séculos, a todos os “colégios” sob a orientação dos jesuítas, até a supressão da Ordem pelo papa Clemente XIV em 1773. Depois que a Companhia de Jesus, como que retornada de um retiro compulsório de 40 anos, foi restaurada por Pio VII em 1814, o Superior Geral constituiu um comissão a fim de revisar e atualizar a “Ratio Studiorum”. A nova versão foi concluída em 1832 com 29 conjuntos de normas, uma a menos que a original. Numa análise mais minuciosa do documento aparece nas linhas mas, principalmente nas entrelinhas, o dedo de Santo Inácio de Loiola influenciado pelos estudos em Paris, num momento em que se encontrava em alta o interesse pelo humanismo renascentista e a retomada do tomismo.

A “Ratio Studiorum” previa três níveis de formação com seus currículos funcionalmente estruturados. A formação teológica com 4 anos de duração abrangendo a Teologia Escolástica e Moral, a Sagrada Escritura, Direito Canônico, e História da Igreja; a formação filosófica exigia 3 anos com as doutrinas de Aristóteles e Santo Tomas de Aquino como base; a formação Humanística, com duração de seis a sete anos, subdividia em cinco classes e cinco horas de aula por dia focadas na Retórica, Humanidades, Gramática Superior, Média e inferior. A proposta da “Ratio” insistia na estreita vinculação entre a formação intelectual clássica e a formação moral com assento nas virtudes cristãs e sua prática. Para tanto previa modalidades curriculares que levassem a atingir esses objetivos; processos de admissão, acompanhamento do progresso e a promoção dos alunos; métodos de ensino e aprendizagem; condutas, e posturas respeitosas dos professores e alunos; textos indicados para o estudo e a leitura; variedade dos exercícios e atividades escolares; frequência e seriedade aos exercícios religiosos; hierarquia organizacional e categorias de subordinação. E, para obter os resultados concretos necessários para o nível de formação proposta, exigiam-se composições escritas aprimoradas; liam-se os autores gregos e romanos, com ênfase em Aristóteles, Sócrates, Platão, Homero, Píndaro, Aristófanes, Cícero, Tertuliano, Horácio, Virgílio, Tácito e demais clássicos. A eles somavam-se literatos e pensadores alinhados ao pensamento oficial da Igreja, com destaque para Tomás de Aquino, Agostinho, Suarez, etc. Uma importância toda especial merecia a Retórica com o objetivo de formar oradores de alto nível. Lembro-me perfeitamente que no último ano do ginásio em 1949, decoramos a primeira das Catilinárias de Cícero e encenamos no original em latim o julgamento de Catilina, com um júri, Catilina sentado no banco dos réus e um colega meu considerado o melhor orador da turma, introduzindo a acusação: Quo usque tandem Catilina abuteris patientia nostra...“Até quando Catilina abusarás da nossa paciência!” O estudo profundo da Latim desde o primeiro ano do ginásio com uma hora de aula todos os dias e a partir de certa altura com a leitura dos clássicos, o manejo das regras gramaticais, a assimilação do espírito da língua facilitava o aprendizado das línguas modernas que iam sendo inseridas gradativamente no currículo. Esse aprendizado de cunho mais teórico vinha acompanhado de atividades complementares como teatros, discursos, declamações, academias, pregações no refeitório, leituras durante as refeições de acordo com o princípio “enquanto o corpo se alimenta, convém que o espírito também se alimente. Nunca vou esquecer as leituras durante as refeições ao meio dia e à noite. Os livros escolhidos costumavam ser romances históricos, relatos de viajantes, livros de história e geografia e outros. Não seria capaz de quantificar de memória o número de livros e qualificar os conteúdos e, ao mesmo tempo o que significaram aquelas leituras em termos de acréscimo à minha formação. Só para exemplificar. Apropriei-me dos detalhes da história da Revolução Francesa num livro lido durante a refeição. Mais abaixo devo voltar ao assunto com mais detalhes. Mais acima já lembrei a formação complementar oferecida no Colégio Anchieta em Porto Alegre, valendo-se das Congregações Marianas, formando uma elite intelectual que ficou famosa pela sua influência em todos os níveis entre 1920 e 1960. E, para provar a excelência do método da “Ratio Studiorum” vale lembrar que representantes dos mais influentes na revolução do pensamento formaram-se em instituições dos jesuítas. Cito alguns obrigatoriamente conhecidos, estudados e citados pela sua importância nas letras, artes, ciências e de modo especial na filosofia: Cervantes, Antônio Vieira, Bernardes, Montesquieu, Voltaire, Moliére, Descartes, Bossuet, Fontenelle, Bertholet, Gregório de Matos, Cláudio M. d da Costa, Alvarenga Peixoto, Caldas Barbosa e muitos outros. Paulsen, escritor protestante deixou uma avaliação da importância da “Ratio”, mais ou menos nos seguintes termos. Não se pode por em dúvida que “a Ratio Studiorum” tenha sido elaborado com grande cuidado e diligência. Não há como contestar no seu conjunto seu plano de estudos adaptado perfeitamente às exigências do tempo. Foi com certeza que com esse método que a Ordem promoveu com grande êxito a difusão do conhecimento das línguas clássicas nos países católicos onde os jesuítas atuavam como os mestres mais bem instruídos e mais zelosos.

O colégio “Stella Matutina” foi talvez a mais genuína instituição de ensino dos jesuítas na aplicação do modelo educacional proposto pela “Ratio Studiorum”. Sua história várias vezes secular divide- se em três períodos. O primeiro começa com sua fundação em 1649 e encerra em 1773 com a supressão da Ordem por Clemente XIV. O segundo período e certamente o de maior brilho e pujança começou em 1856 incentivado pelo imperador da Áustria Francisco José I e o papa Pio IX e seu primeiro Reitor, o Pe. Clemens FallerNovamente fechado com o começo da I Guerra Mundial. Essa segunda fase foi com certeza a de maior pujança quando o “Stella Matutina” atraiu estudantes de países de fora da Áustria: Hungria, Polônia, República Tcheca, Itália, Alemanha, França, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos. Um detalhe que merece atenção e hoje causa espanto para não poucos responsáveis pelo ensino médio no Brasil. Pela procedência dos alunos de tantos países diferentes, a língua de ensino e da comunicação do dia a dia veio a ser o Latim.

O perfil acadêmico do colégio desse período, de todo alinhado com a proposta da “Ratio Studiorum”, foi o que que mais influiu na modelagem dos colégios dos jesuítas no sul do Brasil. Em primeiro lugar merece ser lembrado a Missão do sul do Brasil dependia da província alemã e não poucos dos que foram destinados para cá tinham sido alunos do Stella Matutina ou tinham lecionado no colégio e de qualquer forma todos tinham conhecimento da excelência da formação que oferecia, inclusive o seu primeiro reitor Clemens Faller. Cito apenas alguns nomes de jesuítas ex-alunos e/ou professores que marcaram época na consolidação da colonização, na educação, na pastoral, em projetos de desenvolvimento econômico e promoção humama e na pesquisa científica. Limito-me às personalidades mais marcantes: Clemens Faller, Theodor Amstad, Max von Lassberg, Joseph von Lassberg, Johannes Rick, Ferdinand Theissen, Jakob Fäh, Ferdinand Feldhaus, e muitos outros. Em segundo lugar cabe destacar que os colégios que levaram o ensino médio do Rio Grande do Sul e Santa Catarina a um nível de excelência tal que foram equiparados pelo Ministério da Educação ao Colégio D. Pedro II, referência de excelência nacional, foram fundados nesse período: o Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo, o Colégio Gonzaga em Pelotas, o Stella Maris em Rio Grande, o Colégio Anchieta em Porto Alegre, o Colégio Catarinense em Florianópolis. O Stella Matutina foi novamente fechado em 1938 pelos nazistas e reaberto em 1946. Encerrou finalmente suas atividades acadêmicas em 1979. Hoje os prédios abrigam o “Voralberger Landeskonservatorium” uma escola de música com 400 estudantes.

Justifico a minha demora em detalhar, embora superficialmente, o modelo educacional dos jesuítas, a “Ratio Studiorum” que contempla todos os níveis da formação acadêmica, desde o ensino fundamental, passando pelo médio, o superior com ênfase nas letras clássicas, humanidades, retórica, filosofia, teologia, formação ascética e moral pois, minha formação acadêmica aconteceu nesse modelo de formação. O Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul fora moldado nesse formato, servindo assim de porta de entrada para o tirocínio obrigatório para qualquer jesuíta da época. Como estava decidido entrar na Ordem importava realizar metaforicamente uma “travessia do Rubicão”, a porta de entrada sem volta de uma jornada que seria concluída 21 anos mais tarde.

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